
Viveu a vida segundo um lema contido numa canção dos índios Navajo:
"A beleza está à minha frente, a beleza está à minha direita, a beleza está à minha esquerda.Eu ando dentro da beleza. Eu sou a beleza."
Inspirou-se aliás em ritos e dizeres tribais, aqueles em que o corpo e a alma estavam ligados a impulsos da natureza. Sem passar pela excessiva intelectualização. Acreditava, como os mitos islandeses, na força do destino trágico dos criadores: é preciso ter dúvidas, ansiedades, solidão e vulnerabilidade para que a obra de Arte nasça. Charlie Chaplin definiu-a como corpo de tragédia. E a tragédia, aliada à mitologia grega, foi-lhe chão de voo. Utilizava amiúde a palavra penitência.
Teve tudo isso. É considerada o Picasso da dança.
Não vou falar dos aspectos técnicos, inovadores. Vou só dizer que pensava que em arte nada se ensina, muito menos na dança. Não. O que é preciso é que cada um descubra em si a sua própria linguagem olhando para o seu mais profundo interior. Desafiando-se. Sem medo do que vai encontrar. Parindo, como disse um crítico, cubos. Sem o conforto das arestas suavizadas. Até aos limites. Quem por ela passou, nem que fosse por pouco tempo, sabe que neste rasgar se abriam portas, janelas, universos. A liberdade de ser. Gostava de bailarinos com o seu quê de animal revolto. Aqui, Meu Anjo Nnanna, estão duas das tuas bailarinas, a exorcisarem as feridas que tinham dentro:
"O movimento nunca mente", disse o pai. Ela repetiu-o até à exaustão. Podem-se fingir sorrisos e lágrimas. Mas o gesto e os movimentos de cada um denunciam a mentira. E mais dizia que já se nascia bailarino. Recusou alunos ricos que dançavam mas não sabiam falar com o corpo.
Não se lhe podia ignorar a força. Era teatral. Não me batam muito se disser que fazia lembrar a Gloria Swanson do "Crepusculos dos Deuses". Mas intimidadava. Com o ar distante de deus sentenciador de futuros. Tinha um mau génio célebre. Adorava brigas. Gostava de se gabar disso. Aliás, era estado permanente e agudo quando criava. Ela própria reconhecia que era mal-educada, desagradável. Pendurava um roupão vermelho à porta do estúdio para evitar espionagens e interrupções. Era ela e a Arte. Em Roma deu um grande espectáculo de fúria. Nunca se esqueceu dos apupos. Mas dançou. E venceu.
Nunca gostou de mulheres. Dizia que se sentia bem no mundo dos homens. Que os homens a adoravam. Homens com aquilo a que se costuma chamar "muito homem". Em corpo e atitude. Teve, aliás, desprezos de estimação: Georgia O´Keeffe, por lhe ter recusado um quadro como cenário, Greta Garbo, por ter propensões lésbicas e sobretudo, convelhamos, por ser diva misteriosa. Não gostava da concorrência. Só houve uma por quem chamou até morrer: Lizzie, a ama irlandesa que lhe incutiu o espectáculo nas veias. Brincavam aos teatros improvisados. Outras houve que a tentaram ajudar na época do ocaso, quando a falência económica, a depressão, a artrite e o alcool a transformaram num trapo autoritário: Elizabeth Taylor, Liza Minelli, Betty Ford e Madona, uma das suas alunas preferidas. Muitas personalidades lhe deram a mão ao longo da vida. A algumas fez o favor de morder. Sejamos justos.
Dizia que era devota do sexo. Diz-se até (não estava lá para ver) que mandava subir ao quarto empregados nos hóteis por onde ia passando. Casou com um bailarino. Erik Hawkins. Recusou ter filhos. Dizia que a dança e a maternidade eram incompatíveis. Adorou quando chamáram à sua escola em Nova Iorque " the house of pelvic truth". Com determinismo dizia, que as bailarinas só eram grandes quando os movimentos partiam da vagina. Ignorou algumas cuja dança partia de outros sítios.
Por ironia do destino no fim da vida ligou-se a Ron Protas, 50 anos mais novo. Homossexual. A senhora braço-direito, como diria Andy Warhol. Fê-lo herdeiro e director da companhia. Desastre total. Foi preciso que Jackie Onassis, Vanessa Redgrave, Gregory Peck (também ex aluno) e muitos outros viessem em defesa. Nureyev, Fonteyn e Barishikov dançaram com a companhia para lhe salvar a honra. Seguiram-se processos judiciais sem fim. Lavou-se roupa suja e por sujar na imprensa. Mas ela morreu ou de glória desfeita ou de passaporte para a divindade. No meio é que não. "Antes raínha por um dia do que duquesa toda a vida", lá disse a outra, a Luísa de Gusmão.
E com isto tudo vou ganhar o guiness do resumo. Falta falar da inovação nos cenários, do primado do movimento sobre a música, da ligação da literatura, das artes plásticas e da antropologia à dança. Tal mundo nunca mais foi o mesmo. Por o que me sugere é sempre:

extenso e sem fim. Lá, onde andará a revolucionar o sistema convicto dos santos incautos.