terça-feira, 29 de julho de 2014




Crónica da malmaridada no Centro de Saúde, corria uma manhã enevoada em Julho do ano da graça de 2014



 Era grande a algazarra na sala de espera do Centro de Saúde, Unidade de Saúde Familiar ou lá como agora se chama que isto da nomenclatura oficial varia consoante a assinatura do ministro que toma assento na governação.

Noticiava-se, ali em posto estratégico e publico, o casamento entre a filha do homem do talho, homem possante pelo consumo da proteína mas casado com mulher incapaz de gerar varão,


 e o rapaz dos mármores e granitos, bom gestor e talentoso designer tendo por conta canteiros e lápides funerárias de várias freguesias em redor.


A minha mente passou para segundo plano o medo patológico de injecções, sobretudo em forma de vacina regulamentar contra o tétano, quando fez a estatística sobre a aprovação do casório.

Sejamos práticos e pouco românticos porque de amor ali nunca se falou e já no ido séc.XVIII Maitre de Claville escrevia que todo o amor no casamento e fora dele deve ser produzido pela razão:



o homem do talho já vai entrado nos anos, mais dia menos dia faltar-lhe-à a força para o manejo do cutelo e a precisão na faca e, sabe-se lá se o rigor na contabilidade e herdando o genro o negócio, ainda se constrói império capaz de exportar carne para o Pingo Doce ou Continente, porque, que se saiba, essas superfícies ainda não comercializam artigos funerários a acumular no cartão.



Já se sabe que as mulheres, salvo o empreendimento do ventre (e a noiva já o provou inchada como já não se disfarça) e consequente dote educacional, pouca vocação têm para suceder nos negócios.


 Ainda menos para a política, actividade viril porque guerreira, como referiu um político espanhol na campanha para as últimas eleições europeias.

É repousante saber que ainda  vigoram os Princípios de Moral do setecentista Abade Gabriel de Mably, criatura defensora da boa ordem e paz social:

 um homem ama o pacote da sua propriedade, ou seja os seus bens, a sua casa, a sua mulher e os seus filhos, sendo omisso, pelo que li, em relação ao cão, ao gato, ao periquito e ao canário bem como ao peixe vermelho.



A noiva é rapariga serena, consciente da natureza dos homens.



Valores mais altos tanto se levantam que os factos do noivo ser

 frequentador assíduo de uma das casas de alterne mais conceituadas e respeitáveis do país, onde as raparigas são tão dignificadas que tratam a patroa por Mãe,


ser moço de forcado com cicatriz heróica na perna esquerda,


  ter engravidado uma namorada paralela e exterior ao noivado.

 Tudo  circunstâncias marginais a um bom casamento desde que a casa seja farta e não haja perversão como agora se vê nas telenovelas da TVI.


Não será rapariga que agora ou mais tarde,  trauteie em voz baixa e dance de corpo envergonhado, enquanto olha para o passado e imagina o futuro com o vendedor aprumado da Remax que lhe sorri da casa ao lado posta à venda por razões exógenas à harmonia familiar, as canções das malmaridadas, ou malcasadas em louvor do que poderia ter sido e nunca  se atreveu a ser porque vale mais mal acompanhada que só face às exigências do Mundo.

Tú lloras por malcasada,
yo porque te conocí,
si has de tener amado
señora, tomes a mí.


e muito menos, nunca por nunca


...Putas viejas de Porcuna
de esas munchas conocí,
pero sin duda ninguna
de entre todas soys vos una
de las más lindas que vi.

e ainda menos, convenhamos, o aventureiro e ambíguo refrão

"Santa Librada, Santa Librada

Que la salida sea tan dulce

como la entrada".

Juntará as suas palavras indignadas, agora em facebook, à pena de pato das 27000 cartas que em 1888 responderam a Mona Caird,


 a desbocada que no Daily Telegraph, se lembrou de contestar o destino de malcasadas e outras de ajuntamento sem lei nem roque através de um rasgão no fatal faduncho, chamando-lhe divórcio, como se fosse possível mulher de jeito fazer-se ao caminho da felicidade.


Sabe-se que quem nasceu da costela não pode crescer-se corpo inteiro e que tais desvarios são próprios de aristocratas, burgueses, artistas e demais gente de folhetos e folhetins como nos filmes, na Caras, na Nova Gente e na Tv Guia.



Salvam-se, assim, carnes e mármores.  Que sempre existiram e sempre hão-de existir. Sem sobressaltos.


Desta vez, enquanto arregaçava a manga e virava a cara para o lado, não me socorri da memória de uma frase musical de Bach ou Purcell ou outro a quem encostasse o medo.

