segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Os outros


Andam pelas cidades, vilas e aldeias e de muitas cidades, vilas e aldeias vieram. O mundo é-lhes pequeno e nele rodam sem destino nem norte, nem língua comum que os faça irmãos de pátria.

São actores, bailarinos, músicos, mimos. Dizem-se herdeiros dos farsantes, malabaristas, jograis e saltimbancos dos mercados e feiras medievais . Ainda se sentem proíbidos e incómodos na sua forma de escancarar as chagas do mundo.

Não querem tecto que os adormeça nem chão que os ampare nem paredes que os fixem. Andam em carrinhas esforçadas nas estradas, em viagens soluçantes, a embalar filhos de todos e de nenhum, que ali não há descendência pensada .




Não falam palavra que se ouça, só se exprimem com o que o corpo permite. Caberá a este, aqui Mãe Coragem, no fim, recolher com um chapéu as moedas e notas de quem lhes reconhece o trabalho. Já vai longe o tempo em que, em Madrid, fazia parte duma importante companhia de dança. E diz a quem lhe deu aulas que está feliz, mas tem os olhos perdidos em parte incerta e foje-lhe a serenidade pelo movimento nervoso das mãos inquietas. Irão para Barcelona, para um teatro, desta vez, mas o compromisso de um público pagante de quantia certa e sentado em cadeira forrada tira-lhes a surpresa do relento. Mais valerão as praças de Berlim, passando por Paris, sem esquecer Viena,





a terra natal desta bailarina errante e a quem os tutus pesavam como chumbos na liberdade. Comentamos que tem um sorriso doce, mas esquecido de vontade.

Mais tarde, na sala, tentamos-lhes decifrar a vida, se foi de desgosto, cansaço ou opção de viagem sem cálculo, nome ou glória. E cada um opina o que de mais parecido consigo tem. A eles pouco lhes importa, já o vento do presente lhes empurrará os movimentos estrada fora, com as mesmas cores, provavelmente, com que se moveram no passado


até hoje. Por mero acaso, em Madrid, no meio de uma praça cheia de escravos do futuro.

3 comentários:

nnannarella disse...

Transumâncias. Melhores ou piores pastagens. Dias soalheiros ou de emboscada. Uma outra forma de vida.


A ascendência que dizem ter era maldita na altura. Olhada de soslaio. As jogralesas, por exemplo, consideravam-nas mulheres de má vida. E se calhar eram-no. Dependendo do ponto de vista. Claro. Mas parece-me que seriam espíritos demasiado livres para se sentirem incomodados com os pontos de vista. De qualquer das maneiras, entravam as suas artes nos palácios e nas igrejas. E a ideia que tenho, desde os primeiros livros de História e de Leituras, era que tinham boa vida à fartazana.

Curioso que há dias li na Bettips reflexões e imagens sobre as mesmas personagens, em Barcelona. Podes transumar até lá, se assim to permitir o tempo e a anquinha. Lembro-me de comentar que não sabia se gostava ou não daqueles espectáculos, de certa forma impostos ao passante e um pouco patéticos no ritual das fotografias e do receptáculo dos honorários. Também porque alguns deles bem que podiam estar a podar jardins, depois de um curso no centro do desemprego; e outros, de tão bons, se nos amarfanhava a alma de os ver tão desabrigados.


Pandeiretas e pandeiretas deles!

bettips disse...

Como que nostalgia de rastos que não se seguiram. Se desconhecem, também. Desabrigo(desabrido-tempo) o de tantas solidões errantes. Por linhas que não minhas, te conheço/agradeço pelos pensamentos, teus e dela, que me acrescentaram. É assim, eu acrescento-me/alimento-me. Como uma erva bravia e degenerada vou pelo campo arável. O dos pensamentos em comum. Raízes de melancolia, por vezes humorada, sim. Abraço

Lizzie disse...

Também não sei se gosto porque não sei se são filhos da liberdade ou do abandono.
Chocou-nos o aspecto mal nutrido do rapaz. Mi C.achava-o tão talentoso que pedia a Mi Mar para lhe aperfeiçoar a técnica até fora de horas. Mas sempre pranto dentro, tinha a vontade presa e confusa.
"O que irá ser dele?" e eu que sou também científica digo-lhes que irá chamar a morte muito antes que a morte o chame a ele.Os antepassados finávam-se cedo e estes querem beber a vida num só gole.
E tanto tu Nnanna como a muito benvinda Bettips, tenha eu tempo, me sugerem que fale de um senhor que de forma oposta também destapa os ferimentos envergonhados do mundo.

Um abraço e

talentos e talentos deles