quarta-feira, 11 de março de 2009

mera dedução sobre a rapariga que pede os sonhos emprestados




No sítio da minha morada a imagem é ligada ao som, ou seja, ao pensamento audível e bem expresso: qualquer pessoa nova que apareça, nem que seja dentro dum carro a perguntar qual a estrada para um endereço, é imediatamente comentada e directa ou indirectamente questionada pelos nativos. Ela, o seu propósito e qual a razão da deslocação. As especulações mais frequentes são as festas de anos ou, à cabeça, um óbito, mais passível de romance virado à inacreditável tragédia.




Com tanta “gente de Lisboa” a abandonar a clausura dos apartamentos e a mudar-se para ali, a colectânea já ultrapassa, em décuplo qualquer edição do Moby Dick.

Ainda não há muito tempo, em rodagem pelo Alentejo e desviando-nos da estrada principal, perguntámos a um grupo qual a estrada para Montemor: é aquela da drêta, sempre em frenti! Atão o que vâ lá fazere? A reposta evasiva de passear foi dada a vários narizes encostados aos vidros com os arredores dos olhos em ansiedade e rigor de microscópio.

Nas grandes cidades, sobretudo depois da invenção necessária dos transportes públicos, as palavras abandonaram a visão.

As conjecturas tornaram-se privadas. No metro ou no autocarro, podemos levar longos minutos rodeados de gente sem que ninguém dirija a palavra a ninguém. A nossa avaliação dos outros utiliza os códigos da roupa, dos gestos, dos traços fisionómicos, das expressões. É a partir dessas linguagens que inventamos as histórias.




Das poucas vezes que ando de metro, não raro e por espantosa coincidência, se sentou à minha frente uma rapariga de raça negra, muito alta.

Levou-me imediatamente à memória do que, em Nova Iorque, por exemplo, se chama afro american junkie, aqueles para quem os cantos espirituais negros não passam de ritmos vazios da melodia de Deus.



O cabelo a precisar de sabonária , vários exércitos de glutões para a roupa, olhar ausente sem focagem em ponto algum, braços abandonados ao longo do corpo, pernas e pés incoerentes na postura, como se pertencessem a pessoas diferentes. A personificação de um sono acordado.

De uma das vezes calhou caminhar à minha frente. Andar curvado, bamboleante com um certo arrasto, ombros a dar balanço aos braços, como um rapper falido no orgulho e na energia denunciado pela cabeça baixa.





Entrou na Fnac.

Foi, como em estrada marcada, à prateleira da ópera.

Soube eu, como se estivesse sentada num banco de aldeia entre comadres, que vai buscar sempre Orpheu e Euridice de Gluck.

Pôs os auscultadores num dos pontos de escuta e vi-lhe a metamorfose da expressão.

Torna-se altiva: gira ligeiramente a cabeça, sobe um ombro, levanta o queixo. Abre os braços e pelos trejeitos quase adivinho qual a área que mima.

Transpira a música pelo corpo numa interpretação digna de qualquer manual clássico de arte dramática. Vejo ali a técnica de Delsarte, de que já aqui falei.




Repete várias vezes. Faz gestos de frustração como se, num ensaio, a miragem de perfeição lhe fugisse.

Quem circula vai sorrindo, com aquele sorriso de complacente temor que se tem face à loucura alheia.



Quando se sacia, agradece, de olhar vago em direcção a ninguém, com a vénia contida e braço em retribuição que o bel canto ou outro espectáculo,agora, solene recomendam.



A seguir vai o rap, vais ver!, dizem-me do encosto no largo principal da aldeia.

E lá se contorce o corpo em ritmo sincopado mas na verticalidade que os auscultadores exigem. Folia de braços, mãos fechadas mas com o dedo indicador esticado a apontar revoltas. O tronco desarticula-se. Leva a mão à parte pudenda enquanto o sobrolho se franze até ao limite possível. Inventa um microfone. Desligado.

Cansada, termina a secção até uma próxima visita.

Vai sem que ninguém lhe dirija palavra, não se dirige a ninguém.