Ouvi, sim, um fado na voz tremida de Maria Alice,


  apelidado de Perseguição, a que Amália de voz segura, teve o bom senso, segundo me lembro de ter ouvido dizer em criança, de retirar a última estrofe:

Se de mim nada consegues
Não sei porque me persegues
Constantemente na rua;
Saber bem que sou casada
Que fui sempre dedicada
E que não posso ser tua

Lá porque és rico e elegante
Queres que eu seja tua amante
Por capricho, ou presunção
Eu tenho um marido pobre
Que possui a alma nobre 
E é toda a minha paixão

Rasguei as cartas sem ler
E nunca quis receber
Jóias ou flores que trouxesses
Não me vendo nem me dou
Pois já dei tudo o que sou
Com o amor que não conheces

Como sentinela alerta
Noite e dia sempre esperta
Na posição de sentido
Eu sou, a todo o instante
Sentinela vigilante
Da honra do meu marido



Não se esqueça de pôr gelo no braço.

Sim, Srª Enfermeira e

  muito menos no Tempo.

Obrigada e bom dia!


quarta-feira, 2 de julho de 2014


Para a minha Mãe,para a Judite, para a Núria e para toda a gente capaz de um amor maior e que conhece a verdadeira dimensão do vazio. Em todas as circunstâncias. Em todo o mundo.

O silêncio obsceno que invade o futuro.


A minha mãe pouco fala disso. Tem medo  que as palavras avulsas, lançadas para o espaço lhe sujem a memória.

Diz que a gravidez lhe foi um estado íntimo. Um amor que cresce embalado numa água que parece infinita. No escuro onde só ela sentia a luz dentro do corpo.


Diz que a água nunca se esgota. Mesmo depois de desaguada num chão indiferente. Diz que  a SUA água permanece mesmo quando o ser que envolve é já maior que o seu próprio corpo.

Talvez se pergunte para onde fugiu a água quando o coração tão fraco e confuso no seu ritmo deixou de bater e ficou enclausurado numa  caixa de madeira. Junto à raiz de uma árvore no Cemitério dos Ingleses. Talvez ainda hoje a água continue a alimentar a vida em cada folha.


A seguir toda a sua água nasceu assustada. Com medo que as mãos não a segurassem. Nem segurem.
Nunca se sabe quando as mãos se tornam distraídas por aquela coisa arbitrária que dá  pelo nome de destino.


Depois veio o silêncio. Só interrompido pelo tic-tac, tic-tac, tic-tac do relógio de parede. Big Ben a horas certas. A marcar o tempo que, teimoso, continua o passo do mundo.

Por isso uma vez entrei numa casa americana e vi que todos os relógios tinham sido parados. Um ritual para enganar o tempo. Para suspender o segundo anterior.


 Até que a resignação mande o tempo seguir em frente. Outra vez.


Talvez hoje, que é futuro, a medicina já discipline os corações do passado. Talvez hoje já existam maestros capazes, de bisturi em riste, acertar os compassos.

A dor tem destas viagens. Se fosse hoje...


A Núria gostava de ter um fio que puxasse o tapete do tempo.


 Como tecedeira que Deus não conhece, desviaria o trajecto da linha da avenida, pegaria no pé do condutor, empurrava-o para o travão, encher-lhe-ia os olhos da cor vermelha do semáforo. Adiaria a hora do jogo de futebol para lhe diminuir a pressa cega.

Suspenderia todos os erros do Universo.

 Nem que fosse pelo tempo que dura um espirro do Diabo.


Quem não gostaria de criar obediência neste fado.

Um bater de asas de borboleta em Tóquio provoca uma tempestade em Nova Iorque. É o que dizem.

O amor tinge a alma de loucura.

 Dançou o silêncio,  durante cinco horas.


 Até que uma bofetada lhe soltou o choro e resumiu todos os cansaços.


 E adormecia com a cabeça refugiada num ombro.


 A amizade também gera água.

 Enquanto Madrid acordava e na televisão (mais um atropelamento criminoso, homicídio por negligência) o seu rosto vinha de ontem e os olhos recusavam, parados, a gente conhecida ou vaga e circunstancialmente presente, que murmurava palavras adequadas.


 Como se a dor fosse coisa que possa ser invadida. Por estranhos que não sabiam que a mesa estava posta para duas. Só faltava o pão, à venda em frente, do outro lado da avenida.



E o tempo amputado não tivesse futuro. Apesar da emigração das águas. Para um ponto cardeal de coisa nenhuma.




segunda-feira, 16 de junho de 2014


Não, lamento, esta não irá ser uma prosa sobre futebol nem sobre qualquer problemática relacionada com o  esférico.


Há limite: nego o provérbio  que diz que " o olho habituado ao pó depressa de acostuma à areia". Pronto!



  É mais sobre um pianista maneta (perdoe-se-me a grosseria da classificação) e um compositor que sofria de tédio crónico.



 Convenhamos, ao que se diz, que Paul Wittenstein, um dos irmãos do célebre filósofo Ludwig do mesmo apelido (  graças ao qual a filosofia passou a figurar em t shirts e  bonés), nunca foi criatura que gostasse de ser contrariada.


