terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Sei lá... férias...






Não sei se é por ser céptica mas não acredito no Pai Natal. Não me lembro quando deixei de acreditar, mas foi antes, acho eu, de saber os rituais que até há bem pouco tempo se praticavam para celebrar a data. Crueldade atrás de crueldade que tudo quanto não fosse cristão era bobo da corte na celebração com memória pagã do solstício.

Também acho horrível que se embebedem perús contra a sua vontade. As bebedeiras, como qualquer outro acto, devem ser de livre vontade. Ainda bem que ninguém se lembrou de embebedar o bacalhau. Felizmente, para ele, já está morto. E felizmente que já não tenho que o cozinhar para mostrar o prato tipicamente português a pessoas que às vezes, nem sabiam onde ficava tal rectãngulo geográfico. Com um bocadinho de cultura, lá se chegava a parte escondida da Espanha.

Isto tudo para dizer que não gosto do Natal:

das boas vontades e generosidades sazonais;

da caridade encomendada na expiação dos pecedos próprios, ou tipo poupança reforma para investir na boa vontade do S. Pedro;

da alegria forçada em rever pessoas de quem ninguém se lembra mas a quem por obrigação se chama família, ou seja, do nosso sangue, como se o sangue transportasse células amorosas;

da histeria das compras obrigatórias;

dos Pais Natais de plástico a treparem delinquentemente pelas varandas e ainda menos dos que dançam com o rabinho a dar a dar, alimentados pelas pilhas Duracell (até os imagino a serem fechados no armário no dia de Reis e a lá continuarem a dança, às escuras, como se filme de terror claustrofóbico se tratasse, até ao Natal seguinte).

Não tiro férias nesta altura por causa do Natal, mas porque me apetece ficar na cama quando o frio é suposto começar a entranhar nos ossos e também porque durante alguns anos não tinha outro remédio senão bulir a triplicar. Assim durante alguns dias e, tirando algumas obrigações, posso ficar a flutuar com a ilusão que todos os relógios elouqueceram, ou seja construir o meu próprio tempo sem que o tempo me construa ou destrua a mim.





E para ouvir o som do silêncio. Ou a música do Inverno. Aqueles sons intimos que fogem do verão.

E para dar tempo livre ao trabalho a que o gosto recusa as horas fixas.

Sei lá se alguém nasceu para estar preso até morrer. Sei lá se haverá alguém que goste de estar submisso a despertadores. Sei lá quantas pessoas não sonham acordadas com a vida que não têm. Sei lá quantos têm a vida com que nunca sonharam. Sei lá...







Por tudo isto, permitam-me que vista outra roupa, que abra o cadeado, me levante e vá tomar um chá quente, ou outra coisa que me apeteça, à lareira, longe, lá para as bandas do que espero ser.

Até para o ano.

Se possível, respirem.

Fundo, de preferência.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Telefone







É esse o poder do telefone, o de guardar a voz que se espera como se a contivesse dentro e fosse dono da vontade de a soltar. Olha-se para ele e pede-se-lhe que a anuncie.


Tudo partiu de um post da Nnannarella, nas extintas Costelas de Adão. Comentei e alguém do outro lado do fio, com voz embargada e castelhana, me pediu que completasse o rumo ao texto. Sem pensar para quem ou quê. Fiz-me letra de saudade. Alguém iria dançar uma dor arrastada de silêncios, de todos os silêncios que se ouvem nos olhos de quem espera. E já dançou. Com o corpo já muito aprendido.









Disse-lhe no caminho que a saudade é aquela vista habituada a olhar para o longe, para a fronteira entre o mar e o céu, à espera que brancas velas venham restaurar a vida. Também lhes disse : a vossa distância é feita de terra, de acidentes geográficos, a minha foi parida no Tejo, água corrente até chegar à foz do desejo. É no sítio onde se cresce primeiro que a paisagem da ausência se define. Depois vão-se aprendendo outras formas. É espiral sem parança nem poiso. Aprende-se a gostar, a amar e chega-se ao conhecimento intimo do que falta.