Dentro do meu silêncio sem perguntas, imagino-a, com a ajuda da memória e não fosse a oceãnica distãncia, a sentar-se numas escadas em Harlem ou no Bronx, entre sisters e brothers rodeada de "mans"



a ver o fucking day passar, enquanto a old mammie , indiferente ao mudar dos tempos e cega a tempestades, vai comentando sem que quase ninguém a ouça que our good Lord Jesus´s giving us again a very shiny day, yehah he is!



É o que me sugerem, a roupa, o cabelo, a expressão, o andar e os sonhos nos gestos.


(Boto aqui a referida ária que, suponho, ela escuta. Se só se ouvirem 30 segundos, bom, desta vez, corresponde-quase- ao tempo que nos é permitido ouvir de cada faixa nos tais pontos de escuta. No meio da sua performance "privada", ela vai carregando vezes sem conta no rewind.)


che faró senza euridici - c willibald gluck/kathleen ferrier

21 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Pois, eu sei que no sítio da tua morada é mesmo assim :)

Já não sei é onde acaba a viagem de metro e começa a experiência na FNAC... mas também não me importo muito com a dúvida, porque a "imagem" final está no lugar certo, no contexto certo. "E, já agora...", as outras também.

Mais um post que valer bem a pena ler (ver).

Um abraço.

Arábica disse...

Lizzie,

decerto hoje, a minha linguagem corporal te falaria desta febre sazonal que se traduz em espirros e dores de garganta e cabeça.

Ocupa toda uma ária que te não sei cantar. E uma área considerável da minha paciência. Atchim!!

Valham-me os posts.

Deste também gostei muito.

Beijinhos

Lizzie disse...

Alien:

Não imaginas o que eu estranhei o à vontade com que as pessoas da minha morada fazem as perguntas. Quando estava em obras, não raro passávam,o portão,sem pedir autorização e diziam que iam ver como aquilo estava a ficar. Lá delicadamente acordei a minha costela inglesa. Também dizem "lá em Lisboa" como se ficasse a 100 km de distãncia.

Se a rapariga passasse por lá, podes ter a certeza que alguém lhe perguntaria: atão cachopa, diga lá o que vai fazer para a fnac a dar aquele espectáculo?

Deduzo que ela é sem abrigo e que apanha o metro para ir sonhar um bocado com a música. Sei que costuma ir a duas FNAC.

Entra no mundo dela e está-se perfeitamente nas tintas para o que os outros possam pensar ou julgar.

É óbvio que se sente no palco e, pelas duas ou três vezes que assisti à cena, quase que aposto que numa vida anterior àquele aspecto sujo e abandonado houve realmente palco. Existe ali técnica.

Ninguém sabe se é portuguesa ou não. Ninguém percebe a obcessão pelo Orfeu e depois pelo RAP.

Nas cidades ninguém pergunta. Tirando o visível, tudo o resto é pura especulação.

Abraço.

Lizzie disse...

Arábica:

já volto.

Arábica disse...

Perguta-lhe tu.

Fura o muro.


Dissolve o silêncio perturbador das cidades.

Dessa tua forma especial.

Arábica disse...

Ainda assim especulo contigo, quiçá fruto da febre que me consome: o Orfeu fez parte.

O Rap ajuda a liquidificar a raiva, ele próprio voz de revolta social, ajuda a digerir, ajuda a ter força, ajuda a entranhar-se na cidade que a recebe indiferente e nem pergunta: porquê?


hasta.

Lizzie disse...

Arábica:

ai tu não me fales da febre dos fenos, rinites e sinusites e afins que tais coisas, ainda adormecidas, se lembram de acordar em mim. Nessas alturas, muito eu peço à Santa Lizzie que me mande espirros, que são de tão farto alívio e eu tenho tão poucos.:)

Furar muros não foi nada que não me tivesse passado pela cabeça mas a intuição disse-me que não devia perturbar aquele mundo, ou melhor dito, toda a expressão do olhar, do andar é de tal forma alheada do exterior, que me disse para não deixar adiantar a curiosidade.

Outros também sentem que existe ali uma barreira voluntariosa que impede o contacto.

