terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Martha, a domadora

O prometido é devido, por isso cá vai história que a Martha Graham tanto gostava de contar e fazer contar e recontar e se também eu lhe faço eco, é mais uma pequena prova provada que era dama que se impunha e continua a impôr mesmo lá no sítio onde estará. Grande parte da gente pensa que seja no Inferno, e uma grande parte dela acha que o Diabo já se fartou e lhe deu exílio em prol da paz de espirito no seu tórrido território. Mas até ele, com certeza, lhe mantém respeito pelo talento.





Esta senhora, Martha Graham foi em 1956, salvo erro, com a sua própria companhia, em digressão a Itália. Começou por Florença, e a palavra escandalo ganhou todo o seu adorado significado. Com já disse aqui lá para trás, Martha não desdenhava uma boa luta. Era uma das suas proteínas diárias.

Na altura Itália em geral e Florença em particular só admitiam uma espécie de dança, o Ballet Clássico, com coreógrafos e directores sempre homens. Martha vinha do país onde, a começar por Isadora Duncan, as mulheres se tinham tornado donas do seu destino, trabalhando fora de casa, tomado decisões. Com o fenómeno das amizades bostonianas tinham provado que o seu craneo tinha pensante recheio. E, na dança, provaram também que tinham um corpo sensualmente pulsado para além dos fins finais da maternidade. Ironia pura num país marcado pela moral protestante.





A grande revolução na dança foi feita por mulheres. E partindo das ideias de Wagner, tomaram o conceito de arte total, isto é, não há dança separada de todas as outras artes, nem da filosofia. Mas isto ficará para outra altura Em episódios.

Note-se ainda que nos Estados Unidos o Ballet Clássico convivia, ontem e hoje, em paz e sossego com a Dança Moderna. Havia, por parte do público e dos intelectuais respeito pelos dois, ao contrário do que ainda hoje se passa em Portugal. É quase obrigatório intelectual que se preze dizer mal do Lago dos Cisnes ou da Giselle. Um dia hão-de crescer para perceber que cada qual tem a sua história, esforço e arte. Ou alguém se lembra de dizer que Shakespeare ou Mozart já prestaram mas hoje já não prestam?

Como dizia a Graham, só existem duas espécies de dança: a boa e a má.

Quando o pano subiu para a peça Dark Meadow, o que os florentinos viram, habituados a que a dança se baseasse na elevação, nomeadamente através do uso das pontas e nos movimentos suaves e etéreos, foi uma série de pés nus, corpos sujeitos à gravidade arrastando-se chão fora, bailarinas musculadas de cabelo solto ou curto, gestos bruscos, sensualidade bruta, animal e descarada.
Martha preferia a expressão à beleza. Falava até na memória do sangue de que o corpo deveria fazer eco.




Ouviram uma música dissonante de Carlos Chavez e deparáram-se com cenário pensado pelo escultor Isamu Nogushi




(com quem Martha estabeleceu parceria constante) , uma espécie de rocha no palco, cores inflamadas e contrastantes. Abstração total.

Viu também uma enegética bailarina principal , ela, e adivinhou-lhe a idade: 62 anos (sessenta e dois ).




E, face a tanta inovação o público assobiu, berrou, insultou, riu-se, levantou-se.

Martha mandou que parasse a dança e com a mão fez aquele sinal de stop, género polícia sinaleiro.
Acalmou-se a assistência. Continuou a dança.
Voltou a balbúrdia.
Voltou o sinal e assim sucessivamente, em tom cada vez mais decrescente, até ao fim.
Alguns bateram palmas, já eram bastantes os domados. Martha ordenou que os bailarinos, em vez da vénia, ficassem estáticos de olhos no chão. Virando as costas ao público, ela, sózinha na boca de cena, bateu palmas aos bailarinos. O público fez silêncio.

O leão tinha metido a cabeça na boca dela.

Anos mais tarde a cidade de Florença ofereceu-lhe uma condecoração: a medalha Leonardo Da Vinci. Até o Papa João Paulo II pediu para falar com ela, em Castel Gandolfo.

Já agora







Um dia uma companhia de dança sediada em Boston, mas a fazer estágio na Martha Graham Dance Company em Nova Iorque , foi mostrar habilidades grahamianas a Itália, começando por Roma e acabando em Florença. Antes de partirem, viram aparecer a velha senhora já escandalosamente frágil , com luvas a esconder a deformidade provocada pelas artroses, olhos baços já à espreita da morte. Altiva. Autoritária. Fez discurso, contou a sua versão da história, disse, mais uma vez a sua frase favorita:

os bailarinos são os atletas de Deus.

E pediu que, na altura dos agradecimentos, todos olhassem para o chão durante uns momentos. Assim fizeram. Uma questão de respeito.

