terça-feira, 31 de março de 2009

Segue este em reprodução da conversa que tive ontem, ao jantar, com criatura desconhecedora destes performativos assuntos mas com o dom estimável da curiosidade, a quem tentei explicar, de forma simples, a história da arte que quase toda a gente pratica, mesmo sem saber que a está praticando e que invade muitas das outras onde gestos e expressões são determinantes para avaliar ou descrever comportamentos humanos.




Jantar da expressão indiscreta

Disse-lhe eu que tinha ido a Mérida a convite da excelentíssima presidente de um júri, pessoa que já lá vão anos e anos, também se interessou e praticou a ancestral arte da pantomima misturada com a dança ou não fossem artes historicamente irmãs de traços fisionómicos parecidos.


E por acaso tal cidade, com tanta Roma nas pedras, vem mesmo a calhar ou não fossem os romanos, em geral, amantes de tal arte silenciosa, com excepção de alguns imperadores que viam na expressão facial e corporal dos profissionais da farsa, criticas que o seu parco senso de humor não suportava.

-Então a pantomima não é igual à mímica?

Não!
E segue exemplo que é, quanto a mim que estou farta de dizer que não sou dada a teorias palavrosas, a melhor maneira de explicar o confuso:


uma pessoa pode fingir que se está a despedir de outra à porta. Faz adeus. Isto é mímica. Mas se conseguirmos perceber através da cara ajudada pelo corpo se ficou desgostosa ou se pensa… livra, até que enfim, estava a ver que nunca mais… é pantomima.

Ou seja a mímica representa acções e a pantomima sentimentos.

A pantomima utiliza muito mais as habilidades expressivas do corpo, daí que esteja perto da dança, embora esta esteja sujeita a ritmos, marcações de tempos e espaços de que a pantomima está livre. A proximidade ou o afastamento entre as duas foi variando ao longo dos tempos.

Durante a Idade Média, a pantomima licenciosa e descarada no seu tratamento das coisas do espírito e do corpo foi proibida.

Só com Isabel, Elizabeth se não se importam, I de Inglaterra, pessoa dada às Artes, se restaurou o hábito de ter bailarinos pantomineiros na corte.

Consta que adorava ver, entre pavanas, chaconas e galhardas, contar histórias do dia a dia e ver-se imitada.

Nasceu assim a, tão terra-a-terra, entre dramatismo e a sátira pessoal e social, pantomina inglesa.

Saltando no tempo, toda a gente conhece os seus mais ilustres representantes em cinema sem palavras: Charlie Chaplin,


Buster Keaton ( minha paixão eterna)



e Rowan Atkinson, mais conhecido por Mr Bean ( quanto a este, enfim, admiração profissional com amor dispensável. Credo, coitadinho).


Vejam-se os trejeitos corporais e a força da expressão facial destes três senhores que não finjem que estão a fazer as coisas (mimica) porque as fazem, mas que nos dão a conhecer, calados, o que lhes vai na alma ao faze-las.

Os franceses também são grandessíssimos pantomineiros com profusa história mas de outro género. Mais fantasioso:

a base da inspiração está em Veneza com o lacrimejante Arlequim de cara pintada. (A história das máscaras e o motivo porque as bailarinas clássicas se maquilham fica para outra altura.)


No século XVIII, existiam os Ballets d´Action, uma mistura perfeita entre dança e pantomima. Ao longo das doze ou catorze horas que durava um espectáculo, interrompiam-se pulos e outras habilidades e, ao som de, p.ex Lully, os bailarinos descansavam braços e pernas com pausas em cenas mais estáticas que até permitiam (eventualmente) assento. Alguns chamam-lhe representação, outros não. Mas faz de conta que assim:


Esquecendo-se desta história, muitos se escandalizaram quando em Paris, meados do séc. XIX, Philippe Taglioni, no Ballet Clássico por excelência La Sylphide, introduziu a pantomima. Seguiu-se-lhe a Giselle.



E, já agora, está em cena, em Lisboa no Teatro Camões, Coppélia pela Companhia Nacional de Bailado, que é magnífico exemplo do exposto,

como o foi a peça Four Reasons de Edward Clug

a fazer lembrar tanto o sonho de Étienne Decroux, professor de pantomima, de criar marionetas de músculo e osso. Estava eu a ver a dança e a rever as aulas do sonhador em vídeo (que não sou assim tão velha para ter assistido ao vivo), que até me deram apetites de para saltar para o palco e ir fazer companhia, artroses e mais dez kg incluídos, aos bailarinos. Perdoassem-me eles o impulso do entusiasmo.

