segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Manolo, agora simplesmente Manolo




Não faz segredo da sua história. Antes pelo contrário. Considera-a como profilaxia da dor da dúvida. Como terapêutica para os sonhos dos outros, aqueles que ainda não descobriram a paisagem que se lhes acomoda aos olhos.

Nasceu numa família de pai franquista prolongado e empresário, dono de grande fábrica e de mãe a fazer o favor de se ausentar, através de livros e da música, de um mundo onde não se sentia bem sentada. Viveu a vida numa cadeira incómoda de fada do lar. Teve-o, a ele, no meio de quatro filhas.


Lembra-se do ar diáfano da mãe e mantém reprodução de um quadro de Fra Angelico no salão em homenagem à parecença. Quer que a mãe seja dignificada pela arte maior.









Lembra-se da doçura dela. A ler. A ouvir Chopin. Do seu silêncio quebrado pelo sorriso. De lhe pentear os cabelos e de a ver de olhos fechados na cumplicidade da carícia. Diz, hoje, que todas as mulheres têm a mesma expressão de paz quando lhes lavam a cabeça. Parecem fugir para um planeta de calma. E acha-as infinitamente belas, assim, entregues e tranquilas.



Foi bom aluno, chegou a sentir-se na obrigação de macho herdeiro e entrou em Gestão. Começou a falhar. Teve a ilusão encomendada de sentir desejo feroz e cuspido pelas mulheres. Mas um dia o pai levou-o a uma festa só de homens. Estavam lá as amantes do pai, as dos amigos do pai, as que exibiam como prova de masculinidade e poder e viu o que viu, como viu o Cristo pendurado na cruz de madeira na parede daquela sala mais os pendurados em fios de oiro nos pescoços deles . A baloiçarem.


E fugiu. Noite fora.


Começou a acordar de manhã com pressa que se fizesse noite. E a adormecer com pressa que se fizesse dia. Queria vencer o tempo em direcção a vida nenhuma. Passava os dias à deriva, mas sempre a trabalhar em funções braçais, como quem castiga o corpo para salvar a alma . Em queda livre, muito próximo da loucura, a abandonar camas, sem lhes chegar a conhecer a luz do amanhecer,





a atravessar o imenso deserto da culpa. Único filho desperdiçado, depositário das esperanças reprodutivas da família, feito pecado e anormalidade nas pulsões do amor. Vadiou em sombras indecisas. Amesterdão, Paris, Lisboa, que conhece a fundo.






A cidade feminina que longe , tirando-lhe o desassossego, o fez reconciliar-se consigo e o devolveu a Madrid. Percebeu, finalmente, que o amor fundo é meio sem comando da razão e que sempre parte de dentro para fora . Aprendeu a dizer não. Crescimento maior da própria vontade.


E já na sua terra natal teve empregos vários para pagar o curso de cabeleireiro. Não foi difícil ter uma bolsa de uma empresa multinacional. Sempre teve as mãos talhadas para trabalhar melenas, sempre se sentiu bem no meio das mulheres, das suas conversas soltas. Através da sua pareja começou a tomar contacto com as artes performativas , fotografia, cinema. Demonstrou talento para trabalhar cabeças e fatos e faces.


Transformou este bailarino euro-asiático emagrecido em M. Butterfly





e estas duas numa versão escandalosamente contemporãnea dos "Infortúnios da Virtude" de Sade








mais esta, aqui feita modelo, espécie de hortaliça capilar








Não quer ter apelidos de peso que lhe lembrem o que sempre se exigiu dele. É só Manolo. Já ganhou direito a ser El Manolo. Com artigo definido. Tal como é e sempre foi. Inteiro no que é. E no mais que passando a barreira dos quarenta ainda lhe falta ser. Com trabalho, muito trabalho, diz ele.

Gostamos de ir lá, em dueto, trio ou quarteto. Às vezes improvisamos peças de teatro. Rimo-nos. É dom que tem, soltar nos outros a saudável loucura mesmo quando calada. E já o ouvimos dar conselhos ao ouvido a clientes de vida confusa, embora aparentemente estável no sofá das respectivas casas. De tesoura ou pente em riste, sentencia que os cabeleireiros, como os médicos ou os padres, têm o dever ético de manter a boca calada. Diz que o livro preferido é a Madame Bovary. No inglês atrapalhado que os espanhóis falam, termina: no coments at all.


