Relato de uma viagem veloz a uma arte aberta.
Sevilha, luminosa, está ainda mais cheia de vaidade do que é hábito.
Durante um mês recebe gente entusiasta e estudiosa, antiga e contemporânea, ortodoxa e inventona, teórica e prática, mas toda amante do flamenco. Mais umas hordas de turistas com fome de exotismo moreno latino. Chovem americanos arrastados pelo espírito mítico e patético de Hemingway. Manda o álcool que berrem um Carmen entaramelado a todas mulheres. O que algumas respondem, não cabe aqui, que é sítio de respeito.
Lá explico à Eva, suada do obrigatório aquecimento vocal e muscular, tão amiga de fusões de géneros, que botei o No me arrepiendo de ná e que, sabe-se lá porquê, ora canta só trinta segundos ou dois minutos e trinta e um, coisa que não lhe tirou as ganas nem duende para que se lhe soltasse a alma rouca e o corpo furioso. Pareceu-nos ouvir as palmas das mãos frágeis da Edith Piaf .
E, ia o espectáculo a três quartos, jaleo ao rubro, saímos para o reino de um amor antigo.
O tal cimentado com a água doce dos olhos, tantos já são os anos de sobressaltos e cumplicidades entranhados. Nos bastidores, quem não conhece, estranha que eu, mais velha agora seis anos, que muito em breve serão reduzidos para cinco, seja chamada de Madre, cariño.
Histórias antigas da que começou como bailarina clássica, foi desviada por duas Madres para o contemporâneo e que semi reformando-se tem agora mais tempo para inventar um flamenco afoito, baseado na história das vielas clandestinas mas projectado já para uma evolução futura.
A criatura vai demonstrar as variantes de uns passos. Cheira-nos tal coisa a uma espécie de tese de doutoramento.
E Madres e Padres sentam-se na plateia. Cada um com seu tique e aflição. Eu passo as mãos pelas minhas coxas que sinto inseguras e trémulas, do meu lado direito palpa-se o estômago, do esquerdo já me mete nervos tanto alisar da sobrancelha e na cadeira da frente rola um brinco entre o polegar e o indicador.
Acendem-se os holofotes e os corações unem-se nos batimentos.
Sabemos que ali, na ponta, naquele momento, há uma solidão profunda. Como há em todas as pontas por muitos agrandaté que se abracem. É o que todos sentem.
E enquanto os tiques vão morrendo, vai nascendo o orgulho. Quem nos dera ter olhos de mocho para ver o que os senhores e senhoras vão escrevendo nos caderninhos enquanto nos bastidores se troca a bata de cola, ou seja, de vestido com cauda .
O público aplaude de pé aos gritos. Ay, mi niña más rica!
Descansa os pés e é bom que vá mudando de cérebro.
É uma loucura à solta feita corpo magoado.
Mais uma vez surge o baque do porta bagagens. Mais uma vez os carros se separam.
A noite não tardará e ouve-se uma voz que soa a solitária ,que liga com o rolar do motor, com a lonjura e com as cores do campo.
Amanhã, que é agora, põe-se fim ao intervalo dos dias iguais.