Lá chegamos, neve em redor, lá vestimos os vestidos para ocasião solene. Pretos por noite e empatia. Também será um bocado de mim a entrar naquela arena de foco ambíguo entre a atracção e o temor. Quem o saberá definir melhor, que as pernas fracas de tremuras ou os braços na direcção do desafio dos voos, ainda que agarrados ao chão.







Lá a deixámos. Lá a vimos subir as escadas, lá a mandámos à la mierda, cumprindo a tradição com o coração aflito, disfarçado de calma, a pôr a voz clara, os olhos enxutos, tantos anos depois de já ter largado o tique, que mantém, de descontrair os dedos, de lhes dar mando de obediência.









Começa a ouvir-se a voz a modular o texto, nem o conheço assim dito do exterior, barro que a interpretação transforma. Para melhor. Não tenho aquele dom de martelar as palavras até doerem e o meu corpo já se esqueceu da forma do chão









que o desenho da luz faz líquido.


E damos as mãos, na plateia, no meio daqueles olhos atentos , estranhos e críticos.



Ali, naquele corpo que se rebola, contorce, expande, contrai, grita, ri, está a nossa história.

Comum e partilhada ao longo de anos. Já quase não nos lembramos do enredo.







Depois a música de Philip Glass, concerto para violino, ecoa-nos nos ouvidos, faz a viagem até à memória. Agora com outros movimentos, talvez com outra sabedoria ou com outro encanto.


Ouvimos os aplausos do lado de cá, enxugamos a lagriminha insolente, naquele final feliz em que o telefone anuncia a voz que há-de pedir, sonolenta e louca que te olvides de morrir. Seríamos lá capazes de deixar alguém triste...sem promessa de saída para um laivo que seja de felicidade.





E cumpridas as formalidades, voltamos ao hotel para a festa de quem se conhece. Largamos vestes, voltamos a ser aquilo que sempre fomos: pessoas que andam com os amores nas mãos, aqueles que o tempo nos ensinou a ter sem luvas nem resguardos. Talvez por isso a Lola tenha comido o seu quinto chocolate sem ralhos. Ou a mais nova tenha desmanchado a cama com pulos e cambalhotas. Ou eu tenha massacrado a protagonista com almofadas de penas. Vingança latina naquele mundo tão asséptico e ordenado, tão vazio de santa loucura.








E, desta vez, Doña Pilar, conseguiu que Deus, na sua indiferença, a ouvisse: ia rezar um terço para que tudo corresse bem. E correu. Nem os terroristas puzeram uma bomba nos risos que ainda não esquecemos de espalhar.




Hasta luego, telefonem-me quando chegarem!
E até hoje os nossos telefones não têm sido cofres que guardem para si as vozes por onde a alma espreita.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Doña Pilar






Doña Pilar parece este pássaro, em versão de desenho infantil. Muito baixa mas com perna magra e alta e, por problemas da coluna, tronco quase esférico com acentuada corcunda. Os olhos são pequenos mas espevitados, lá atrás das lentes de ver a todas as distãncias. Assume-se como viúva crónica, depois do marido ter morrido de traumatismo craniano, provocado por queda após valente bebedeira na casa de passe onde tinha frequente garrafa comprada como se de assinatura se tratasse. Era remotamente parecido com o Júlio Iglésias, embora fosse mais baixo, mais gordo e tivesse a cara redonda . Diz ela.


É porteira em Madrid e dá lustro vezes sem conta ao início do corrimão do prédio, ou seja, cada vez que pressente movimentação não esperada à porta do elevador. Fora ela barroca e criança, porque espanhola já é, e a imagem seria esta:









Muito tem que espreitar e polir porque ali moram pessoas estranhas, com vidas fora da dela, lá nos confins do cinema, do teatro , del Ballété, da moda e do flamenco e, de vez enquando, até uma portuguesa que cada vez que chega está mais magra e que por isso nem se sabe como ainda não virou esqueleto integral, própriamente dito, anatómico, tipo radiografia em positivo.