E, para mim, ainda existe a memória de passagens rápidas pelo Bronx e Harlem, sítios onde, na rua, se vê dançar maravilhosamente, mas não se sendo sister ou brother, se percebe que se entra em território vedado. A comunicação é difícil quando não impossível.

Na rapariga reconheço alguns movimentos/gestos do hip-hop que não serão propriamente amistosos (houve um "traidor" a trabalhar no Ballet que me ensinou alguns significados).

Mas o talento subjacente ninguém lho tira. Está lá. E depois de cada sessão, os olhos e a forma de andar transmitem uma certa felicidade. Menos tensa e mais segura. Parece mais pronta a enfrentar o mundo. Seja lá ele qual for.


Bom fim de semana e as melhoras.

Besos

Arábica disse...

Lizzie

há tantas formas de meter conversa!


E estamos tão longe do Bronx!

E sózinha na Fnac, com a felicidade no olhar, como poderia constituir ameaça?



Lembra-te que estás em Portugal, na Fnac e no mundo da música: minimiza tudo o resto :)

Eu tento conter a alergia.

Quem me mandou andar a cheirar os perfumes primaveris de árvores de rua? quem? pois não sei já eu, que sou uma flor de estufa que me deveria conformar com os perfumes de parede, exalados através de forma electrica???

nunca mais aprendo. :((

Beijos e bom fim de semana!

Lizzie disse...

Arábica:

fomos quase simultâneas:)

Sociologicamente falando, e tal como me lembro, a ópera e o rap são incompatíveis. Pelo menos eram.

Uma é branca,clássica e representa uma classe ligada à opressão. Isto do ponto de vista dos negros dos bairros pobres.
Italianos e negros nunca se deram bem.

O rap, variante do hip-hop,é recente, marcadamente urbano e, sejamos claras,foi-se desenvolvendo através de uma intenção agressiva, nomeadamente na luta entre gangs negros rivais e contra o "poder" branco considerado responsável pela pobreza. Nunca se analizam ali as causas. Vai-se directamente às consequências. O Marther Lutter King bem definiu as formas de acabar,com o tempo,com esta pobreza.

Felizmente, hoje em dia, o rap já é usado por muitos para educar no sentido da não violência quer entre negros quer entre raças.
Uma das coisas que ensina é que é preciso estudar e trabalhar. Outra é que não se deve bater nas mulheres. Outra ainda é que todas as culturas são válidas e música/dança são linguagens de paz.

Especulando, diria que a rapariga (não faço ideia que idade terá) é duma escola onde toda a música e expressões são grandes. Não a estou a ver metida num gang. Estou a imaginá-la numa escola de artes "à americana", tipo Fame e depois com um qualquer azar na vida que a destruiu.

O cd de rap que ela ouve, disseram-me, tem muita influência religiosa e fala de encontros e viagens.´


Hasta lunes, quá hoy mismo me voy.

Lizzie disse...

:))

Não tenho medo da rapariga. Credo.

Só acho que não devo interferir no mundo dela. O que é que lhe iria oferecer? Uma provável lembrança do que não se quererá, eventualmente, lembrar?

Mexer-lhe nas feridas?

Passa cá para este mundo de duche diário e roupa lavada no corpo e na cama? Para este mundo racional onde nos preocupamos (quer se queira quer não)com a imagem exterior que queremos dar de nós aos outros, mesmo que nunca falemos de palavras com eles?

É um risco muito maior para ela do que para mim. É matéria para pessoas preparadas para isso, sei lá, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais.

Quanto a cheirar árvores, olha, quando acordo, vem o cheiro delas ter comigo:)
Na minha morada está tudo em flor. Lá ando eu de anti-histaminico e soro para os olhos.

Felizmente a tosse está atrasada.

Arábica disse...

E se por qualquer razão a rapariga tem fome de gente que perceba o movimento na música?

E se até ja se resignou à falta de abrigo condigno mas não se resigna a não ter a quem contar as memorias? quem a perceba? quem partilhe da memória do palco e do cheiro ao pano?

(contínuo especulando, abençoada febre, abençoados quintais que me trazem nas árvores em flor, os perfumes e estupidez minha ainda querer mais, procurar a overdose)


Sabes,Lizzie, dificil é ficar indiferente aos rostos que se cruzam com os nossos, às histórias ambulantes que se desprendem dos corpos.

