terça-feira, 15 de abril de 2008

As cartas






Meus amigos:

Espero que estejam todos bem que cá por estes lados não há grandes novidades.

Gostava que a presente fosse escrita, como aquelas que ainda continuo a escrever, pelo meu próprio punho, mas convosco só posso usar esta frieza de teclas arrumadas em que o coração da caligrafia não bate.




Continuo a escrevê-las quando me apetece, ao sabor do desejo ou da lembrança sem o aprumo e etiqueta das cartas vitorianas a que acho tanta graça. Não, meus amigos, não lhes procuro as palavras certas, próprias e convenientes. Gosto delas vivas como se me respirassem. E são de igual modo as que recebo. Pelo fluir da escrita, pela forma como a fonte da tinta desagua na foz do papel, sinto o estado da alma de quem escreve: os afectos, as distracções, os ralhos.




E conheço os gestos e modos de quem as abre. Fiquei desperta para as manipulações das epistolas , não sei se já vos contei, quando um dia fui ver uma peça num pequeno teatro de Madrid. Era esta senhora mais nova, como eu, que andamos sempre com o tempo a par embora ela seja por nascimento mais velha, quando numa cena me apaixonei pela forma como os dedos obedeciam ao rebuliço do sentir dos olhos.





A partir daí, mesmo sem querer, olho para as mãos que vou vendo e penso-as ora ansiosos, ora indiferentes, tristes, apaixonadas, ternas, urgentes.
Quase que vos, pelo menos a alguns, imagino nesse momento tão intimo, perdoem-me a intromissão. E a indelicadeza.

Sei que, lá, onde as recebem e lêem, podem sorrir quando, nem que seja a meio da noite na teimosia da insónia, me lembro de pegar na velha caneta de tinta permanente, aquela que dá antiguidade e flutuação à letra, e dou notícias dos meus absurdos…a que já há anos se habituaram.





e vejo-os a abanar a cabeça como os vejo franzir o sobrolho avaliador quando sugiro formas de resolver equações que se hão-de transformar, ou não, em ilusões.




Coisas ao correr da pena, sem rumo, escritas no tombo da cama, como tantas outras que a vigilia colecciona.

Ontem recebi mais uma num lindo papel sépia com tinta chocolate. Foi-me lugar de recolhido repouso depois da corrida obrigatória onde não cabem palavras pousadas.





Pareceu-me uma carta de mão cansada. Escrita ao fim de um dia e dum serão de trabalho. Conheço-lhes as horas e as canseiras pelas letras.

Lia-a e depois guardei-a em pasta de biografia continua. As palavras escritas não as leva o vento, ficam presas ao que disseram sem que o futuro as corte.





E ainda me lembro de olhar com fascínio para pastas antigas como se de cofres de segredos se tratassem.





Vidas enclausuradas em museus, ou em casas onde foram escritas como a da eremita, de que não me lembro agora o nome, que nesta cabana,




escreveu milhares para endereços à sorte, histórias para destinatários que nunca conheceu.
E, pronto, por hoje não os maço mais. Vou-me embora e pelo caminho envio-a.

Abraços.


10 comentários:

Graça Brites disse...

Querida Lizzie:

Também eu gostava de viajar no tempo e poder escrever a presente numa folha de bloco A5 (ou era A6?) desenhando letras com uma tinta permanente a escorrer em linhas azuis. Infelizmente parece que o progresso por todos ansiado também nos vai afastando de algumas práticas tão cheias de fascínio como é esta de escrever cartas à mão. Perdemos o prazer de abrir a caixa do correio e amaciar os dedos em sobrescritos repletos de novidades, saudades, melancolias, tédios ou alegrias, desabafos aos montes e outros estados de alma e emoções. Agora temos que nos contentar com as cartas da EDP, da EPAL, da Lisboa Gás, dos bancos, os folhetos do Lidl e do Pingo Doce, os cartões de visita de pessoas que arranjam esquentadores e fogões, de engomadorias e empresários em nome individual que montam marquises a preços módicos com orçamentos grátis. É que agora já nem há daquelas cartas das Selecções do Rider's Digest brilhantemente personalizadas em 'mail merge' com uma senhora com ar de empresária a olhar-nos nos olhos e um sorriso de plástico a ver se nos convence com um parlapiê standard que aquele texto é só para nós. Nadica. Aderimos completamente à prática da escrita computorizada e abdicámos daquilo a que chamas o bater do coração da caligrafia. As cartas perderam encanto, é certo, mas apenas na forma, porque os conteúdos continuam a ser os mesmos, interessantes ou não dependendo de quem os escreve. E a emoção de receber um e-mail de alguém que tem uma conversa atraente, essa não se perdeu. Só que em vez de nos aparecer na caixa do correio à entrada de casa, surge-nos por artes mágicas sob a forma de envelope minúsculo no canto inferior direito de uma coisa chamada monitor.
Tu falaste mais na criatividade e na sedução do acto de escrever cartas à mão. Eu respondo mais em registo de destinatário desencantado.:) Gostava de ter recebido uma carta daquela senhora que escrevia para destinatários ao acaso. Havia de ser muito divertido! :)

Obrigada por esta bela epístola sobre as coisas fascinantes.

Beijinhos

Cici

Lisboa, 17 de Abril de 2008

casa de passe disse...

Lizzie, está bem ?
Não terás apanhado demasiado sol?

Coisas dessas já não se usam. É perda de tempo, menina, se queres viver a vida. hoje já ninguém liga a epístolas. quere-se é actos

e nós, lá por casa, actuamos muito.

Lizzie disse...

Querida Cici:

Ainda bem que também gostas das cartas escritas à mão. Se tivesses vivido nos anos trinta talvez tivesses recebido uma da senhora americana que vivia naquela cabana. Ainda lá estão a cadeira e a secretária mais os apetrechos de escrita onde ela desaguava toda a loucura avulsa e inocente que lhe ia na alma.

Quanto a mim, convivo com o velho e com o novo. Também gosto de receber mails. Ainda ontem, enquanto falava com uma amiga ao telefone, recebi um de Espanha com uma fotografia cheia de história e dança lá dentro. Quase se levantou e me deu um abraço.

Escrever à mão pode ser uma forma de afagar à distância. Transporta o cheiro e o toque. Já reparaste nas diferentes maneiras como cada pessoa dobra um papel?
Há quem o vinque com força, há quem pareça ter medo de o magoar, há quem eleve as mãos até à altura do peito na fronteira entre a face e o coração. As tais coisas e gestos simples que dizem tanto, com ou sem arestas nos traços.

Lá também recebo o folheto publicitário do Carrefour: cinco cds por el precio de dos (esta semana Mozart por von Karajan), cinco libros por siete com cinquenta ( e já se sabe que um há-de ser do Saramago).
Ontem além do folheto do Lidl, dum convite da FNAC e das notícias do ACP, tinha um anúncio do “fabuloso baile dançante na sociedade recreativa******, abrilhantado pelo maravilhoso conjunto musical Irmãos Pereira e pela extraordinária acordeonista Soraia Gomes.”

Muitos beijinhos para ti com agradecimentos pelo teu excelente comentário

Lisboa, 18 de Abril de 2008-04-18

Tua

Lizzie

Lizzie disse...

Casa de Passe:
aqui apanha-se tanto sol e tanta lua com calma e vagar que não há:
gonorreia
HPV
SIDA
hepatites B, C ou D
sífilis
tubercolose cutãnea, pulmonar ou óssea multiresistentes

e BSE também não consta.

Se se apanhar alguma que seja o "major vírus" da gripe das aves.
Aqui toda a gente gosta de voar, mesmo que tenha os pés assentes na terra.
Percebido?