Foi o que aconteceu da última vez: que delgadita está usted! Faz de conta. Doña Pilar, por função e respeito trata todos os condóminos e visitas por usted. E sempre pergunta como está Lisboa, como se de pessoa de família se tratasse.
Doña Pilar está sempre informada de todas as notícias do mundo, emitindo opiniões convictas e formadas:
o Bush é parvo porque comeu muitas hamburguesas com queijo quando era pequeno;
Zapatero é seguramente marícon porque tem os olhos azuis e cara de senhora;
Doña Letizia está incorporada do espírito da Princesa Diana, mas nunca será projecto de santa porque defende os de Barcelona;
Figo é o melhor homem, filho, pai, marido do mundo, apesar de não ter nascido em Espanha;
D. Juan Carlos reina Espanha a partir de Portugal e através do telemóvel, não chega aos calcanhares de Doña Sofia, a grega, que, apesar de não ser espanhola é tão inteligente que parece nascida em Sevilha;
o Almodovar engana muito bem porque nasceu mulher e fez operação para ser homem;
debaixo de cada balcão da loja dos chineses, estão vinte ou mais crianças a fazer colares, más feos aún que los marroquís....

Tais opiniões formou-as ela com base no tal programa sabor a ti, compartilhadas por Argimiro, o dono do café na esquina e cujo sonho era ser figura pública, de preferência comentador político para dar cabo dos bascos e dos catalães sem esquecer os galegos. Aqui vai o meu modestíssimo contributo:




Merece porque é pessoa muito afável e tem um caniche branco chamado Luis Figo, porque nasceu no dia em que tal personagem saiu de Barcelona e foi para o Real Madrid. Sugere ele que devia ser dia festivo, ou seja, feriado municipal.
Doña Pilar é dada a catástrofes e mal chovem uns pingos prevê que Madrid vai desaparecer em água por causa do efeito de estufa. Ou, se não chove, vai ficar sequinha como África.
Por isso todos os domingos, pôe a sua mantilha preta e vai à missa, conversar com Deus, que é espanhol, a ver se ele ouve os seus alertas. Às vezes diz que não consegue por falta de concentração. Nós achamos que se trata de monólogo.








Não é esta senhora mas faz lembrar. Tem o mesmo fenótipo espanhol de devota exemplar.
Doña Pilar diz que é surda, mas sabemos que é só para o que lhe interessa. Uma vez, uma nossa visita que ela não conhecia disse, em voz muito baixa, que já se sabia que D. Juan Carlos acabava de ser pai de um filho bastardo cuja mãe era uma emigrante russa que fazia a limpeza na cozinha real, e, largando ela o brilho do corrimão clamou por Santa Madre de Dios, coño! Son todos iguales, mire usted lo puñetero. Não lhe chegou a perspicácia para ver que estava tudo combinado e lá se desfez o engano antes que o boato circulasse e fosse ter ao noticiário da Antena 3.

Também disse, no verão passado, que os portugueses inventaram o caso Maddie, para chamar turistas ao Algarve.. Na aldeia dela, se fossem espertos faziam o mesmo, mas os espanhóis nunca inventariam tal coisa.
Ay Doña Pilar que cosas dice usted, que barbaridad! Altiva, disse que era a pura verdade, porque na televisão estavam sempre a mostrar as paisagens com aldeamento. Logo a seguir pediu muita desculpa e no dia a seguir levou um tabuleiro de rosquillas com travo a limão que fizeram as delícias dos ofendidos.






Mas Doña Pilar sabendo, como sabe todos os horários rotineiros dos habitantes e sendo de intuição guardiã apurada, já salvou a vida a um, que não indo passear o cão à hora do costume, estava estendido no chão com ataque cardíaco. Depois de internamento retomou o seu horário habitual, encharcando-se em chá de folha de oliveira malaguenha. Afiança ela que é curativo para todos os males da circulação.
Também se oferece para cuidar dos animais e plantas quando os donos vão de viagem. E o que mais preciso for.


