quinta-feira, 31 de janeiro de 2008



Breve história das palavras mudas





Darwin defendia que todas as pessoas, independentemente da raça ou cultura, têm o mesmo tipo de expressões facio-corporais. Referia-se, com certeza, à resposta perante determinados estímulos provocadores de riso, choro, dor e outros. Paz à sua alma, mas não era homem dado ao restante mundo fora do seu, porque para além do inato, existem linguagens não palavrosas que muito dizem e variam.


Tal problemática começou a ser estudada por um tal de François Delsarte, nascido no ano da graça de 1811. Não viveu o tempo suficiente para saber que moldou gestos e poses, na dança no teatro, na moda, nas artes plásticas, no café, no trabalho, no metro, no avião mais em toda a parte em que as pessoas gesticulem ou fiquem paradas, suspensas nos pensamentos.

Teve uma vida atribulada e um dia resolveu olhar para os gestos da pessoas. Tornou-se vadio em cemitérios, cafés, circos, praças, tabernas, mercados, hospícios e por aí fora. E estabeleceu um padrão de gestos e movimentos comuns a situações, ou seja, transcreveu a alma para o corpo. Tinha na mira os actores e a eles o aplicou, vestindo-os, para maior liberdade de movimentos, com túnicas à maneira grega.





Estavam criadas as bases das poses na representação do teatro declamado, melodramático, exagerado. Quem não o conhece?
Do teatro passou para o cinema mudo




e foi até utilizado na propaganda dos regimes totalitários, fossem negros ou vermelhos




neste caso nazi, na boa tradição do olhar ao longe do romantismo alemão, porque, em Inglaterra, no romantismo latente nos pré-rafaelitas, era mais comum a pose também Desartiana, da melancolia do olhar baixo, mão junto à face, cabeça, ou coração








aliás, também muito comum, no Ballet Clássico de inspiração lendária nórdica, como o Lago dos Cisnes ou a Giselle



(espero que a Ana Lacerda da Companhia Nacional de Bailado não me cobre direitos de imagem).


Se olharem à volta, verão ao vosso lado todos os dias pessoas com este padrão de inspiração romântica. Verão melhor se forem surdos, ou desligarem o som das televisões. Ou se forem leitores de fotonovelas. Classificamo-las, até, de muito teatrais.

Se observarem pessoas pouco habituadas ao pequeno ecrâ, ao teatro ou ao cinema, porque o público da dança quase se conta pelos dedos, como os trabalhadores do campo-campo, por ex, verão que a gesticulação já é um bocado diferente.

É que os gestos são, consciente ou inconscientemente, linguagem apreendida, de identificação com um grupo , como a roupa que escolhemos vestir.

Continuando, um protegido de Delsarte levou o método para os Estados Unidos. Teve mais sucesso que a fast-food. Parecia o vírus da gripe. Espalhou-se por todo o lado até a manuais como este






Exactamente. Poses de sedução adequadas, acompanhadas de palavras a rigor para um frutuoso e feliz posterior casamento. Vi, mas, confesso, que nunca apliquei. Também há para homens.

Como os gestos têm cenário, tempo e moda, consoante as flutuações e exigências sociais, esta vaga lãnguida foi adaptada, nuns casos, repudiada noutros, por uma senhora chamada Edna Woolman Chase, editora da revista Vogue, na altura já líder no lançamento das femininas atitudes. Aqui temos Desartianas do mundo laboral. Qualquer dia falarei da moda e das suas variações de poses.






Alguns defendem que Delsarte foi avô e pai da danças moderna e contemporânea cuja mãe foi Isadora Duncan. Deslumbrada pela liberdade das túnicas, adaptou a gestualidade aos movimentos, como forma de transmitir emoções. Mas esta história é longa e isto é só o intróito.




Mas posso ainda dizer que a seguir veio Ruth St Dennis que foi professora de Martha Graham que fez uma coreografia e interpretou uma obra maior chamada Lamentation (não sei fazer links mas, quem esteja interessado, pode ir ao Youtube e botar Martha Graham e Lamentation e logo aparecerá) onde estão, na essência, os princípios do método e que por sua vez foi tinta que coloriu tantos e tantos que vieram depois, até hoje e a este preciso momento.

Sobretudo aqueles que olham para o mundo, e de alma transferida para o corpo, lhe desenham as dores silenciadas. Com ou sem voz a ilustrar.





E , já agora, pedindo emprestada a caneta à miúda Maria Papoila, junto complemento visual à resposta dada ao comentário da tia adoptada


Primeiro a eterna moribunda pulmonar, a inglesa Lizzie Siddall em pose romãnticamente inspiradora








e o furacão Lou Salome, sem medo nem doença no olhar





e aqui literalmente pronta a chicotear os seus simultâneos e buliciosos amantes Wagner e Nietzsche



e mais quem quisesse casar com ela ou a contrariasse.

15 comentários:

Madame Maigret disse...

