terça-feira, 25 de setembro de 2007

Senta-te aqui, Passarinho...



se ainda não partiste.

Estamos noutro país, sentadas numa sala onde moram muitos livros, muitos quadros, muitas fotografias, pois, sou eu mas mais nova, com um terraço cheio de plantas. Lá fora ouve-se a rua em som difuso de vozes, carros.
Estamos aqui os quatro, tu senta-te onde quiseres, não faças cerimónia. És a mais nova, graças a Deus.

Aqui podemos falar o que para os outros calamos. Começo por dizer que quando vinha para aqui me entrou aquela dor indefinida, sabes qual é? aquela mal educada que não pede licença para entrar. Começa no tornozelo e vai pé abaixo e só não continua porque os dedos lhe são precipício. Então trepa pela perna, brinca com o joelho e vai-se esprair na anca. Tem mais espaço. Já me habituei a não lhe dar importância. Mas sinto-a a rir-se. E no braço tenho tatuagem de trabalho, aquele que partiu da Martha. Costumam-lhe chamar cicatriz.

Mi J. é homem portentoso, tem tronco de fazer face ao vento, pescoço largo e fibroso, parece torre em ameia. E eu passo-lhe a mão pela nuca e lá está ela, aquela corda que se cansou e de ser nervo e virou aço. Mi J. solta um lamento a rir-se. É criatura que não verga. Mas conheço-lhe a ruga aflita, ali, no canto da boca. Choque eléctrico que lhe lembra o tempo em que nós éramos penas que ele levantava para vermos melhor o mundo.

Mi Mar ainda vai tendo ganas de flamenco. Mas os osteofitos parecem-lhe pregos nos calcanhares. É o prazer que lhe vinga a dor. É o taconeo que lhe calca os azares, os movimentos repetidos anos e anos a fio. E quando lhe dão las ganas sabemos que naquele corpo há uma guerra, um duelo entre a vontade e a esperança dela. Mantém a garra na beleza tão doce.

Mi C. um dia, num grand plié paralizou, deitou-se para o chão e lá veio o homem da bata branca esticar-lhe as pernas. Tinha-se soltado um fio no joelho e outro na anca. E eu lembro-me de a ver fetalizada, lembro-me da testa gelada, do olhar quase vítreo pousado num sítio de que ela não se lembra. Andou a aperfeiçoar demasiado tempo uma contracção dramática, uma daquelas muito contemporãneas em que o corpo grita o que a boca é obrigada a calar. Aperta a mão no meu ombro e não se desperdiçam palavras.

Claro que aqui podes esticar as pernas, olha pôe os pés encima desse banquinho. Está melhor assim? Recosta-te antes de embarcares nas viagens para rumos de que se não conhece o público.. E ele é tão diferente, tão anónimo nos olhos e nos calores. Sente-se com a alma, não é? Às vezes é quase um inimigo calado: tantos olhos e tão silenciosos e tão cegos e tão atentos. Outras vezes manda-nos sopros de ternura. Quase que nos hidrata os sentidos e os esforços . Mas sempre quer nomes, ilusões, equilibrios e máscaras
de todas as cores. Sorrisos de todas as alegrias. Choros de todas as tristezas. E tudo isto lhes é dado até a corda se partir. Até o corpo entrar em revolução. Golpe de estado que numa América Latina dum corpo sem fim.

Ficamo-nos com os aplausos . E perdoamos. E sentamo-nos numa sala como esta ou outra qualquer, com estes nomes ou outros quaisquer. E adormecemos com vida para contar. Senta-te também,Nnanna, ainda bem que vieste, que horas são? o almoço está quase pronto, ali, ao virar da esquina, num bailarino perto de ti.

The show must go on! Ponto de exclamação, imperativo em qualquer língua

10 comentários:

Lizzie disse...

Que tudo vos corra bem!
Nunca lá fui mas disseram-me que é estranho mas suportável.




Beijinhos!

Eli

Lizzie disse...

Está bem, João, eu esclareço: a senhora da fotografia não sou eu!

Foi o penúltimo.E está no meu "santuário" em grande.



Obrigada.
Abraço

Anónimo disse...

A nosotros nos quieren valientes (y no me gusta la palabra valentía) pero... a mí se me antoja temeridad.
Situación paradójica, como dice Mi Élís.
A diario, Ana.



Besos

C.

A. disse...

_______________________________...

A. disse...

...vou indo, Eli.



com um nó na garganta. daqueles
em que (o corpo grita o que
a boca é obrigada a calar )...













há coisas, que não sabemos
como agradecer. ontem não soube...
... e hoje ainda (vou indo) sem saber.


fica a minha mais profunda vénia...
...e tantos besos para o Teu J., Tua C.e Tua M.



pois ainda há mores amigos...
Nnanna e Eli, muito obrigada pela companhia. a de Sempre...
_______________________________...

Lizzie disse...

e vai com bons ares. Não agradeças que isto é tudo da mesma família. Foi em nome da família que lhes pedi para escrever as maleitas e foi em nome da família que autorizaram.
Tenho a certeza que retribuem abraços.Com jeito para não magoar mais o que já está magoado. Dentro e fora.

Até ao teu regresso...
mão no ombro, assim

Eli

Anónimo disse...

Também sou convidado para a sala?

É a coluna...




Abraço


João

nnannarella disse...

Meu Arcanjo de pena viking, fiquei um tanto desorientada com esta antologia-coração da dor e este arquejar de despedidas que não percebo...
Pois Passarinho vai bater as asas ?... Para onde e quando e porquê ? Suspeito que só o poderei vir a saber noutro lugar, cujo tempo quero próximo, quando a sábia de Cáceres voltar...
É que o tempo tem-me sido ingrato e as tarefas nesta e na outra casa, um leito de obstáculos.
Por ora, nesta matina que ainda bebe noite, ficam os meus beijos para ti e A.

Lizzie disse...

Fica o esclarecimento a quem mo pediu noutro lado para pôr aqui:
o quadro "Nothing" é enorme (este é um estudo quase em forma de desenho), tem uma textura perto do rugoso e é um retrato de uma pessoa que conheci, ou melhor do que a pessoa sempre esperou e nunca teve, um buraco numa vida que ela achava cinzenta. Mas não era e o cinzento é uma cor muito rica. Está, penso eu, em Barcelona. Se calhar já fugiu e se transformou em All.
Pronto! (satisfecha? besos)

A. disse...

...e pronto.





o tempo foge minha Eli. quase dez. dez sem entender por que Mundos andei eu. dez dias... sem me acertar nos ponteiros desta minha tão estranha passagem_______...



...mas agora sento-me, agora sim.
encosto-me em paz. adormeço, finalmente... e com tanta vida, ainda, por contar.













muito obrigada, Eli. doce abraço, o Teu.
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