E diz-se, cá no nosso mundo, que serviu de inspiração para a porteira do "Fala com Ela" do Almodovar. Sei lá se é verdade...tendo sido ou não, lá continua. E já é um hábito chamar o elevador e olhar para a esquerda, para a porta entreaberta e ver um bocado do sugestivo quadro espanhol que concorre, nos lares, com o menino da lágrima.


Ao fim e ao cabo, nunca ninguém, provávelmente, limpará com tanto esmero e notícia aquele corrimão num prédio tipicamente madrileno, ou seja, espanhol. Se algum dia tiver dedádas é porque finalmente, com toda a concentração, está a ouvir as últimas novidades directamente da boca de Deus.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Coño, mejor así?





Pode ser-se genial nas escolhas. No saber olhar chamado descoberta.


E Pedro Almodovar é mestre em escorregar o olhar para o que merece ser visto e sentido.

Esta senhora que aqui vos trago é a Antonia San Juan de sua graça. Representou uma das personagens mais envolventes, sábias e conseguidas criadas por Almodovar, a Agrado.


Por enquanto vou dizendo que nasceu nas Canárias e aos dezanove anos foi de malas, bagagens e aventuras para Madrid. Actuou em muitos filmes e peças até aos trinta anos, idade negra essa que a fez comer o pão que vários diabos amassaram.

Fez o pino, rebolou-se, sacudiu misérias e tristezas e montou um espectáculo itenerante por discotecas, pubs, bares, teatros, enfim, onde tivesse espaço para estender o talento.






Sorte a minha de a ter visto, nos intervalos do meu namoro oftálmico com a Carmen Maura e de Grants na mão, nessa peça vadia chamada Treze Mujeres. Sózinha, de vestido preto e cadeira, desempenha treze tipos de mulheres actuais, variando entre a ternura e o sarcasmo mais acutilante. Lá estava a top model, a apresentadora de televisão, a feminista desvairada, a dona de casa atraiçoada pelo marido, a virgem, a puta. Durante uma hora e tal, secam-se os olhos de espanto, inundam-se de lágrimas, acentua-se a ruga do riso, mas sobretudo pensa-se. É o que ela quer, que se pense a rir, que se olhe em volta e se acorde.







Alma gémea nos propósitos, Almodovar descubriu-a exactamente aí. Ele que tem fervor por mulheres e desconfiança nos homens. Lá saberá...aquela alma da Mancha, tão cheia de segredos femininos calados, só mesmo o vento os leva para longe da aridez.

Convidou-a para encarnar a Agrado, no Todo Sobre Mi Madre, que, a mim, assim em espanhol soa melhor. Filme de homenagens à história do cinema, com amplas vénias a actrizes e em se retratam também tipos de mulheres, com a solidariedade que têm entre si face a problemas, ao contrário dos homens, segundo ele diz.


A Agrado, é uma personagem baseada numa pessoa real , um travesti que foi camionista vai para Paris e volta mulher e puta a exercer funções na Zona de Barcelona. Ao longo do filme vamos descobrindo o conhecimento profundo que aquela mulher sofrida tem do funcionamento da alma humana. Tudo não é mais do que as coisas que já viu. Compreende e dá conselhos, chama-se Agrado porque gosta de agradar e tornar a vida fácil a los demás. Hilariante e ternurenta. Vai procurar emprego decente vestida de Chanel falso, e vejo, vezes sem conta, a cena da espera do elevador, antecedida da conversa na sala da Manuela. Festival de actrizes, louco Almodovar em pleno.

Até a pronúncia lhe fica bem e o kitsch, tão nocturnamente espanhol, assenta-lhe que nem uma luva.






