quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Mi C.



Todos os dias, na longínqua Boston, ficava a olhar os patos no lago, a dar-lhes migalhas de pão americano.Eram grandes as saudades que tinha do farináceo de Madrid ,terra louca e vadia, onde nasceu filha de mãe catalã e de pai castelhano, figura militar e austera.

Conta a mãe que tinha falta de apetite e só a poder de música engolia as papas que tinham por fim remediar-lhe o corpo pequeno e franzino. Parece que por causa dos gestos melodiosos foi, aos seis anos, depositada numa escola de Ballet. Logo se tornou notada no jeito e aplicação.

Aos dezoito aninhos foi parar a Amesterdão, depois Londres, depois Nova Yorque,depois Boston e finalmente regressou a Madrid.

Tanta andança para ela que tem permanência de árvore sempre a ouvir o que a terra diz, sempre firme a medir os passos,mesmo quando os pés lhe trepam para as alturas de que conheceu o sabor sem a bulimia da glória fácil.




E foi em Boston que conheceu uma portuguesa que remexia pauzinhos em águas paradas.E foi lá que foram escolhidas para integrar uma parte da companhia vocacionada para a dança contemporãnea, às vezes experimental. Eram quase sempre escolhidas para fazer pas-de-deux. Muito sofreu a portuguesa, mais nova, com as exigências perfeccionistas dela. Os ataques espanhóis de mau génio. A portuguesa rendeu-se à evidência quando a viu dançar o Lago dos Cisnes na maior das perfeições, técnica clássica apuradíssima, ela que já era perita na técnica de Graham. Com toda o à vontade foi subtituir uma colega lesionada.

Vem isto a propósito de ser dama de achar que tudo se deve fazer com conhecimento das origens e causas das coisas, com trabalho e investigação. Àrvore com atenção ao estado das raízes. Por isso um dia em Madrid, numa recepção formal, vestido de gala, foi ter com um senhor e disse-lhe: ay dos classes de críticos: los que escriben y los que cagan palabras. Usted recibirá muy pronto el Nobel de la segunda.Buenas noches!

Dizia ela que a criatividade ficava por conta da loucura da portuguesa. Gentileza mentirosa a dela. Mas já em Madrid fizeram-se amigas com muitas viagens e histórias para contar. Um dia a portuguesa caiu e se não fosse o improviso aliado à força cumplice e solidária daquela mão que a agarrou e aos olhos que gritaram, tinha desmaiado logo ali. Mas continuou a dançar. Só desmaiou nos bastidores. Os bailarinos só mostram todas as dores em privado. Para o público reservam a perfeição ilusória.E até hoje,a portuguesa tem a sensação que, em dias azedos, a maldita da espanhola está lá a mostrar-lhe o caminho.Aparece de repente a amparar os cansaços.



E dançou até aos 41 anos cantares de amigo e amor, poetas cheios emoções , músicos de todas as épocas.A cara com que nasceu, carismática com duas características marcantes, permitiu-lhe usar todas as máscaras. Sempre a trabalhar com tanto afinco e ilusíon que não reparou num ser gorducho que, lhe ia mandando setas ao coração. Um dia o Cupido aborreceu-se, virou espanhol e cravou-lhe uma farpa tão grande que ela até hoje não foi capaz de arrancar. Anda com ela pendurada. Ao sabor do vento. É uma farpa de extremidade vagabunda.

Agora tem bailarinos e danças a cargo, decifra mapas de movimentos e amanhã, amanhã dia 7 vai começar uma nova fase da sua vida. O sentido da responsabilidade trá-la nervosa. Como em qualquer estreia que se preze.

À portuguesa, que é babada de orgulho, apetecia-lhe esticar braços e olhos para ir até lá dar-lhe um suave empurrão nas costas para ela entrar mais confiante naquele palco que nunca conheceu. Assim manda-lhe esta flor para que os dias lhe sorriam até às portas do infinito.



Vete a la mierda,cariño!


Hasta luego!

9 comentários:

Anónimo disse...

assim
assim
até eu me comovo...:)



( vá lá
não fiques zangada )

posso mandar à merda?

sinceramente!

beijo-te a mão respeitosamente


J. P.

Lizzie disse...

Eu zangada?
Própriamente dita não,mas um dia destes visto-me de supeira dos anos 50,peço emprestada a montada preta de matrícula espanhola e, com todo o charme, ponho-te a dançar o "fandango".Ai ponho,ponho...

Não sei se podes.Ela que diga.Eu nem sequer sou enfermeira para fazer pensos.

Beijinhos.
(parvo. eh eh eh )

nnannarella disse...

Nobilíssima epístola de Amor.
Venerando retrato.

Depois de ler, só resta fôlego para fazer coro contigo e mandar C. ao solene impropério.

Do fundo do coração, que sente com o teu, porque A conhece de ti.


Mierdas e mierdas deles… a ambas :)

Emma Larbos disse...

Felizes aqueles que assim deixam na alma alheia rasto fundo e perene! E felizes aqueles em cuja alma lavra tal chama!
Comparado com os anteriores, o próximo palco da C. é uma brincadeira de crianças. Muita merda para ela!

Lizzie disse...

Meu doce Anjo Nnanna del blogue, minha tão Caríssima e Sábia das almas Emma:
a esta hora ainda não sei como foi a estreia, mas tenho a certeza que com tantos e tão empenhados empurrões correrá bem.Face a tanto "solene impropério" vejo-lhe o brilho nos olhos.De agradecimento.É pessoa sensível a gestos simples cheios de conteúdo.

Por isso em meu nome e no dela daqui mando


PALCOS E PALCOS DELES PARA AS DUAS.

Anónimo disse...

Lo mío no es hablar ni escribir pero me ha salido menos mal.
Muchas, muchas gracias a vosotras.
A tí Élís, bueno, ya lo sabes...corazón más grande. Siempre




Besos

C.

Lizzie disse...

Traduzindo,com a ajuda Da-Mais-Nova-Maria-del-Mar,correu muito bem.

Nem aqueles desgraçados sabem o que vão sofrer...



Bom fim de semana!

C. disse...

Tão interessantes e graciosas estas tuas cantigas de louvar, empurrar e bem-dizer.

Abraço, Lizzie.

Anónimo disse...

Coração que sempre foi grande e simples.
Nem sabe o tamanho.

Felicidades C.

Bem merece!


Abraço outra vez.


J. Fazenda