Ma chére Mme Lizzí, ando aqui numa roda viva entre o coq au vin para o jantar e o Jules a mandar recados e telefonemas de ma sooeur da Alsace que quer que vamos ao carnaval da côte d'azur!!! Eu sou uma mulher inculta, mas mon mari le comissaire pediu-me para lhe deixar a sua admiração porque ele gostou mt de a ler e porque descortinou tantos casos só a partir de prequenos gestos, esgares, e tiques e "procedimentos repetidos", foi o que ele disse.Je vous embrasse avec amitié.

uf! disse...

lizzie, queria fazer-lhe uma pergunta mas até tremo pois sou uma desastrada na ciberlíngua: dá sempre para o torto.Já por aqui aconteceu, em relação a uma questão de étimo, creio, mas isso agora não interessa nada, pois creio que são águas passadas e já moveram o que tinham a mover.
Gostei particularmente deste texto - fascina-me tudo o que diga respeito à comunicação e às linguagens. Mas ficou-me uma dúvida, no que diz respeito aos olhares românticos alemão e britânico: gostava de saber se não seria de ponderar também a questão do género. Tenho na memória esses olhares distantes de que fala, em relação à alemanha nazi, quer em homens, quer em mulheres; a minha questão reside mais precisamente em saber se o olhar sonhador também pode ser encontrado nas figuras masculinas britânicas.
antecipadamente grata,
tia

uf! disse...

p.s. onde se lê «olhar sonhador» deve ler-se «melancolia do olhar baixo, mão junto à face, cabeça, ou coração»; na verdade, também o olhar nazi pode ser considerado como sonhador - sonha com o futuro (repugnante, certo, mas não é isso que aqui está em causa); este outro parece sonhar com o passado.
cumprimentos

Lizzie disse...

Tia:
Isto dava mais três postes.
A melancolia inglesa, também se estendeu ao género masculino, mas não tanto. Foi contágio mais leve. Os gestos dos ingleses, são por norma muito discretos e contidos. Ainda hoje é de bom tom não gesticular nem que a casa esteja a arder.
De qualquer forma houve uma senhora muito influente e de fartos amores que lançou padrão lãnguido na sociedade.Homens e mulheres imitavam-na. Chamava-se Lizzie Siddall. Era uma eterna doente pulmonar (usava-se imenso em pessoas artísticas e sensíveis)e como tal se movia, ou seja como moribunda, arrastando-se etérea, a olhar não para o passado, mas mais para as tristezas da vida, ou seja, no caso dela, para a tumba. Enquanto morria e não morria foi coleccionando amores, bissexuais, influenciando-os na lendidão arrastada. Foi top-model de vários pintores e inspiração para poetas. Há descrições satíricas de tais modos.Era elegante os homens apoiarem a cabeça na mão e caso tivessem as mãos ocupadas com o pires e a chávena, deixar tombá-la para o ombro. Era sinal de profundidade poético-sentimental.

Não me parece que os alemães cultivassem o ar sonhador. Era mais o voluntarioso. Os gestos eram mais firmes e bruscos.
Existem estudos do movimento que apontam para uma responsável que foi ponte entre a arte, filosofia e a sociedade. Impôs um modelo de atitude. Era russa e chamava-se Lou Salome.Era arrapazada, brusca, dava murros nas mesas, não suportava "fraquezas".Influenciou Wagner e Nietsche (foi amante dos dois e de mais alguns ao mesmo tempo)e desde Rilke a Freud não houve nenhum que não sucumbisse de amores. Acabou por definir um estilo divulgado em revistas de trajes e jornais: olhar sempre em frente de forma directa. Tudo isto, veio a ter muita influência no desenrolar da dança alemâ. Complicadíssimo.
Dá para 15 postes. As coisa acabam sempre por deixar rasto e nada nasce do nada.
Não sei se respondi.

Lizzie disse...

Madame:
que trabalheira, essa do coq au vin. Se me permite gosto mais dele na brasa, com bastante picante, ou com limão na cloaca. E odeio comê-lo à mão. je n´aime pas la grasse.
Votre marri, a quem envio os meus respeitos, inspirou-se com certeza em M. Poirot, bien sur?
Tenho ideia que Poirot era muito dedicado aos pormenores gestuais e faciais. Mas se calhar estou enganada. A minha cultura policial é nula. Quase se fica por madame Ruth Rendell e madame Highsmith.
Apesar de francês votre mari, reconhecerá mérito a estas de língua inglesa, suponho.

je vous embrasse aussi.

uf! disse...

Respondeu, sim, e eu agradeço. E a sua resposta levou-me a descobrir mais um livro «evaporado» da minha biblioteca. Eu tinha um livrinho escrito por Lou-Salomé e apeteceu-me relê-lo: não o encontrei; volta e meia ando nisto...
Enfim, talvez o encontre quando andar à procura de algum de Freud :-)
Renovadamente grata

Emma Larbos disse...