Não ficou a dormir à sombra da fama. Criou uma companhia de teatro, a sua maior paixão, escreve textos, realizou curtas metragens e continua de olhar atento virado para o mundo, de olhos em riste para os subterrâneos das aparências. Ninguém a vê com protagonismos, nem vida pessoal devassada nas páginas da Hola, nem espaventos no "Sabor a tí", programa da tv onde pavões pagam qualquer preço para que o público teça romances acerca deles. Quer ser cronista de vidas e sociedades, como os antigos, ao longo dos séculos.

Asas para voar não lhe faltam, assim não nos falte a capacidade para nos rirmos de nós.




segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Só cinco?

Ai que aflição de escolha...
mas pronto e assim de repente, começamos pela dança:





Um americano em Paris
Gene Kelly, melhor sempre a solo que em Pas-de-deux, teve a sina de ser considerado o segundo em tudo em favor de outros, dos primeiros. Foi bailarino, coreógrafo, cantor, realizador e actor e, até este filme foi considerado o segundo a seguir à Serenata à chuva. Apetece-me ser contra a corrente das classificações. Apetece-me recordar, em dança, a obra de Toulouse-Lautrec. Assim:






E, Gene descobriu esta donzela em Paris, Leslie Caron, bailarina clássica e convidou-a para contracenar com ele. Nunca foi boa acriz, dizia-se dela que parecia estar sempre em ensaio ou com estratégia de palco, tensa e demasiado concentrada. Chamaram-lhe velha aos vinte cinco anos. Os gangsters do cinema só as achavam novas até aos vinte.






Agora Royal Wedding, com o considerado primo inter pares, Fred Astaire, e também com Jane Powell, coitadinha, também merece referência.






Dele se dizia que dançava por criação espontânea, sem pensar, tal era a fluidez. Mas chegava a ensaiar as coreografias durante seis meses, perseguia a perfeição absoluta. Mau actor, com meia dúzia de expressões, é panaceia a que recorro em dias vazios ou pesados. O maior aristocrata, nem interessa se usava o impecável smoking após a grande crise económica. Quem não gosta de iluminar os olhos em repouso de realidades, ou de virar o mundo ao contrário até conseguir dançar no tecto? Quase acredito que conseguisse.






White Nights. Começo a ficar séria, a pôr os pés no chão, porque aqui se trata de drama intenso, político e pessoal. Junta dois bailarinos inclassificáveis: Mikhail Baryshnicv e Gregory Hines

.



Se do primeiro é desnecessário falar, do segundo pode dizer-se que foi o primor da tap dance, coisa que se tornou quase no ex-libris da dança "popular" americana. Misturou-o com técnica de Ballet, deu-lhe dignidade extra Broadway. E é um filme onde se pode ver, sem vendas, o trabalho das repetições sem fim, mesmo para quem aparentemente, já não precisa de dor no parto.


Saindo da dança, chega o monumento onde se celebram génios, beleza, arte,e loucura: Ludwig da Baviera, de Visconti , assim em grande e junto, que outro não vejo que conseguisse engendrar tal obra.





Ele á análise do Rei Louco, construtor de palácios e patrocinador de Wagner, são os decórs, são os interpretes essenciais na beleza, ou não se chamassem Helmut Berger, Romy Schneider e Silvana Mangano, entre outros.








Vi-o, versão longa, pela primeira vez num cinema, daqueles abertos 24 horas e em que se entra em qualquer altura da apresentação, e fiquei uma noite inteira, com a sensação de que não tinha sequer nascido.



E chega o último, Spellbound, Casa Encantada ou Encadenados (adoro assim em espanhol) do Mestre Alfred Hitchcock,







porque tem o realizador, porque tem a Ingrid Bergman e o Gregory Peck, porque tem os cenários oníricos do Dali, que quem só gosto ali





e se mais não houvesse, porque, visto com os olhos contemporãneos é duma ingenuidade comovedora, tem uma história de amor que serra as infelicidades de ambas as partes, não mete medo a ninguém e tem um final feliz. E não me esqueço da variedade e subtileza dos cinzentos.