E quem for dado a cinema tem o fabuloso Les Enfants du Paradise com toque etéreo-dramático-pungente ainda herdeiro do pingar da eterna anemia da estética dos pré-rafaelitas

e protagonizado pelo actor especialista na função pantomimica francesa Jean-Louis Barrault.



As minhas desculpas a quem gostar do género, mas compreenderão que sou mais escola americana e alemã mais a inglesa, ou seja, para uma utilização mais “expressionista” do corpo, vinda do movimento Korperkultur, que palavrão alemão dá sempre um ar sério e rigoroso à coisa, de que bailarinas/coreógrafas americanas como Isadora Duncan, Martha Graham ou Doris Humphrey foram seguidoras.


Já agora, outra vez, para que o título do blogue faça sentido, mais digo que, dizem, as mulheres são mais criticas a ver pantomima que os homens. Parece que têm uma maior acuidade a ver pormenores nas expressões e delas fazerem interpretações. Parece que vem daí a tão temida intuição feminina ou, em outra versão, o dedinho que adivinha.

Talvez tenha sido por isso que, maldosa e calculadamente, pedi que a sessão fosse atrasada e, enquanto fingia, pantomineiramente, que conversava com os meus pares, fui olhando para os concorrentes em pose de gestão do nervosismo. Meio caminho andado para ver a ponta de potencial talento para o fim a que a audição se destinava.



Por esta ou aquela razão, foi preciso desempatar, escolher.

E não é preciso qualquer audição ou especialidade para, nós, agora cá deste lado do julgamento e da escolha, deixármos Mérida com a sensação de angústia da incerteza.



Porque ninguém tem pretenções a ser Deus, um Deus qualquer,tanto faz, para sem dúvidas decidir sobre a arte ou o futuro.

Com dança ou pantomima ou sem elas, cada expressão tem um mundo próprio dentro.Desconhecido ou nunca revelado.

Venha a sobremesa.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Postagem profusamente ilustrada, sonolenta e ataviada nas ideias, por via dos males da ibérica primavera que, como em todo o lado mas mais descaradamente, antecede os meus males de verão, ai de mim, coitadinha, que sou filha genética, com comprovativo científico, do frio.

Ai, se ao menos elas, as malvadas, não existissem…


0.45am
Apago a luz depois de ter percebido, não muito claramente dados os halteres de peso progressivo nas pálpebras, que Patrícia Highsmith se agarrava à dualidade de Proust para a escrita de pequenos contos onde se vingava das diferenças em relação ao que sentia e o que o resto do mundo esperava que ela sentisse.

1.30am
Sou chamada, lá do alto dos meus sonhos, por um bzum, bzem, bzum em volta do ouvido, se bem me lembro, esquerdo, embora tal pormenor de orientação anatómica não seja relevante para a questão. Na mão direita uma aureola vermelha, ainda agora abstractamente desenhada, justifica a comichão. A mosquita das longas pernas, do alto da parede, lambe os lábios de agulha e gargalha de satisfação.


Não sou pessoa dada a saudosismos, a nostalgias e, do passado, sempre que me lembro e perco a fragilidade de ser humana, aproveito lições, de preferência em letras gordas. Como diria quem me ofereceu um chapéu verde num restaurante chinês, sou mais virada para o futuro. Para andar para a frente.

Mas a mosquita traz-me a lembrança de primavera onde a natureza, nevada enquanto na gravidez de inverno, acaba por parir campos verdes, sol que acaricia como um amante sereno e sem pressas, luz de flamengo barroco que doseia, com sensatez, a euforia e o recolhimento…


2. 45am
A mosquita está obviamente mais gorda! Já não consegue subir até ao tecto! Gostou do joelho. E da coxa. Deve ser tenrinha. Mas mantém a agilidade na fuga ao torpedo de fabrico Almofada. Deve ter olhos até nas patas.

Jantei pouco. Muito pouco. Tenho fome.
Apesar de ser primavera, lá a noite pede todos os aconchegos. Talvez me apetecesse, protegida por um grosso casaco acolchoado, parar numa qualquer tasca à beira da estrada. Daquelas onde se juntam todos os viajantes, acabadinhos de chegar de um sítio irregular da vida.



