sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A cobertura


A insónia roubou-me a adolescência da noite. A lua entrava, descarada, pela janela a derramar luz pelos lençóis. Deve ter sido prolongamento de sonho mistico mas tive necessidade de ir ver aquela ementa de beleza que é o catálogo do Museu do Prado. Só para ver este refúgio de calma e entendimento que é a Aparição de Cristo a S. Bernardo. Em boa hora Francisco Ribalta o pintou. Muitas vezes o fui ver, lá, em silêncio, com pena de não sentir a cobertura de Deus. Mas acho que Deus foi morto, ou se suicidou num jogo de xadrez que ele próprio criou. O seu forte nunca foi a estratégia. Foi o culto do medo. A justificação da morte. Sem ofensa, não vá ele estar em coma e acordar.

Depois apeteceu-me com urgência ouvir o Sanctus da missa de Machaut. Vozes solenes. Deu-me a nostalgia da Catedral de Boston em luz tardia.


Do dia em lá entrámos e um coro vestido de branco com capuz na sombra da face, entoava aquele salmo. E o som ia até ao cimo, reflectia nas paredes e voltava, com atraso, para trás. Era o eco. E o eco é sempre comovente. É uma prova de distãncia, é o som vagueante na vastidão ligada ao infinito. Simbolo da nossa pequenez. E lembro-me do arrepio que me percorreu o corpo. Da paz que o rodeou. Mais mais uma vez com pena de não ter cobertura. Como a não tinha a judia que orientava o coro. Uns dias mais tarde vim a conhece-la, quando ela disse, horrorizada pela falta de respeito ao tempo, que tal música vinda dos confins da santidade, não se dançava. Deus é estático. E tal música só admite o poder da voz humana. Os instrumentos são invenções dos homens. Ofendeu-se-me o violoncelo. E todos os outros de som expressivo. Nesta noite até o repuxo de cascata do meu aquário se ofendeu. Até me pareceu que as cascatas são águas que soltam os cabelos. Porque me lembrei dum cabelo solto a dançar as vozes furtadas a Deus.

E depois deste percurso fui- me recostar outra vez na cama, a beber uma chávena de chá quente que me inundou. Olhei para a pergunta


mas mais uma vez não tive resposta. Não fui feita para pensar. Fui para sentir. E se calhar foi um deus novo, cheio de energia e vontade, que me esbateu o cérebro e me passou as mãos pelas palpebras e as fechou. Porque só me lembro da suave vertigem de adormecer.

9 comentários:

Anónimo disse...

sem palavras!!!


fico sem palavras!!!


genial!!!

Anónimo disse...

Fabuloso! Tanta coisa!

Fui ver lá em baixo. Bem me parecia de quem era o " Nothing ".

Empurrão?

E este?

Empurrão, empurrão, mulher!


Abraço


João

nnannarella disse...

Águas que soltam as vozes, palavras furtadas aos deuses todos é o que tu escreves. Até parece coisa de santa, pois que o que sai alembra aparições…:) Não conheço nada, mas hoje ficou a vontade de chegar a elas. De catálogos gosto muito. Também costumo folheá-los como livros sagrados. De cardápios também. E a esse propósito, inspiraste mais uma vez o Santinho que te deixou um madrileno nos figos de pita. Infelizmente fechou a porta … Hoje estou como o deus da senhora judia. Estática… Vou ter de permitir que outro café me percorra.Bom dia,meu arcanjo profundo. Sanctus e Sanctus deles!




E Aleluias e Aleluias!

nnannarella disse...

Adenda Alentejana : ontem vi uma reportagem sobre os monges da Cartuxa de Évora, que prestes me lembrou a tua descrição do coro encapuç(z)ado e salmodiante...

Muito falaram de privação e de sofrimento. Mas a um velhote escorregou-lhe a língua: "esta é uma boa vida!"
Aqui entre nós, não acredito que só bebam do precioso néctar homónimo quando dizem missa.


Cálices e cálices! Mesmo que a hora não seja muito católica pra tali...:)

Lizzie disse...

Anónimo:
Muito obrigada mas não exagere...

credo, que ainda viro mística!

Lizzie disse...

João:
Com tantos empurrões ainda caio. Esperemos que para a frente, para trás não reza a história.

Deixa-me ter tempo,lá mais para a tarde, se não fôr amnahã,e já vais ver o que dão os empurrões que bastos levei este fim de semana, ali ao virar da esquina no telefone.
Tenho alguma culpa de ser perguiçosa?
Ai que lá se me vai a santidade...

abraço!

Lizzie disse...

Ai Nnanna meu Anjo a trabalheira que dá ser santa. Ainda andava de paparazzi às costas a cuidar da imagem assim a modos que pura e logo eu que gosto tanto do pecado assim em forma de lagosta suada, sapateira recheada, navalheira com peixinho da horta regado para florir em extãse com visão de paraíso.
Ai que me está a dar a fome outra vez...
E este fim de semana tive umas visitas espanholas que me levaram a um sítio na Bica que eu não conhecia, e não tinha lá frades da Cartuxa, a menos que estivessem disfarçados de tinto e mundano e, lembrei-me de ti tal foi o faduncho corrido e Menor de forma espontãnea. Ainda tive que segurar a Mercedes não se lembrasse ela de flamencar a tal som.Também era tal a santidade que ninguém reparava em nada.Aquilo são tudo deuses muito abertos de ideias...

Corridos e corridos deles, ayyyyy madre mia

nnannarella disse...

Solta-se-me em alta temperatura o pecado da inveja...
Os meus fins de semana têm sido fechados, tal Relação onde o que deu ao mundo a maria não me mates que sou tua mãe bateu co's ossos. Por ironia da coincidência, estive para ir aos fados das alfamas e estive para ir a lanche ajantarado em lugar da Bica. Por pouco, então, não cruzei minhas asinhas com as de Arcanjo maior... Procelas maternais obrigaram-me a cancelar as navegações. Bonanças virão. Até lá, aqui te deixo picadinhos e picadinhos deles! Ah tigra, ah boca linda!

Lizzie disse...

Venha ver ó freguesa, anda Pacheco, que eu até nem estava a pensar sair, mas fui chamada delicada e simpáticamente pelo telefone.Já percebi que andas em fase filiómaternal. Espero que a bonança suba para cima da tempestade rápidamente.

Maiores e maiores