Para que a protecção civil não declare o alerta vermelho aqui mando para:
Emma Larbos
Around These Words
Fidelíssima Musashi
Madame Maigret
Capitão Haddock
e não refilem que a culpa não foi minha...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Por aí, tão longe daqui...




Estou na fila da peixaria do hipermercado e a memória entra em trânsito desordenado, rotundas e becos à procura do sítio certo no tempo. Vejo-a a amanhar o peixe e localizo-a. Lá atrás, no colégio. Miúda alta, calada, enfezada, sem jeito para coisa alguma. Saiu das aulas de Ballet porque o corpo descoordenado não obedecia aos passos que têm que ser fixos; saiu das aulas de música porque o solfejo era escrita que o ouvido não entendia e nunca mais a vi até ao meio liceu.


Ficava sentada, encolhida como se um frio entranhado lhe paralizasse os movimentos, à excepção daquele tique de puxar os lápis na horizontal como se os quisesse esticar. Gaguejava e se ia ao quadro, deixava cair o giz continuamente. Olhava para todos os lados, com a aflição de quem tenta encontrar um ponto onde o raciocínio faça sentido e se desenvolva. Numa linha única. Mas não, era melhor a falar calada. A fazer rabiscos ou a escrever palavras soltas.








Soubemos que fora entregue mais por desvario do que por pobreza dos pais a uma madrinha, aquela instituição remediada, vestida de caridade, autoritária como convém aos superiores, cheia de orgulho por ser generosa, forrada de pena pela desgraça alheia, chamada Madrinha.


E esta tinha todos os predicados, viúva e honrada, temente a Deus e ao pároco, boa orientadora da santidade alheia, vigilante de pecados, educadora para o trabalho doméstico (por isso as mãos da afilhada tresandavam sempre a lixívia), e como remediada que se preze gostava de ir ver como se portavam os ricos no S.Carlos e no D. Maria. Talvez daí a uns anos pudesse dizer às mulheres a dias que se não fosse ela a afilhada não seria bailarina ou doutora.








E chega a minha a minha senha e conhece-me. Começa a tremer, como antes, quando lhe surgia alguma coisa inesperada. Não sei quem fica mais atrapalhado mas lá consigo que a chefe, que já me conhece, perceba que é encontro a precisar de cinco minutos de conversa.


Pergunta-me logo de entrada se casei, se tive filhos e só depois o que foi feito de todos estes anos. Respondo-lhe que tenho andado por aí, sem pormenores, só quase por aí.
Ela diz-me que trabalhou numa empresa de empacotar , mas depois conseguiu emprego ali. Ficou com o peixe, a fruta faz-lhe mais confusão.
E que teve um filho aos 17 anos, o homem tinha 40 e ...mais não disse, suponho que é fácil adivinhar.Estuda e trabalha e é bom aluno e vive com ela e trata-a bem, não bebe nem se mete em drogas.


Começa a descontrair, lá fundo os olhos brilham e lembra-se daquela vez em que a filha da actriz do D.Maria foi fazer queixa à directora da turma que a Raquel e eu a deixávamos copiar e nós, as valentes, lhes pregámos um enxerto de pancada e a avisámos que se a cena se repetisse levava outro, fora dos muros, e foi fazer e levou a dobrar.



Começa a rir ainda mais, já leve, quando lhe conto que encontrei a dita Srª Actriz no teatro Camões e me disse, imito-a, a menina é impossível , arruaceira, parecia de rua, e que pensei que gostava de prolongar a habilidade pugilistica mesmo ali, não fosse o respeito pela idade, com a professora de português, em alma, a tal que desculpava dislexias, a apoiar, que era mulher para isso. Que me desculpem a suposição os professores que lerem isto.



Mais duas ou três coisas e despedimo-nos com a vida outra vez embrulhada, lá nos confins do que já se viveu.


A imagem que me fica é a de um ser frágil, doce, que sendo cristalizado nunca aprendeu a voar.

Talvez um dia, quando os netos, quem ela mais deseja, lhe pintarem cores nas asas. De preferência sem lápis nas mãos aflitas.








