terça-feira, 2 de outubro de 2007

Tanto tempo...,miúda!



Já não o via há ,sei lá, vinte anos. Telefona-me e convida-me para almoçar. A memória mantém a imagem intacta. Congela o tempo. E procuro-lhe a imagem numa mesa. E reconheço-o pela parecença com o Picasso. Ele tem mais experiência no decorrer da mudança:estou aqui, miúda.
E começa a falar no seu jeito utópico de olhar para o mundo.Vê-o à luz de um classicismo partido e derrotado. Diz ele, ou eu assim o ouço, que tudo se desfez, desde a beleza aos valores. Os heróis morreram em idades antigas: a dele.
Nasceu beirão há oitenta anos. Veio para Lisboa e de Lisboa partiu para Roma, inspirado na mulher dos seus sonhos, mulher com doçura escondida na fortaleza.



Queria ser pintor em terra louca e sem freio. Para ele a mais cinematográfica das terras, a da beleza mais selvagem.Onde história,barulho e futuro se tornavam vida plena.Por lá ficou até que um dia se lembrou doutra mulher, dez anos mais nova, que, espécie de padeira de Aljubarrota precoce, combatia ditaduras e afins no Alto da Ajuda. Voltou e casou e teve três filhos :um acomodado, outro louco e outra bailarina.

E tornou-se chefe durante o dia, e pintor à noite. E foi num atelier ao pé da Praça da Alegria que o conheci, levada pela filha. Atelier frequentado por sábios e doidos, todos mais ou menos adultos para a nossa parca idade. Lembro-me da confusão de ideias e vozes, enquanto nós estávamos mais interessadas no nosso ofício e no rol de namorados, cada paixão sempre mais definitiva que a anterior. E lembro-me dele a recitar poesia em altos berros e lembro-me do Cesariny me chamar a menina do mar, de um cenógrafo errante do Parque Mayer e de mais muita gente.

E de a casa dele ser generosa na liberdade com que cada um vivia. Sem medo mas com respeito.Casa onde iam todos os amigos dos filhos, da mulher, da mãe, da sogra, e só não iam os do Gato porque lhes era difícil trepar ao terceiro andar. Mesa sempre posta, riso sempre aberto. E do choque que eles tiveram com a nossa partida para a terra de todos os pecados, duas miúdas no covil imperialista, envenenadas pelo império da Coca-Cola e do hamburger, ai que ainda vinhamos de lá com intenções de Cadillac descapotável, casadas com cowboys de bota pontiaguda a fumar Marlboro e seios insuflados. Donas de rancho, rodeadas de escravos de dentes fortes. Mas não, nada disso, ou, muito pouco. Expliquei-lhe quando um dia o visitei. Espanha ? esses cabrões monárquicos? E lá se ia agitando, muito declamativo.Exuberante,a recitar Frederico Garcia Lorca.

Lá o vi hoje. Mudou-se para a Bica. Um pequeno atelier debruçado para o Tejo. A idade é-lhe mentirosa no físico. Parece menos. Mas a alma está abatida de tanto sonhar um mundo que nunca chegou. É um mundo onde os heróis são mitos derretidos como neve na água. Mas envia esperanças aos netos. Eu estou velho, miúda, um gajo fica velho quando pinta a mesma coisa duas vezes, agora os meus netos é que hão-de dar a volta a isto. Vê lá tu que o....


e deixo-o com o décimo whisky na mão, a olhar para o fundo do copo. Hei-de ir vê-lo outra vez. Hei-de-lhe pedir para levantar a alma, porque o mundo nunca foi perfeito para os que viveram nele, e sempre andou para a frente porque alguém se lembrou de sonhar, mesmo quando a humanidade submissa e infantil não merece.

5 comentários:

Emma Larbos disse...

Há pessoas que parecem feitas de pedra, com o bom e o mau que isso tem. A persistência, a teimosia de manter vivas velhas ideias, mesmo quando elas já se arrastam pelo chão e a história que as atravessa de um lado ao outro, como os livros não conseguem. Há certos velhos assim. Vale sempre a pena conhecê-los.
Cara Lizzie, acabo de regressar de do outro lado do Caia.

Lizzie disse...

E neste regresso lhe digo que o velho é boa pessoa e, por ter tido contacto com a juventude, lá percebia que a autoridade,embora mudando de rosto,não deixa de ter a mesma face.E,lá conheci pessoas, já todas mitos enterrados,que até se metiam com o nosso hábito dos dois duches diários.Um chegava muito bem,porque nas prisões nem isso tiveram.Mais a "santificação" de pensadores e agentes.Sentavam-se e ordenavam um copo de água.E eram prontamente servidos.
Este meu amigo,às vezes fugia para os restaurantes do Parque Mayer e levava a criançada em que eu me incluia e transformava-se numa mente livre e aberta até às danças mais contemporâneas,pelos outros consideradas perversas e sem rumo.Era um "pai" divertido.

Agora,e desde há muito tempo, a criançada tomou a sua própria vida, os amigos foram morrendo, e ele foi ficando sem o pedaço dele que era personagem.E o mundo mudou mais depressa que ele.
Mas é um testemunho vivo do que a minha geração não nasceu a tempo de conhecer.O problema é não actualizar o texto, que agora está para ele mais sublinhado do que anteriormente, porque sonhadores de ideais novos tem que haver sempre. Para fazerem futuro.
Como sempre a Emma tem razão "vale sempre a pena conhecê-los".

Abraço, bom regresso!

St. J. disse...

O fim da vida é rico, mas pungente. Quando se trata de alguém que conhecemos, quase revivemos essas décadas numa vertigem de história pessoal...
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Tudo muda, muito depressa, mas as pessoas ficam no seu mundo, presas àquilo em que acreditaram.
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A propósito, recordo um contemporâneo do Almada que passou os últimos 30 anos a pintar limões. Naturezas mortas com limões. Como se cada limão fosse o primeiro.
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Se o mundo fosse um caleidoscópio atemporal, a Magnani seria certamente a modelo de eleição do van Rijn - e, acredito, faria sucesso em Amsterdão, como se fosse uma Severa de tamancos, mas com xaile e tudo, ali pelos canais daquela Veneza dos Tercios d'Holanda. E até lhe pintaria um brinco, à Vermeer, ou sonharia em replicar uma marquesa Brígida Spínola Doria, verdadeira Magnani de Rubens, pela qual o Petrus Paulus teria dado muito mais que todos os seus cinco tostões...
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De resto,
Abraço.meu
Cara Eli

Lizzie disse...

Pois Xantinho que eu imagino mais a Magnani como Maja Desnuda do Goya conhecedora de amores e guerras. E a levantar-se do divã a armar tempestade justa.

Para o Petrus Paulus imagino mais a minha Kathy Bates, físico mais apropriado, convenhamos, e com aquele ar cínico inegualável nas actizes de hoje em dia.

Brilhante ideia essa do Van Rijn, sim senhor, assim desgrenhada de cara bem sombreada de sofrimentos numa Amesterdão louca pelas vorazes túlipas negras.
Um dia destes hei-de falar de xailes, ou melhor "mantons". Vestuário da minha devoção, mesmo nesta Lisboa sem canais à vista.

Abraço, Xantinho

St. J. disse...

Abraço Lizzie,

E venham os mantons (sem deixar fora as mantillas).