Pode ela associar a ópera aos valores referidos por ti, ou não.
Pode ela ter vivido, cantado, dançado Orfeu ou não.

Tudo pode ser e já é.

Dentro de nós ela já foi :)

Ficaria mais feliz se o soubesse?

Tenho saudades do "Fame"; das tardes de sábado em que não perdia um episódio. Ou seria ao domingo? Mas sei que só saía de casa, para ir ao cinema, depois de acabar.

Ainda não havia forma de gravar para ver mais tarde. 1977?


Vai-te. Eu fico. Escrava enclausurada de alergia sazonal.

Raios me partam :)

Beijos

Alien8 disse...

Lizzie,

Uma experiência notável, esta que tiveste. Imagino as que terá tido a rapariga...

Acabei por ler o teu post sobre o Dior, embora com muito atraso (desculpa!).

Frioleiras disse...

addddddddddddddddddddddoro Gluck!

que dizer mais?

Frioleiras disse...

E, Lizzie, há muito que não passava por aqui...........

continuas com um blog lindíssimo e muito, muito interessante! Parabéns, pois !

Texto-Al disse...

ha mt q nao passava ca. gostei mt deste texto;)

T.

Lizzie disse...

Arábica:

Já fui e já voltei:(

Não costumo perguntar qual a memória do “cheiro do pano”.

Limito-me (limitamo-nos) a deixar as portas abertas para que quem quiser desabafar, entre na minha sala privada e ria, chore, grite, estrebuche, quando lhe apetecer. E se lhe apetecer.
Em certas circunstâncias, as perguntas podem ser facas de gume afiado.

Às vezes a curiosidade não pode ser tão forte que siga para uma espécie de autópsia do fracasso.

E as pessoas anónimas, que se cruzam comigo e que acho que falam muito mas caladas, sempre foram fonte de inspiração: aqueles pequenos, pequeníssimos e involuntários pormenores que levam à “ilusíon” e que ficam registados na memória. Quase me sinto vampira da riqueza dos outros.

Sou péssima em anos e datas. Do Fame só me lembro da verdade de uma frase: a fama paga-se cara em suor.
E paga, ai não que não paga:)

As tuas melhoras, nena.

Atchins ao largo:))

Lizzie disse...

Alien:
desculpa, porquê?:)

aqui está uma criatura de quem o Dior mandaria fugir o olhar mas, quiça,para outros estilistas, fosse fonte de análise.

Conheço um que fez uma colecção baseada, e para chamar a atenção, para o número cada vez maior dos sem abrigo. Aqueles que estão bem na vida e que, de um momento para o outro, por desemprego, alcoolismo, toxicodependência, loucura ou outra coisa qualquer vão parar à desistência.

Também imagino que voltas e revoltas terá aquela rapariga sofrido. Felizes não foram de certeza. Se foram voluntárias ou não, não faço ideia mas duvido que alguém vá à caridade de uns sons através de uns auscultadores por mero exercício de excentricidade consciente e voluntária.

Nestes casos lembro-me sempre do Moon Palace do Paul Auster.

Abraço para ti e para Mi Patatita.

Lizzie disse...

Frioleiras:

Muito obrigada!

E o Gluck é um dos meus companheiros de sempre. Não me canso do ballético Don Juan e muitas vezes cirando pela casa com as sonatas. É dos tais, versatilmente, dançáveis:))

Lizzie disse...

T.

Muito obrigada!
É (são) sempre bem-vindo aqui.

Infelizmente, embora seja uma leitora quase compulsiva, os meus conhecimentos sobre literatura não passam do intuitivo, do gosto-não gosto.

As palavras também se dançam, também se desenham.

E gostei do seu espaço.

Arábica disse...

Deixei o café quente.


Faz-me o favor de quando entrares, não fazeres barulho porque posso estar a dormir. :)

(os bébés têm o sono leve, tão leve...)

:-D

Lizzie disse...

Arábica:

os VELHOS têm o sono pesado, tão pesado...:)


que tenhas uma longa vida para gozar as boas vigilias. E os bons sonos...:))


besos