Porque nestas histórias nunca aparecem príncipes e os sapatos nunca servem em pés doridos.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Nuestra gordita, Lola





Quem entrar na uterina sala dela em Madrid, dará com esta fotografia em tamanho de onda gigante. Lola, nome que tanto adoptou que já fazemos esforço em nos lembrarmos do nativo, é mulher de assumidas carnes, vastas como a alma virada para as lutas com que nasceu. Nuestra Gordita, em pequena tinha o sonho de ser bailarina magra e elástica mas a natureza negou-lho







e ela transformou-o em acção e dedicou-se a promove-las, produzindo espectáculos e outras lides assaz espectaculares. Sem mágoas e de coração aberto que, diz ela, nada compensa várias refeições bem regadas com interlúdios de barras de chocolate. E riso claro auto-irónico pronto. Santa Guadalupe até lhe deu uma filha que, sem pressão alguma, se fez bailarina virada ao Ballet Clássico.
É mulher de viagens sempre com retorno a Madrid, onde o chão latino, como diz, lhe suporta o peso.
Foi figura destacada na discoteca mais in da movida, Alaska, palco dos membros impulsionadores das várias artes, Almodovar, Carmen Maura e arredores sem fim, recolhendo desabafos e distribuindo conselhos, com a sensibilidade, sensatez e espírito prático que maternalmente a caracterizam.

Acumulou a produção de moda com a da dança, defendendo em ambas a perda de exclusividade de mundos fechados.

E tornou-se actuante, panfletária e revolta , e duvido que haja quem a cale.

Farta de ver pais e mães a obrigarem os seus rebentos a tomarem hormonas, a levarem as imberbes criaturas a salas de operações plásticas, a fazê-las chegar à anorexia, estado de saúde minimalista com a morte à espreita, tudo para que os dotes femininos se mantivessem ante menstruais, organizou uma secção fotográfica com bailarinas suas conhecidas e amigas













levando-as nestes preparos a um artigo numa revista da especialidade e à televisão, acompanhadas da suas fisionomias normais, de todos os dias, sem aprumo, sem as técnicas fotográficas do preto e branco em papel duro.
Assim deu a perceber que tudo o que parece está muito longe de ser o que é.


Mais ouviu as queixas da dificuldade em comprar roupa, aquela que, sobretudo nas mulheres, tem tendência a encolher com a idade. E assim lançou desafios a estilistas espanhóis e não só, com a recomendação de não se esquecerem da dilatação abdominal dos homens,








ou seja, não são as pessoas que têm que se moldar à roupa mas a roupa que é que que tem de se adequar às pessoas. A tendência, com o sedentarismo, genéticas à parte, é o reino do XL, bota ela esta sentença enquanto lhe tentamos tirar o Cabury ou o naco de presunto das mãos, olha a diabetes. Palavras vâs.

Gosta da moda sem a ditadura da imagem imposta pelas grandes marcas. Cada um deve vestir-se consoante o que lhe cai bem na pele, deve utilizar a roupa como factor de identificação com o grupo a que pertence, o que é quase inevitável, convenhamos. Talvez o Fernando Pessoa se ainda fosse vivo, não gostásse de ser vestido pelo Jean Paul Gaultier, sei lá, se calhar...porque também o assemelhado ao kitsch tem as suas épocas consoante os valores que se querem transmitir.






Cá para nós e para ela, tanto nos fazia, desde que a isso não fosse obrigado.



Recentemente conseguiu, com o seu grupo, fazer proíbir em Espanha passagens de modelos em que estes não tenham o mínimo de peso e massa corporal exigidos pelo normal desenvolvimento do corpo. E tem organizado desfiles para pessoas de todas as idades e físicos que nem os entrevados octogenários andam nús na via pública. São até um desafio, os corpos
contemporãneamente incorrectos, para o engenho dos estilistas.