Alguns contarão histórias míticas de orgulhos familiares cumpridos.


Outros irão em fuga para o sítio onde moram sonhos grandes de outros tempos, agora já partidos em mil pedaços, como o cristal.



Outros ainda apresentarão poses com lendas ilusórias nos desejos.


Há sempre quem conte acontecidos, mesmo que ninguém ouça, como se estivesse num concurso de especularidade.
Não faltarão os que têm nas faces de olhar parado, histórias de procurados, mas com vontade como todos os outros, de uma boa dose de batatas fritas com ovos estrelados, baked beans, batido de…gelado…naaaataaaass….



3. 50 am
Afinal chegou todo o regimento. Houve pasto no braço.
Lá estão elas, que me disse o biólogo que são elas que picam. Vampiras inestéticas. Eles, os mosquitos, limitam-se à tarefa de fertilizar. Nada que alguns outros de várias espécies, de maiores a enormes, não se limitem a fazer.

Será que tanto Fenistil não me fará mal? Será que envenena?

Pareciam de filme, aqueles amores fogosos de manifestação e exuberância inadiáveis, rádios aos berros…nós ríamos, comentávamos que era da primavera… os ninhos da primavera...


as bestas microscópicas já não devem picar mais…estão de barriga cheia, a fazer a digest….

5. 10am
Porra! Coño!*****!******! Como é que vou pôr creme nesta parte da orelha? Daqui a pouco pareço o homem elefante.
Em Espanha são 6 e 10. O David deve estar a embarcar para lá, para a vida nova.
Oxalá tudo lhe corra bem.

Não lhe vai faltar inspiração, logo a ele que gosta de desenhar roupa tendo como fundo histórias anónimas, de holofotes fundidos.
Falámos-lhe tanto nas raparigas e rapazes que se vêem nos alpendres, a apanhar o ar limpo e fresco das tardes de primavera. Como aquela escultora intrigante e silenciosa.


Ou o rapaz da janela, tão estranho. Quase literário

Amanhã tenho que tirar o edredon. Que calor, credo.

Pronto, tu não me picas mais. Que nojo…1 a 0 no marcador!

Não, ali mais para norte, não há moscas nem mosquitos. Estupores. Pode-se ficar a gozar a limpidez da atmosfera primaveril sem intrusos incómodos.
Só havia formigas viradas para as morais das histórias. Não me lembro se havia cigarras bichos. Só me lembro do canto duma espécie de grilos: um canto alegre e despreocupado como uma gargalhada espontânea…que a vida é para ser vivida à superfície das afrontas. Tantos contrastes fazem a riqueza...

7. 30am
Que pi-pi-pi-pi a piscar será este? Mosquita ampliada? Do Parque Jurássico dos mosquitos? Filme de terror? Spielberg à solta? Quando for dia… ainda é cedo...só mais cinco minutos...

8.am
Sei lá se estou acordada a sonhar ou se estou a sonhar que acordei.
Talvez a primavera, com todo o seu carisma de renascimento, perca a nitidez racional das coisas.
Quem é que nasce pleno de pensamentos lúcidos? E morre cheio de certezas?
Lá terei que voltar, picadinha de todo, para a vida tímida, contrária às vontades.
No sítio onde a primavera é fresca e o verão, tão púdico e discreto, veste um casaquinho a guardar recato, alguém há-de gozar o esplendor da cor.
Livre, numa estrada irresponsável. Aparentemente sem curvas. Como se o destino não tivesse outonos.

Ou qualquer outra estação.





banjo fever - highway cowboys


terça-feira, 24 de março de 2009

Advertência chamada credo…cruzes, canhoto, assim tanto também não:

Quem ler este não se assuste: foi escrito, agora, para servir de mote interpretativo numa audição para uma espécie de dança. Fosse eu uma das três criaturas que o terão que traduzir com o corpo e apanharia o avião para me assassinar.
Baseia-se, em recurso aflito e antes de matar quem me fez a encomenda, nos diários privados da grande Patrícia Highsmith, que ando a ler, num conto de Dorothy Parker e, talvez a mais residual e comovida parte, venha dos escritos de uma bailarina americana, internada num hospital psiquiátrico aos 22 anos. As três viajaram pela loucura, com descrições da paisagem do outro lado, que nunca se esquece.

