Mais digo que vai dedicado à Senhora Minha Mãe, talvez das pessoas com um mais doce sorriso que conheci e que, a rir, coraria de vergonha se soubesse os dislates que neste, como noutros sítios a duas ou três dimensões, este seu rebento vai disseminando pelo mundo.
Resumo, o mais discreto possível, de um alvoroçado 21 de Setembro
Para vos ser franca, ainda não me lembro de ter nascido.
Tudo o que sei me foi contado pela fonte fidedigna das recordações de Minha Mãe, pessoa absolutamente imprescindível ao acto, e por outras pessoas, que em acontecimento funesto relativamente recente e de reunião forçada, como costumam ser os funerais, ao reverem-me após anos de ausência minha ou delas, me falaram de mim como se fosse eu a defunta.
Assim me senti, embora cordialmente sorridente de mobilidade vertical e sem apoios ou efeitos cinematograficamente especiais.
Algumas dessas pessoas são de tal forma idosas, que me parece recuarem a minúcia da memória até do momento em que foram elas próprias concebidas.
Como se sabe a velhice é uma espécie de espelho que apenas reflecte o fundo da sala onde está colocado
Mas continuando, dia 20 minha mãe foi de esperanças já adiantadas mas ainda não muito urgentes, de Lisboa para o Alentejo a fim de assistir a um casamento mais aos tradicionais festejos religiosos, em alguns aspectos pouco respeitosos dos dez mandamentos, cujo dia grande é 21 de Setembro.
Por a noiva e o noivo serem parentes do meu pai, por um lado e da minha mãe por outro, juntaram-se ali, de forma mais ou menos contrariada, as duas famílias.
E digo contrariada já que por razões várias, os casamentos e mais ainda os baptizados, eram considerados obrigações a que bastavam só os directamente interessados assistir. Normalmente os colaterais achavam que tinham mais que fazer ou onde se divertir.
A maior parte ficou alojada em casa farta de salas e quartos.
Em edifício contíguo, tomaram poiso uma trupe de flamenco de Sevilha, um grupo musical e dois fadistas levados de Lisboa, todos contratados pelo padrinho do noivo como forma de animar o casório. No dizer dele, com noivos tão enfadonhos e bispo tão monocórdico, começaria logo a meio da homilia um coro de ressonadores, prolongando-se copo-de-água fora.
Uma das ciganas flamencas, olhando para minha mãe, tirou uma moeda da bolsa e meteu-lha na mão informando-a que ia dar à luz no dia a seguir e como o sol se ia alinhar com a estrela não sei quantas, era nascimento especial e mais que nunca deitasse a moedinha (“la plata”) fora e que sempre se lembrasse da gitana Maricarmen.
À tardinha, minha mãe foi com meu pai ver uma das procissões.
Deu dois passos, escorregou e estatelou-se na calçada, com a pança como amortecedor.
Devo ter tido o meu primeiro ataque de mau génio, tal foi a agitação que lhe fiz sofrer. De facto, os pontapés tornar-se-iam, quando virada a arruaceira, uma das minhas especialidades.
Por insistência alheia, mais que por disposição própria e contra a sábia vontade de meu avô muito estrangeiro, minha mãe foi assistir à sessão de fados, garrafas e jazz familiar num dos salões.
Refilei furibunda quando quando uma senhora amiga da parentagem e de voz de oiro entoou o seu “Não sou fadista de raça”. Nunca ficou ofendida com a confidência de minha mãe: cantas bem mas eu já não te podia ouvir…
Ia alta a noite quando o Fernando Farinha cantava os “Belos tempos” e da minha mãe desaguou farto rio com foz no tapete de Arraiolos, começando as contracções.
Estando os dois médicos disponíveis com o espírito nublado por néctares frutados da zona, meu avô muito estrangeiro e calmo dispôs-se a fazer o parto.
Algumas damas de ascendência judia argumentaram que nunca tal se tinha visto: partos eram coisas de mulheres e a que ali estava não tinha nada de ovelha, égua ou vaca.
Pressionado, meu pai mandou que fossem chamar a parteira que morava na rua de baixo. Veio o mensageiro aflito com as novas da irreversível bebedeira da perita.
A tia A. Mandou buscar e limpar um berço ao sótão.