Aqui para nós, até tenho medo que Lola emagreça. Sei lá se perderá aquele colo onde gostamos de deitar a cabeça, de nos sentirmos protegidas como crianças de tantos anos, ou se perderá a ressonãncia da gargalhada aberta.
Desde que não lhe faça mal, queremos Lola como é, amputada de si é que não, que é corpo com capacidade para guardar uma infinidade de almas dentro de si.



quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Lá, no outro lado






Com um avião na alma chegamos lá num instantinho, à terra de todas as cores, de todas as línguas, de todos os calmos rebuliços, a mais conservadora onde começaram quase todas as revoluções, desde a libertação dos negros à autonomia das mulheres quando decidiram trabalhar para seu próprio sustento agarradas a livros que lhes dariam crédito à opinião formada.




Podemos cruzar o Mistic River num dos barcos de partida e chegada constantes. A noite faz-se cedo e parece que o céu desceu à terra.



Para ver a constelação de dentro podemos subir ao terraço deste arranha céus e tomar qualquer coisa quente, que o frio ri-se do que faz por estas lisboetas bandas. Atenção aos hollywoodescos helicópetros que nos roçarão a cabeça como aves de rapina.

E podemos ir ao sítio onde tive morada, arrendado ao mês como todos, assina-se o contrato até ao mês seguinte que quase toda aquela gente é nova e de arribação, chega e parte, a falar línguas variadas. Uns saem de saco às costas com o equipamento dançarino, outros carregados de livros, outros de pautas e instrumentos, outros de equações a rechear-lhes os pensamentos, uns sérios outros loucos, uns já sábios outros na promessa e sonho disso.




E não faltarão bibliotecas. Até poderá aparecer um bibliotecário velho e simpático que nos mostre os manuscritos do Damião de Góis, conservados em vácuo como tantos outros. E ficaremos espantados com o que de português existe ali, com todo o respeito e carinho pela história e cultura. Ah, os eternal dreamers, aqueles que chegam à beira do precipicio e empurrados descobrem a maneira de voar. Com a calma da poesia. Veja esta colectanea de poesia popular alentejana





Se quiser, pode requisitar uma cópia e ir para uma das enormes salas. As bibliotecas são formas de dar viagem ao mundo.

Podemos passar depois por esta igreja, onde ensaia uma orquestra. Toca música sacra em sítio apropriado e espantemo-nos...é o Te Deum de Sousa Carvalho. Cá onde ele anda


Se quisermos comprar uma revista ou um livro, podemos ir a esta livraria, muito espaço de saber e podemos até encontrar, já que estou entre portugueses, vários deles. Tantos cientistas, professores das humanidades, das artes, tantos quantos Portugal ignora. Ao menos os espanhóis divulgam em Espanha os que lá, ou noutros sítios, estão. A meu bocado de sangue português sente-se triste. Tanto valor, tanto desprezo. E, diga-se em abono da verdade, que ninguém tem grande vontade de regressar. Nem a ciência nem a arte têm pátria. E o Eça de Queiroz, sempre contemporâneo, ainda vai piscando o olho, ali, na estante, a ouvir a conversa.



Mas como a fome é global, podemos ir lagostar e frangar à beira rio, ou mar, até pode ser aqui





não se lambuza os dedos que é feio, então?

Depois podemos ir ver anoitecer em um dos parques cheios de laguinhos, ali vamos nós,






brincar com a neve e ter atenção aos pertences, não por causa dos humanos ( aqui nesta zona não haverá perigo ao contrário de outras onde nem podemos, nós pessoas sérias, pôr o pézinho que até os Sopranos são uma brincadeira) mas por causa das criaturas que ali se movimentam, fazem rir com tanta brincadeira e descaro e sofrem de cleptomania crónica






ladies and gentlemen. os esquilos.

Podemos depois ir a um clube de jazz livre, nunca se sabe quem se propôe actuar





ou a algum sítio mais de vanguarda, com teatro, dança ou performance.






E vamos dormir, porque talvez amanhâ as cores se esqueçam de existir para entrarmos no reino de uma só


a que , polvilhando, diz chamar-se Dezembro.