E gostamos dele. Gostamos da sua auto-confiança, da sua sensatez. E das suas das mãos longas. E faz questão de ser ele a lavar a cabeça de quem gosta. Ainda há poucos dias, fechei os olhos e tive a sensação de viajar até um planeta para além do sistema solar, lá para as bandas do Infinito.









Dizem-me que estava a sorrir.




17 comentários:

Anónimo disse...

( aprendeu a dizer não. crescimento maior da própria vontade.........

o amor fundo é meio sem comando da razão...)



Só tu!!!!!!




Enorme beijo


P.



P.s. estive ontem a ouvir o teu Marlango.
Adorei!

Anónimo disse...

hortaliça capilar ?????



:)))))))



P.

nnannarella disse...

Ai Meu Arcanjo, fui tomar um duche depois de te ler e imaginei-me entre as mão galaxiantes do Manolo, que assim também têm a virtude de nos mandar àqueles céus onde não existem asaes e onde nos podemos entregar sem culpas aos vícios maiores do que o tabaco...:)

Sonho com o dia em que me levarás, tal Virgílio pegando a mão de Dante, aos infernais itinerários de Madrid e seus doces pecadores.

Enquanto não,temos de pensar no nosso reveillon alfacinha e nos entrementes, não esqueças de dar vista d'olhos ao oiro,incenso e mirra. Manolos e Manolos!

Lizzie disse...

P:
Nem sempre a sério nem sempre a brincar. As duas coisas juntas fazem a vida. O o que dela nos chega.

Volta e meia ouço antes de dormir a faixa dez. A voz da Leonor combinada com o violoncelo vale -me por cem hipnóticos.

Quanto á hortaliça capilar, olha...
Não te esqueças de dia 30. Agenda tu que já te agendei.



Meu higiénico Anjo, também gostava de te levar pela mão lá. Se calhar ficavas com vontade de estacionar à beira de algumas loucuras. Ias-lhes reconhecer a face. Sem asaes nem afins, que aquela gente tem o dom de transformar os pecados em virtudes.
O Manolo bota muita Amália e Teresa de Noronha em fundo, alternando com árias de ópera e com as Niñas de Marchena e Antequera. Para nós pôe uma grande senhora, a Isabelita de Jerez.
Inté já tive a ousadia de playbackar a Amália. Obrigadaaaa....obrigadaaaa deles.

Haddock disse...

que hino à hortaliça!!!
e que primorosa descrição do fabuloso destino de manolo, lizzie!!
pois que deve ser um privilégio podermos entregar-nos aos cuidados capilares do mestre e confiar-lhe, qual prior, as razões que embraquecem nossas têmporas...
só não queremos laca, sejam lá quais forem os caprichos do artista!!!
fazemos votos para que não tenha sido deserdado e possa, assim, estender os seus dotes a paisagens nossas.

bravos!

vénia...

Emma Larbos disse...

Como acabei de dizer à Nnanna, lá no Core, a esta hora da noite não consigo lucidez suficiente para comentar com decência. As fotos eram bonitas e percebi que havia qualquer coisa de hortaliça no ar...
Lizzie, volto amanhã, vou dormir.

Lizzie disse...

Estimado Capitão:
Descansai que Manolo não é homem de lacas nem sprays. Nem nós permitiriamos neste nosso (hortelar) couro cabeludo.
Ele próprio também não usa dada a extensa careca. Quando uma vez invertemos os papéis e lhe botamos gel no vasto tapete peitoral, comprovou que face a tal sensação era urgente duche. Além disso o risco ao meio não favorecia tais partes. Parecia o Paulo Bento de cabeça larga e espalmada.
Não sabemos que parte lhe caberá na herança, mas com ou sem ela, é visita regular por estas terras. Agora já não como servente de pedreiro nem moço de entregas de fast food ao domicílio. Felizmente o destino acertou-lhe os amores e as artes.

Continência




Mi Emma:
Além de sono também devias estar com fome dada a memorização da hortaliça. Ainda por cima transgénica com adn em tons de vermelho.
Espero que tenhas dormido e descansado bem, já que uma coisa não implica obrigatóriamente a outra.
Boceja à vontade que ninguém te está a ver.

