quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Old Cousin Alice

Não tenho fotografia dela aqui mas poderia ser esta:






Se fosse viva faria hoje anos. Assim faz na mesma. Nasceu em Londres filha de pai português diplomata e mãe inglesa. Nas imagens desbotadas que vi o pai era parecido com Bismarck e a mãe era desmaianda iminente ( não sei se com i ou com e). De tal senhora teve duas filhas mas como era propenso à viuvez de posteriores casamentos teve mais uma filha de mãe espanhola, outra de mãe suiça e um filho de mãe portuguesa, pelo menos que se saiba. Também houve francesas lá para os lados do Moulin Rouge. Dado o óbito maternal veio viver para Lisboa com a irmã inglesa. Disso não me lembro porque nem os meus pais sonhavam nascer.

Era monárquica convicta, daquelas que achavam que os reis têm mais deveres que privilégios. Na Segunda Guerra Mundial partiu para Londres como enfermeira de destroços humanos. Ficou viciada neles, sobretudo nos bombardeamentos que afligem as almas. Voltou para Lisboa e instalou-se no prédio atrás da praça de touros que agora tem um hotel árabe ao lado. Último andar. Foi importando os irmãos à medida que iam caindo mortes e divórcios.

Um dia, dona de um segredo não revelado, foi para Toronto. Voltou anos mais tarde e sem aviso. E foi com espanto de esfregar olhos que se depararam com uma mulher pequena de pele branca de leite e olhos azuis desta vez com cabelo cortado à garçonne, fato de calças e casaco cinzento,sapatos de atacadores e eterno cigarro na boca. Dizem que envelhecida. Nunca mais largou tal corte nem vestimenta. Consta que todos os dias esperava o correio com ansiedade e todos os dias chorava para dentro dos olhos a sua ausência.

Agora a minha memória já começa a acordar. A casa era enorme, com corredor imenso. Alice deixáva-nos andar de triciclo nele e não raras vezes repreendia os pais que punham os filhos de castigo na cozinha. Estão na idade de brincar. Era em privado mas nenhuma das crianças era surda. Servia também de mediadora de paz entre os irmãos. Desculpava a irmã inglesa que vivia em surdina envenenada pelo seu próprio silêncio; justificava os ataques de paixão semanais da irmã espanhola por tudo quanto era toureiro e forcado; protegia a irmã suiça da sua mania de lavar as mãos quinze vezes regando-as com alcool a seguir e finalmente chamava o irmão ao escritório, supôe-se que para repreenção, porque o dito à medida que envelhecia cada vez tornava pública a paixão por mulheres sucessivamente mais novas. Se fosse vivo arrisco a dizer que a última seria em forma de embrião.

Toda a gente gostava dela. Toda a gente lhe fazia confidências. De toda a gente guardava os segredos. Dizia que, fossem ricos ou pobres, empregados ou patrões, literatos ou analfabetos, todos os segredos tinham o mesmo valor. Eram secretos. Também guardou alguns meus e de mão no ombro me deu conselhos, nomeadamente o de partir em direcção à distãncia.

E quando parti toda aquela gente era muito, muito velha. Soube depois que um dia ela recebeu uma carta do Canada. Fechou-se com ela no escritório. Durante um dia inteiro. Na manhã seguinte pegou-lhe fogo no fogão e pela primeira vez chorou em frente de terceiros. Sentou-se à janela grande de olhos ao longe e gato ao colo. Só a minha mãe e uma prima lhe conseguiam dar de comer. E assim morreu aos noventa e sete anos. No funeral estiveram presentes centenas de pessoas que ninguém conhecia, de todas as classes sociais. Acompanharam a pé, da Praça de Londres ao Alto de S.João uma caixa selada de segredos e alívios.

Carríssima Emma Larbos, nós que gostamos de segredos e das causas deles, não lhe parece que seria qualquer coisa deste género? Cheia de espinhos?


É que ninguém sabe.

Parabéns à sua memória, mesmo que reduzida ao pó que faz a terra.

8 comentários:

Anónimo disse...

prefiro acreditar que é uma história maravilhosamente inventada e ainda melhor contada.
grão de areia
lágrima
plim!

Lizzie disse...

Anónimo:

Se está bem contada, agradeço-lhe o elogio. O problema é que é verdadeira.Se eu lhe escrevesse os apelidos, bastava-lhe ir investigar os aspectos mais públicos. São os que francamente não me interessam.
Mas sempre lhe posso dizer que não era reclusa. Era até um bocado mundana. Que o digam os frequentadores da Mexicana, do Império e da Brasileira sem falar das paredes da casa da Amália e da Maria Teresa de Noronha.E os lustres do S. Carlos, era fanática da ópera.Mas não ia lá mostrar os casacos de peles. Ia por gosto. De fato castanho. Se eu escrevesse a história das irmãs inglesa e suiça não teria nem grão de areia nem lágrima: teria uma imensa praia banhada por um dilúvio. Mais uma pista: uma delas serviu de modelo a uma personagem de uma escritora portuguesa. Trágica.
Bom dia para si.
Pim pam pum

Anónimo disse...

quando digo «prefiro acreditar que é uma história maravilhosamente inventada », quero significar «recuso-me a ler como verdadeira porque está tão bem escrita que sinto a dor».
Sublinho, está tão bem escrita que sinto a dor.
obrigada.
bola de sabão
plof!

Lizzie disse...

Que "bola de sabão" mais rápida de aerodinãmica...
Não diga essas coisas que me ruborizo! A seu tempo hei-de contar as histórias das outras. A dele, do primo António de senilidade pedófila, não tem muito interesse. É igual a outros senis pedófilos de todos os tempos.
Não é minha intenção ser agente doloroso, mas pode crer que não consigo imaginar aquela dor e não há nada mais comovente que ver chorar quem nunca chorou. Ainda por cima meio inglês. Eu não vi,não estava cá.Mas até lhe perdoo ter-me posto a lavar a loiça de um jantar numeroso.Mas aprendi uma lição importante.
Então obrigada e flutue.Mas não se fure.
Vuhhhhh,vuhhhhh....

Anónimo disse...

"...vivia em surdina envenenada pelo seu próprio silêncio."

De antologia, como muitas outras!
Lembro-me vagamente dela na primeira fila.


É amanhã, não é?



Abraço. Até amanhã aqui!


João F.

Lizzie disse...

Pois é João, amanhã começa o Outono!Vê lá tu que hoje ainda é Verão e amanhã já é Outono.Esta vida são dois dias.

Obrigada e um abraço.

nnannarella disse...

Vê lá tu que hoje ainda é Verão e amanhã já é Outono.Esta vida são dois dias.


:)



Genial Lizzie metereológica ...:)

nnannarella disse...

Quanto à velha prima Alice... familiar prima Alice, de travessias de fios.


Em plena noite, os cenários navegam.


De olhos bem fechados, vejo o filme.

E incendeia-se o mundo com os teus enredos.