Se calhar lá tinha as suas razões, porque em recepção após performance, um dos muitos apresentados como condes, ou duques, ou viscondes,( lembrou-se até uma das bailarinas do famoso
foje cão que te fazem barão
para onde se me fazem conde? )
cultíssimos, virou-se, por acaso, para duas das bailarinas e disse num inglês enlatado e parafraseando Balanchine que era sempre interessante ver, em vez de bailarinas, vacas a pastar no palco.





Perceberam as duas que tinham a boca pequena, ou que então cresce com a idade, seja com fôr disseram-lhes que no dia a seguir dançaram a outra peça agendada com toda a memória que tinham no sangue, neste caso ibérico.






E passaram a achar que a história devia ser contada pelo tempo fora, seja qual fôr a dança, ou a vida.






15 comentários:

Anónimo disse...

Realmente, Lizzie. Não há fatia de vida que não caiba nesta dança. Também prefiro a expressão à beleza, maneira muito mais rica e interessante de assentar os pés no palco e pousar os cotovelos sobre a mesa. Um bailado de palavras majestoso!

Anónimo disse...

Que espanto!!!!!!

Não sabia!

A penúltima é Lamentation?




Inveja e beijo!!!




P.

Anónimo disse...

Só agora é que eu olhei melhor a última!



Está linda!!!!




Bom dia!




P.

Haddock disse...

fantástico!!
não sabíamos da biografia.
as "modernices" aparecem sempre antes do tempo, faz parte. mas depois lá ganham foro de cidade.
confessadamente, preferimos ver voar do que mergulhar, embora o esparrame também possa ser elegante. ahh, o lago dos cisnes já vimos!! somos muito pouco pseudo-coiso...

vénia...

nnannarella disse...

Não creio que alguma vez ela tenha passado pelo inferno, pois ele está cheio de boas intenções e ela, parece, jamais se ficou por elas...:)

Meu atlético arcanjo, grata por mais esta história em que, parafraseando, a memória do sangue é feita pelo teu corpo.

Costas ao público e costas ao público deles!

Pinóquio de Alfama disse...

interessante, mas um pouco longo, não?

Lizzie disse...

mgb:
Para mim a expressão é um vício. Fui destinada assim pela minha ossatura e talvez por temperamento corporal.
As variantes entre beleza e expressão foram variando com os tempos e com os modos.
As danças moderna e contemporânea estão marcadas por uma série de conflitos, interiores e exteriores.
Tomou-se consciência e tentou-se reflectir o mundo. Tudo tem a sua história. A sua forma de pôr os cotovelos em cima da mesa e retratar a tão pouco magestosa sociedade.

Obrigada. Foi bom ter-te aqui.

Lizzie disse...

Pêzinha:
Se para a semana te saíres com uma igual a essa de perguntar se é o Lamentation, a espanhola dá-te uma corrida que só paras em Lisboa.
É uma das 35.342 variações sobre o dito. O original foi coreografado e dançado pela Martha, com figurino ROXO, e é a maior e mais emblemática peça dela e que veio revolucionar todas as concepções juntamente com o El Penitente.

Tu estuda-me isso antes que a outra salte da fotografia e te enrole na saia mais na cabeleira.

Até lá 150 pliés. Já!

Lizzie disse...

Capitão:
neste momento estas modernices marthianas até já passaram de cidade a metrópole. Às vezes infelizmente. Muito se diz que há muita aldeia que é dança mas nós achamos que não passa de povoado à beira da estrada. Duas ou três casitas. Enfim.
Quanto ao resto sempre adorámos rebolar-nos e espernear no chão. Uma vez até de modalidade aparentada de Chanel trajadas. Depois de andarmos com uma ar atarantado palco fora com um sapato calçado e outro na mão. Muito coxeámos.
O tutu nunca nos ficou com boa queda.
A propósito de chão e elegância, haveis visto o Pedro e Inês da Olga Roriz pela CNB?
Que bom não serdes pseudo-coiso.
Continência!

Lizzie disse...

Meu Anjo, as boas intensões eram para onde lhe dava. Mas, normalmente, como sabes, eram excepção que confirmava a regra.
E tinha razão, a memória do sangue nunca passa, e cada qual tem a sua.
Musculos e musculos deles.

Lizzie disse...

Casa de passe:
apesar da contenção orçamental, preferimos pagar mais a deixar alguma coisa incompleta.
Mesmo longo está muito sintético e com omissões. Sou exigente. Neste caso foi dois em um.

Agradecida pela visita.

Haddock disse...

...

lizzie, vimos em tubagem, hélas...
magnífico, contudo!!

A. disse...

...quero mais...





...há pérolas demasiado curtas.

obrigada Eli.sempre.







raridades e raridades...ponto!

Lizzie disse...

E mais hão-de vir, Passarinho.
Quando se abre o sotão são tantas as lembranças...





Obrigada e beijinhos

Arábica disse...

Martha, a domadora.

Se é este, encontrei. :)

Mas eu queria mais, queria o lado de lá, o trajecto do corpo a construir a memória, através do tempo.

Ninguém se torna domadora de um momento para o outro :)

Abraço, que seja um bom fim de semana, com mar.