Isto dos gestos e dos olhares tem realmente muito de interessante. Conheço um senhor importante e poderoso mas de desígnios escuros e sinuosos que sempre que mente olha o interlocutor directamente nos olhos e sorri abertamente. Pergunto-me se aquilo é dom natural que nasceu com ele ou técnica longamente ensaiada ao longo de uma vida na arte da sobrevivência (durante o Estado Novo era da Mocidade Portuguesa e no dia 26 de Abril de 74 inscreveu-se num conhecido partido de esquerda).

Haddock disse...

lizzie,
interessante... muito!!
esta coisa da teatralização do gesto como veículo de comunicação/disfarce das emoções é tema inesgotável, decerto.
mas faz-nos lembrar a perversidade pseudo-científica das conclusões. estamos a lembrar-nos de lombroso, da antropologia criminal, e, mais recentemente, de um tal ekman com a sua invenção do "facial action coding system".
isto da interpretação/autópsia psicológica das expressões tem que se lhe diga, ó lá se tem...
mas gostamos do tema!!

vénia...

nnannarella disse...

Resumindo e concatenando, meu Arcanjo: é tudo uma questão de pose e de imagem...

Gosto bastante do olhar ao longe...

Olha, chicotes e chicotes!

Anónimo disse...

interessante, o texto. remeteu-me por instantes aos poemas bucólicos renascentistas, de alvas figuras femininas e longos cabelos de oiro a emoldurar. petrarca sabe. não se fala de posturas ou gestos propriamente ditos, mas a concepção do belo, da altura.


a rematar e em jeito de despedida, deixo uma sugestão, inteiramente pessoal, admito, mas que em tudo se enquadra no tema dos gestos imortais que perduram no ar: "a imortalidade" de kundera. é qualquer coisa.

abraços

Lizzie disse...

Mi Emma,
não sei qual será o caso do dito senhor. Se calhar de tanto disfarçar a mentira, interiorizou. O costume é o mentiroso desviar o olhar.
E há pessoas que têm um ar, e gestos, honestamente tristes. Estou-me a lembrar da minha adorada Carmen Maura e da Antónia San Juan. Por isso é tão fascinante ver a sua transformação.
Outras há que seguem o método de Delsarte, como Lizzie Siddall. E a nossa intuição logo nos diz que soa a falso.
Curiosamente, as tais pessoas do campo-campo, têm tendência a imitar as poses dos santinhos das igrejas: mãos postas, ou dadas junto ao peito, cabeça para cima e olhos ao alto,boca aberta, sobretudo quando falam de morte e/ou sofrimento.Isto nas mulheres. Nos homens,geralmente mais contidos, é fácil imaginar-se o movimento de uma espada.

Lizzie disse...

Capitão:
não somos criminalistas, mas do pouco que sabemos, dá-nos vontade de algum riso.
No séc.XIX, até a propósito da Grace Marks, muito se botou sentença sobre o crime estar escrito na face e nos gestos. Sabe-se hoje que muitas expressões assassinas se devem tão só a hiper-tiroidismo. E tantas sonhadoras ao hipo.
E lemos uma vez um relato de um monge do XVII que chamava, em Sevilha, malucos perigosos a todos os nórdicos, tal era a mania de andarem de cabeça baixa e sem gesticular. Interessante também as teorias nazis para justificar o extermínio dos judeus para não falar dos histriónicos ciganos.
E fascinantes os gestos do pessoal do sul dos EUA, que tivemos que estudar de forma mais aprofundada.Tanto código em aparentemente tão pouco.

Continência.

Lizzie disse...

Pois Meu Anjo, às vezes, é mesmo questão de pose e imagem. Ou melhor pose insconscientemente imitada, ou estudada para determinados fins. Ora compara lá as fotografias, nas revistas, dos actores dos anos trinta/quarenta, com os de cinquenta e por aí fora.
E agora estou-me a lembrar da imagem de Palmira Bastos:"as árvores morrem de pé". Mais Desartiano não há.
E pois que também gosto do olhar ao longe, entre o sonho, a vontade, a firmeza e a aventura.
Árvores e árvores deles.

Emma Larbos disse...

E que dizer da mímica de Marcel Marceau e daqueles seus epígonos que povoam as praças de algumas cidades em ocasiões festivas oferecendo flores às senhoras e adoptando posturas irreverentes, entre o palhaço e a figura lírico-pierrotiana?

Lizzie disse...

Lia:
que eu saiba, Delsarte foi o primeiro a sistematizar os gestos e as expressões.
Nas danças palacianas do Renascimento procurava-se a beleza éterea, a leveza da damas. Mesmo nas alegres, tinha que se saltitar com elegãncia e sedução.Influência da cultura clássica. A queen Elizabeth the First, grande dançarina,adoptou e perpectuou esses modos, não suportava pés de chumbo.
Elogiava-se muito os cabelos, virgens, soltos e brilhantes. À base de pastas e pastas de gema de ovo antes dos bailes.
As danças do povo tinham um caractér mais erógeno e animal.
Vou pensar na sugestão.

Abraços