A voz do pássaro luminoso.


Não olhe assim para mim!

Faça como os outros: finja que escreve do alto da sua sabedoria!

É casada? Tem um marido arrumado na prateleira de um amor que sonhou?

Tem filhos virados para o sucesso? De fato e gravata durante a semana e de camisa aos quadrados fora das calças nas folgas? De curso tirado em altura própria, por quem as raparigas suspiram futuros para além da morte?

Tem alguma filha, ai sim, mais nova que o rapaz, boa aluna, exímia no tricot e arrumada na casa, bonita e serena como um anjo dado por Deus como prenda pelo seu juízo ordenado pelo esquema da multidão?


Eu nasci de padrasto sentado na sala.
Já nasci substituída.

O meu pai natural era caixeiro viajante na venda de desgostos. Andava de terra em terra com uma barraca de títeres. Sou filha de um espermatozóide ambulante e de um óvulo apaixonado.
Quando me veio ver, trazia um pirata numa mão e um soldado na outra.
Tinha cara de cágado com bigode como aquele homem que há pouco lhe trouxe aquele papel para assinar.E fazias vozes ridículas.

Apeteceu-me matá-lo outra vez. Matei-o muitas vezes. Escrevi, no papel pousado dentro da minha cabeça, mortes infindáveis.

Não sei que idade tinha eu então.


Nunca me medi pelos anos que me passaram pela pele.


Ali nunca tive dias diferentes e quando os dias são iguais deixa de se fazer anos. Para que é que se precisa de um marcador de páginas quando num livro elas estão todas em branco?




Só fiz anos até aos vinte e dois. Acha muitos? Depois meteram-me aqui. Não sei, não me lembro. Talvez tenha morrido. Mas não me lembro de semelhante coisa. Acha que se uma pessoa morrer se lembra que viveu?


Que pena! Era tão inteligente! As enfermeiras falavam de mim com se fala de um electrodoméstico. Nunca falaram de si como se fosse um frigorífico, com essa cara de fogão?
Queimei as minhas ideias com os livros que li e escrevi.
E com o voo dos pássaros luminosos que, na dispensa escura onde a minha mãe me fechava, desenhavam círculos.



A minha mãe sentava-se na cozinha a ouvir folhetins. Quanto mais se esquecia de amar, mais absorvia aquelas vozes sem corpo. Acabavam sempre com
-I love you so much, honey! marry me!
- Oh sugar, i´m your baby for the rest of my life".
-Kiss me
e entrava uma música com som de acorde final, encharcada de violinos felizes.



A minha mãe via retratos do Gary Grant em revistas de papel amarelo. Como aquelas que você gosta de ver para saber como se viveu antes de ter nascido. Com essa mania de nascer ao contrário.
E da Vivien Leigh que não precisava como ela da pasta de cremes da Elizabeth Arden com bichos que lhe comessem a flacidez da papada em noites de luar enquanto o Bing Crosby cantava com voz de amaciador de sonhos.

O meu padrasto ouvia os discursos do Roosevelt para a cura do mundo feito prato partido.

O amor deles só sabia andar em marcha atrás: um motor a pôr cada vez mais longe a linha do horizonte numa espécie de manobra de urgência para salvar a espécie humana dos desiludidos.



Um dia, o meu padrasto mostrou à minha mãe o cabeçalho do New York Times. Conhece? Ainda existe?

Tudo porque eu estava a dar nomes às criaturas de Deus que eram os feijões a passearem no prato por ordem do garfo.

Dizia assim: Women´s personalities changed by adrenal gland operations.

Não sei se foi por isso que o Dostoievsy me mandou fugir, nua pela neve de Dezembro, para Paris ouvir música e dançar longes.

Não me lembro se foi ele se foi o Thomas Mann. Ou o homem que punha vampiros nas noites calmas das pessoas tranquilas.



Não me lembro quem me falou com voz de pássaro luminoso.

Foi você?

Já escreveu tudo enquanto me imagina, com tinta de resumo, sentada à sua frente? A juntar pedaços soltos de memória para me construir? Para me mandar?




Como é que se chama?

Eu sei! Eu digo:
o olho desse lado chama-se Manuel, o do outro lado Francisco, o nariz António, o ombro do lado do Manuel chama-se Carlos, o do lado do Francisco chama-se……… !