A prima H., disse que era tão velho que tinha caruncho, ao que a outra, aproveitando o ensejo para lavar a paciência que nunca tinha e só recentemente a passou a ter de forma definitiva, lhe chamou estúpida, que o caruncho atacava madeira e não carne. Os ratos que lhe saíssem da farta e armada cabeleira é que talvez gostassem de carne fresca. Por isso, até morrer a H. era conhecida por Pompadour.
A prima A.L., espanhola, virando-se para o meu avô muito estrangeiro manifestou o desejo que dali saísse varão. Já por demais históricamente enfadado e recorrendo a tradutor tal avô ripostou-lhe um velho dito da sua terra: quando um espanhol se arranha, sai mouro. Trocaram-se mimos, eternos, de cariz rácico-político.
Entre contracções, minha mãe bem se lembra da pouco conclusiva contenda.
Já tinha chegado mensageiro do avô muito estrangeiro com uma senhora espanhola, sua empregada e refugiada da Guerra Civil, caracterizada por chamar a propósito de tudo e de coisa nenhuma, gran hijoputas aos franquistas e gran cabrones aos republicanos, o que feitas as contas, dá a mesma categoria e estatuto social aos dois.
Soavam as alvoradas fogueteiras, ouvia-se o primeiro desfile da banda filarmónica, abria-se em dor a minha mãe, quando eu perdi, e para sempre, o mais suave e puro aconchego. Nunca mais lhe ouvi o lado de dentro da voz.
Disse-me a espanhola comadrona, que protestei logo de forma tão sonora e rápida, que nem da ritual palmada precisei.
(Durante toda a minha vida, nunca larguei esse grito, embora de forma silenciosa, quando o despertador toca. Trauma evidente de quem é obrigado a levantar-se mais cedo do que a sua natureza pede.)
Foi comunicado que era absolutamente uma rapariga, perfeita e limpinha.
Ao tal ouvir, um másculo e conhecido figurão do toureio e criação de touros, disse, com a elegância e desprezo que sempre notei em tal tribo:
estas fêmeas só dão gado rachado!
Após tradução, que o tom cheirava a despeito, o meu avô muito estrangeiro presenteou-o com um valente murro nos “quêxos”. Tombou-se-lhe a virilidade pela força bruta, respeitosa e alta do afecto.
A prima C., conhecida pela Dama das Camélias
mulher votada ao melodrama pessoal e alheio, como forma frustrada, mas recorrente, de sedução ao sexo oposto, desejou que eu não morresse, coitadinha, como o meu irmão antecessor.
A irmã dela
que não precisou de compaixão para casar cinco vezes com maridos por ela escolhidos (e após rejeitados), entre vários pretendentes, entrou em conflito histriónico com tal pessimismo e alvitrou que havia de ser saudável, brava como o primeiro choro. Com sangue na guelra.
A vitima Camélias chorou mais uma vez de infelicidade sem que ninguém lhe valorizasse a grandeza da alma, a irmã mandou que se abrisse uma garrafa de bom vinho, símbolo do Outono, bebendo-o e partilhando-o em sonoras gargalhadas.
Os noivos maldisseram-me
por ter causado tanto alvoroço e noite passada em branco pelos convidados e por uma parte dos padrinhos não estar na cerimónia, ou sejam os meus pais.
O bispo,
bocejante,e eclesiástica e teológicamente acostumado a observar e reflectir sobre as consequências do pecado, disse que com tanto fado, música e multiplicação de ceias, pouco ou nada se dormiria.
Com ou sem nascimento.
Por quem teve alguma curiosidade de me ir ver, fui chamada de batata albina, obeso anjo barroco, hermosita, olhuda, beautiful blonde baby, careca, grandalhona, sweetest, pastel de nata inchado,berrona, miúda, gaiata, niña, nova menina, mamona,cara de papa Nestlé.
Minha mãe pôde finalmente dormir
quando os sobreviventes foram para o casamento e depois do meu avô muito estrangeiro ( pouco crédulo em coisa alguma mas respeitador das pátrias tradições e provavelmente desejando assim melhor sublinhar a sua ascendência no meu nascimento) me oferecer uma pedra alentejana em honra da mística e das cerimónias de 21 de Setembro em Stonehenge.
Que eu tenha dado por isso e até hoje, a moeda da cigana e a pedra do avô muito estrangeiro, nunca se deram mal, lá na caixinha, onde, em silêncio, trocam histórias, seguramente muito mais sábias, antigas e futuras que as minhas.
Disso, não haja qualquer sombra de dúvida!