Anónimo disse...

Morta de riso !!!




Obrigada!




P.

nnann arella musashi disse...

Minha Senhora de Lizzie-san,


sabereis dizer-me em que que dias posso encontrar aquele moço euro-asiático no estaminé do Manolo ?

Vossa.

Lizzie disse...

Oriental Senhora de Musashi:
sabei que tal moço é tão ou mais interessante na sua formusura não estando nas mãos de Mestre Manolo.
Move-se com lentidão de pluma, tem o rigor da espada.
Será de meus urgentes intentos dar-vos a notícia por que esperais mas devo alertar-vos que precisareis de tirar numérica senha, tal é a vasta espera para com tal moço ter entrevista. Mais vos digo que tem coração preso por anel doirado a dama inglesa, decapitadora a quem, com libidinosos fins, a ele se chegue mas... longe de mim pensar que não sois ágil na arte da esgrima.

Vossa também

nnannarella disse...

Meu Arcanjo marthiano, adoraria saber mais coisas dessa interpretação grahamiana dos mitos, pois que já não é a primeira vez que falas desse flop nas capitais do sul da Itália; e pelo breve que dizes, parece-me que ela viu muito bem as sereias que não eram pera doce, não, segundo as fontes. É verdade que aquele sul tem muito de "conservador" e lobbies não lhe faltam nas artes e na direcção das mentes e mentalidades. Queriam ver as sereias melosas e diáfanas que apareceram no renascimento e cresceram no romantismo e ainda hoje se apontam como as verdadeiras. Era o lobby dos ignorantes e obscurantistas. Que como se sabe, conservador que se preze tem palas aos lados dos olhos. Asas e asas deles, que eu vou buscar a Fifi à grande sereia d'aço que chega lá dos mares do norte!:)

Emma Larbos disse...

Que belo argumento cinematográfico aqui arranjavas, Lizzie. Claro, pormenorizando e apimentando os amores do Manolo, de preferência os portugueses.
Já reduzi a hortaliça à sua insignificância!

A. disse...

"Les ombres du soir descendaient; le soleil horizontal, passant entre les branches, lui éblouissait les yeux. Ça et là, tout autour d'elle, dans les feuilles ou par terre, des taches lumineuses tremblaient, comme si des colibris, en volant, eussent éparpillé leurs plumes. Le silence."

Madame Bovary






[Percebeu, finalmente, que o amor fundo é meio sem comando da razão e que sempre parte de dentro para fora . Aprendeu a dizer não. Crescimento maior da própria vontade.]...ah, e como eu gosto deste tão Teu Manolo!





...voltarei com tempo.e com
beijos de gratidão, minha Eli.

A. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lizzie disse...

Meu Anjo:
Martha, a Graham tinha verdadeira fixação pela mitologia. De uma maneira dramática e brutal. Raramente doce. Era uma mulher violenta, de oitos e de oitentas, como já aqui falei uma vez.
Quando foi a Itália, o público ainda era, e é, muito conservador por exclusão de partes: dificuldade em gostar do clássico e do contemporãneo ao mesmo tempo. Um dia destes falo nisso. Ou melhor vou falando.
Muitos abraços para a Fifi e para ti artes e artes deles.

Lizzie disse...

Mi Emma:
Visão cinematográfica seria ver-te a seres levada pelo Manolo ao lavatório em passos de pavana. Desde que lhos ensinámos não quer outra coisa. Dá uma certa dignidade.
Um dia destes ensinamos-lhe a galharda, que sempre tem mais movimento.
Quanto a amores em Lisboa, bom, não posso ser específica sem autorização, mas sempre posso dizer que o Visconti foi um grande realizador. Tão poético e às vezes brutal. De qualquer forma mestre.

Lizzie disse...

Dizes bem, Mi Cosita Passarinho, o meu Manolo. Tanta sombra e medo até dar o salto para a luz e a coragem.
O mais curioso é que conheço desde a adolescência quem o empurrou. As pessoas sensíveis empurram devagarinho, para que os olhos se vão habituando à claridade sem ficarem feridos. A luz crua pode cegar, pode fazer perder o rumo.
Não perdeu. Até se tornou cartografo.

Enormissimo abraço.