Nasceu numa família vienense, convertida ao cristianismo, com fortuna correspondente ao nosso contemporâneo Bill Gates.

 E de tão rica  conseguiu até  comprar aos nazis,  para duas das suas filhas, a licença de morada em Viena apesar dos antecedentes judaicos como o Stein denuncia.


Paul, já em criança, habituado a ter em casa as performances privadas de Richard Strauss, de Mahler, de Brahms, entre muitos outros, decidiu que queria ser pianista, ou melhor, dominar o piano, quando fosse grande.


Acontece que, mais tarde e por amor pátrio, foi combater pelo Império Austro-Húngaro. Perdeu o braço direito na Polónia, foi feito prisioneiro pelos russos e enviado para a Sibéria.

Abreviando, ali, através de contacto com músicos russos também eles reclusos e alguns como ele incompletos, manteve a sua determinação de continuar a ser pianista.


Quando livre e regressado ao ocidente, decidiu  contratar, com quantias milionárias, vários compositores, como Hindemith, Britten, Prokofiev, Ravel, para comporem partituras, sobretudo  concertos para piano, reduzidos à mão esquerda. E pedais, obviamente.

As somas recebidas pelos compositores contrariaram o quase eterno princípio de que  toda a gente envolvida com Arte é rica menos os artistas.


Adiante.

Nesses contratos figurava uma cláusula de exclusividade: ninguém as podia interpretar enquanto Paul fosse executante e, em alguns casos,  vivo apesar de retirado.


Não tocou a maior parte delas por não as "entender". Dava toda a liberdade aos compositores desde que não fugissem aos cânones  de harmonia, forma e estilo do séc. XIX. Os finais deste eram a fronteira. Paul não gostava de modernices.

Dizem as más línguas que, de facto, não conhecia nem a obra nem a personalidade dos contratados. Era mais coisa do som do nome.


Muito mal comparado, claro, era como se eu contratasse o Rodrigo Leão à espera que me saísse Tony Carreira. E vice-versa. E por exemplo.

Por vingança e despeito, ou não (só o próprio saberia), Prokofiev,


 afirmou que que a perda do braço tinha sido para Paul uma sorte. Conseguia disfarçar o péssimo pianista que tinha sido com as duas mãos em acção e que mais não queria, assim daquele modo amputado, que conseguir um protagonismo mundial que em condições normais nunca estaria ao seu alcance. Paul não passava de um amador delirante sem talento. Como tantos outros.




A briga com Ravel, levantou uma poeira entre autores e interpretes que ainda hoje não poisou. Digamos que é o fulcro desta prosa.

Ravel era o mais apetecido por Paul.


Era compositor cheio de honrarias, cabeçalho de imprensa, recebido com fanfarras, frequentador dos mais ilustres salões europeus e americanos, com aura de excêntrico no vestir, sobretudo na paixão por sapatos (que conjuntamente com os pijamas, lhe eram fétiche),



 e nos hábitos,  acompanhante (consta que não era amigo nem inimigo de ninguém) de pessoas tão invulgares e poderosas no meio como Ida Rubinstein.


Fazia questão que se soubesse que desprezava a vida e obra de Beethoven. Entre outros despenteados.
Resumindo, preenchia o catálogo do que os ingleses chamam de snob.

O mito agigantou-se quando compôs o Bolero, considerada a música mais sensual do mundo também ilustrada nesse sentido por outro Maurice, o Béjart,  mas, de facto, inspirada pelo ritmo repetitivo das máquinas nas fábricas.




No fascínio pela potencialidade artística da maquinaria, Ravel foi bem testemunha daquele tempo.

Ravel viu as suas finanças desafogadas até ao fim dos seus dias e mais algum para levar para a morte e escreveu uma peça de vinte minutos: Concerto em D para a Mão Esquerda.

Ao ouvir a interpretação de Paul, Ravel acordou de uma das longas crises de tédio em que não fazia nada senão aborrecer-se com tudo e deambular cansado com o facto de nada fazer ( dizem as más línguas que esta prostação fazia parte estratégica da sua imagem de marca e seria longo dar aqui episódios caricatos). Também a coscuvilhice tem limites.


Não reconheceu nada do que tinha escrito. Paul tinha modificado a sua obra desde a essência até aos pormenores.

Ravel cometeu um acto impensável e inesperado: irritou-se em público e chamou a atenção a Paul.

Paul terá respondido textualmente que os interpretes não são escravos! ao que Ravel respondeu que os interpretes são escravos!

E abandonou a sala.

Esta breve troca de palavras criou raízes nos que vão à fonte beber sem moderação.


E lançou guerras, práticas ou teóricas em que uns e outros ostentam bandeiras em que, não raro, a maior vítima é a própria Arte. Já evadida e longe do chão do palco. Sem pertença ou submissão.

A que se ama e admira sem lhe reconhecer um nome.