segunda-feira, 3 de setembro de 2007

O cofre





Ligo a ignição e enquanto deixo vida para trás sento-me num quarto de reencontros por guardar.Abro o cofre.Morada de tesouros.


Embrulho aquele olhar para o longe do mar, em veludo para que não se magoe.Junto-lhe a sensação que guardei na mão ao passá-la pela testa ampla no profundo sono da siesta.Sei que é muralha de terreiro onde gaivotas desenham danças.E é profundo o sono:respiração tão pausada é sinal de sono integro e quem não gosta de ver tal sossego próximo, panaceia para os males do mundo.


Guardo também o conforto ortopédico da rebentação das ondas e os carimbos efémeros na areia branca.



E aquele sorriso de flamenco solto da minha "filha".Inverto-lhe os números de 41 para 14.O fim de tarde de sol bocejante tem esse efeito.E o mar bate-lhe palmas.


Não me posso esquecer daquela guerra de nuvens,mau génio em Agosto,com lanças de luz na noite a furar a superfície da água.


Vou buscar rolos e rolos da mais suave seda para envolver os enormes olhos da minha mãe quando lhe dou os parabéns.Não quero que aquele olhar se parta.São já 74 que mais parecem 47.Pele tão lisa e macia.Mas o tempo é isto:agora sou eu que a sento e parto a carne em pedacinhos e a autorizo a comer o semi-frio da sobremesa.Qualquer idade é própria para que uma migalha de amor se transforme num banquete orgíaco de afecto.


Depois tenho que guardar o riso afoito da Bicoca,actriz,que comunica que deu o marido e os filhos para adopção.Come de uma vez um Cadbury´s,dieta abandonada.A loucura do Moncho,o baile visceral da Sara,as histórias delirantes do Manuel,as gargalhadas da Lola,sem esquecer o choco frito,português,no estuário do rio,mar à porta em telhado de colmo,portadas azuis em paredes brancas,vista ferida de beleza simples.


Não quero guardar a ruga recente e triste quando digo"tengo que irme".Prefiro guardar o calor dos abraços, fogo de amores e amizades antigos,já nem sei o que é uma coisa e outra,aqueles que tatuam o coração.O cofre é grande.Nele cabe quem já chegou está e quem há-de vir.



Estou a chegar.Fecho o cofre e guardo a chave ao pescoço não a perca no esquecimento de existir.


5 comentários:

nnannarella disse...

"E o mar bate-lhe palmas", e eu a ti as bato, ó lindas pernas de sereia posta em milagre, ó largo coração, baía sem perímetro nem diâmetro, meu lindo arcanjo de olhinhos de musgo em asa-delta.

E assim chegas de revoada, mais o teu imaginário ortopédico onde nos é doce esticar os sonhos e as memórias e misturá-los aos teus.

Não foi só em Ravello que me lembrei de ti, à propos de uma muleta chamada Garbo; também a velejar para Capri, ao passar na ilha dos bailarinos – de ti e de Tu Cosita Passarinho, é claro; também em Nápoles, onde basta história e arte tem a marca forte dos espanhóis que lá reinaram; e até num raro dia romântico, em que chegou a chuviscar, e eu virada à baía de Maiori, a pensar num quadro com uma nuvem.

Afinal, tu e o mar e os tablaos; e eu, o mar e as canções napolitanas…:) E pois, largos e largos e largos corações deles.

Lizzie disse...

Ó minha trovadora,ó com que arroubos entras por aqui dentro revestida de verdes mares a sonhar desportos radicais,ó asa-delta sem vertigens,ó papagaio envolto em pictórica nuvem.
Mares e sóis mudaram-me a cor,levaram até ao insulto,ai de mim,"mi Élis está tan oscura igual a la putañera Condolezza Rice esa!".
"La Élis se vuelve más loca cada dia".
Valham-me faróis onde repousar de tanta agrura.
Pois que também me lembrei de Mi Cosita Passarinho e um dia destes hei-de até descrever a propósito de quê:um concerto para violoncelo.

Garbos e Garbos e Garbos deles.

nnannarella disse...

ai trovadora de mim, ai deusa y u és ...

e quão líricas me parecem as palavronas espanholas na tua tecla!


asas-deltas são teus olhos, azeitonas... (e falta-me no teclado uma clave de sol, para perceberes que estou a cantarolar)


e como clave e chave têm a mesma raiz, deixo o sol e espero o mi, de mi cosita, e da história do violoncelo, coisa dilecta de fazer música, que há-de sair do teu cofre...

fechaduras para que vos quero!



ó quantos deles.

St. J. disse...

Me dicen a mi lado que no se aguanta tan oscura niebla de soledad... Me dice Ruiseñora para escribirmelo en castellano.

Ya, bueno, lo que sea... pero ya no me acuerdo quien ha dicho lo de los dulces vuelos estos. Empieza asi:
En la mañana verde,
quería ser corazón.
Corazón.
Y en la tarde madura
quería ser ruiseñor.
Ruiseñor.
Alma,
ponte color de naranja.
Alma,
ponte color de amor.

En la mañana viva,
yo quería ser yo.
Corazón.
Y en la tarde caída
quería ser mi voz.
Ruiseñor.

¡Alma,
ponte color naranja!
¡Alma,
ponte color de amor!

Colgado en Garbo,
con besos casi napolitanos

[oye Eli, que maja llave la tuya]

Lizzie disse...

Ay Neno,qué hermosura la tuya...


Gracias y besos en castellano además de portugués.