Haddock disse...

lizzie, excelente pretexto!
infelizmente, já nos desabituámos das epístolas.
só as escrevemos para quem reclama formalidade e pouco mais... e até temos um letra assim-assim!
mas adorávamos, mais do que escrevê-las, lê-las.
e não só as que nos tinham por destinatários...
e ainda hoje relemos missivas antigas por acto masoquista ou de saudade ou simplesmente para rir. rir de nós e também dos outros, embora com afecto, que não somos assim tão cínicos...
de resto, na tradicional caixa de correio só aparece publicidade enganosa e contas para pagar.
excepcionalmente, postais de quem está de f***** ou a celebrar o n*****.

tema giro...

vénia...

Emma Larbos disse...

Ainda no outro dia, em certas circunstâncias, tive de escrever um texto sobre as razões por que hoje ninguém guarda os e-mails que recebe e antigamente se guardavam as cartas durante anos, às vezes séculos. E entre muitas coisas que então dizia, recordava as mães analfabetas que durante a guerra colonial traziam sempre na mala a última cartas recebida do filho que estava na guerra. Não porque pudessem lê-la mas porque o contacto com ela lhes permitia trazer o filho embalado e guardado quanto era possível.
Tocando nas letras que outro desenhou fazemos-lhe uma festa.
E aquelas cartas, da tonta e ingénua adolescência, em que se escrevia ao namorado e depois se deixava cair na tinta um pingo de água para fingir que era uma lágrima?
Tantas carícias e enganos e falas silenciosas e mímicas entre linhas que o e-mail não autoriza!

Lizzie disse...

Capitão:
Folgamos que vossa letra seja assim-assim, já que a nossa só é legível por quem a ela se vai habituando. Tivemos suplício de caderno de duas linhas. Já não nos bastavam os erros ortográficos.

Como desde muito cedo andámos de um lado para o outro, fomos guardando todas as cartas. Uma forma de não nos perdermos o rasto ou de criar um território fixo.

E, tendes razão, são uma forma de nos rirmos de nós com muita ternura pela mansa ingenuidade. Vamos vendo pelo o que nos escreviam como os outros e nós vamos mudando. Estou-me a lembrar de um namorado que tivemos que, nós com quinze e ele com dezassete, nos escrevia com vastos pormenores de casamento católico para breve. Estávamos lá nós para aí viradas com tanto mundo para correr…
Pois o infante não casou e muda de mulher de mês a mês.

Quanto a publicidade enganosa, embirramos especialmente com as cartas das Finanças na sua relação custo-benefício.

Continência

Lizzie disse...

Mi Emma:

É isso mesmo: nas cartas manuscritas há um toque que se faz presença.
Boa essa tua lembrança da guerra colonial. Letras de saudade e aflição.

E, se calhar, com muitas cartas se fez história. Na dança, por exemplo, foram um bom meio de a fazer. No séc. XVIII, houve até uma espécie de espionagem através delas. Roubavam-nas para saber o que as e os rivais se preparavam para fazer de forma a causar mais estrelato e sensação. Na chamada época da Dança Moderna também se soube muito sobre as ideias inovadoras e suas consequências através das cartas escritas pelas mentoras das novas formas.

E a correspondência do Van Gogh? Ainda hoje se estuda a progressão da doença através dos gatafunhos cada vez mais desordenados.
Duvido que daqui a anos se faça história com os mails e sms apagados.
Nasce quase tudo para passar e esquecer sem fonte própria, pessoal e mais profunda.
Acho eu.

pentelho real disse...

amiga e senhora lizzie,
li e reli esta sua encantadora missiva.
foi a segunda carta que li nas últimas 24 horas e ambas me deram muita satisfação. Por motivos diferentes: esta porque me encanta tudo o que de seu tenho lido; a outra, porque, por motivos pessoais me alegrou.

sabieis que ontem foi noite de lua cheia? estava linda a lua. a partir de hoje vai começar a ficar mais pequena mas não faz mal. estou feliz...

Lizzie disse...

Cara Alteza:

Muito me alegro com o Vosso contentamento, assim sabendo que mesmo sem letras a Lua vos trouxe boas novas quer através da minha modesta pena, que muito folgo seja do Vosso agrado, quer da outra que haveis recebido.
Jubilemos a felicidade nestas horas.

Reverencialmente Vossa

Lizzie