As cartas

Meus amigos:
Espero que estejam todos bem que cá por estes lados não há grandes novidades.
Gostava que a presente fosse escrita, como aquelas que ainda continuo a escrever, pelo meu próprio punho, mas convosco só posso usar esta frieza de teclas arrumadas em que o coração da caligrafia não bate.

Continuo a escrevê-las quando me apetece, ao sabor do desejo ou da lembrança sem o aprumo e etiqueta das cartas vitorianas a que acho tanta graça. Não, meus amigos, não lhes procuro as palavras certas, próprias e convenientes. Gosto delas vivas como se me respirassem. E são de igual modo as que recebo. Pelo fluir da escrita, pela forma como a fonte da tinta desagua na foz do papel, sinto o estado da alma de quem escreve: os afectos, as distracções, os ralhos.

E conheço os gestos e modos de quem as abre. Fiquei desperta para as manipulações das epistolas , não sei se já vos contei, quando um dia fui ver uma peça num pequeno teatro de Madrid. Era esta senhora mais nova, como eu, que andamos sempre com o tempo a par embora ela seja por nascimento mais velha, quando numa cena me apaixonei pela forma como os dedos obedeciam ao rebuliço do sentir dos olhos.

A partir daí, mesmo sem querer, olho para as mãos que vou vendo e penso-as ora ansiosos, ora indiferentes, tristes, apaixonadas, ternas, urgentes.
Quase que vos, pelo menos a alguns, imagino nesse momento tão intimo, perdoem-me a intromissão. E a indelicadeza.
Quase que vos, pelo menos a alguns, imagino nesse momento tão intimo, perdoem-me a intromissão. E a indelicadeza.
Sei que, lá, onde as recebem e lêem, podem sorrir quando, nem que seja a meio da noite na teimosia da insónia, me lembro de pegar na velha caneta de tinta permanente, aquela que dá antiguidade e flutuação à letra, e dou notícias dos meus absurdos…a que já há anos se habituaram.

e vejo-os a abanar a cabeça como os vejo franzir o sobrolho avaliador quando sugiro formas de resolver equações que se hão-de transformar, ou não, em ilusões.


Coisas ao correr da pena, sem rumo, escritas no tombo da cama, como tantas outras que a vigilia colecciona.
Ontem recebi mais uma num lindo papel sépia com tinta chocolate. Foi-me lugar de recolhido repouso depois da corrida obrigatória onde não cabem palavras pousadas.

Pareceu-me uma carta de mão cansada. Escrita ao fim de um dia e dum serão de trabalho. Conheço-lhes as horas e as canseiras pelas letras.
Lia-a e depois guardei-a em pasta de biografia continua. As palavras escritas não as leva o vento, ficam presas ao que disseram sem que o futuro as corte.

E ainda me lembro de olhar com fascínio para pastas antigas como se de cofres de segredos se tratassem.

Vidas enclausuradas em museus, ou em casas onde foram escritas como a da eremita, de que não me lembro agora o nome, que nesta cabana,

escreveu milhares para endereços à sorte, histórias para destinatários que nunca conheceu.
E, pronto, por hoje não os maço mais. Vou-me embora e pelo caminho envio-a.
Abraços.

10 comentários:
Querida Lizzie:
Também eu gostava de viajar no tempo e poder escrever a presente numa folha de bloco A5 (ou era A6?) desenhando letras com uma tinta permanente a escorrer em linhas azuis. Infelizmente parece que o progresso por todos ansiado também nos vai afastando de algumas práticas tão cheias de fascínio como é esta de escrever cartas à mão. Perdemos o prazer de abrir a caixa do correio e amaciar os dedos em sobrescritos repletos de novidades, saudades, melancolias, tédios ou alegrias, desabafos aos montes e outros estados de alma e emoções. Agora temos que nos contentar com as cartas da EDP, da EPAL, da Lisboa Gás, dos bancos, os folhetos do Lidl e do Pingo Doce, os cartões de visita de pessoas que arranjam esquentadores e fogões, de engomadorias e empresários em nome individual que montam marquises a preços módicos com orçamentos grátis. É que agora já nem há daquelas cartas das Selecções do Rider's Digest brilhantemente personalizadas em 'mail merge' com uma senhora com ar de empresária a olhar-nos nos olhos e um sorriso de plástico a ver se nos convence com um parlapiê standard que aquele texto é só para nós. Nadica. Aderimos completamente à prática da escrita computorizada e abdicámos daquilo a que chamas o bater do coração da caligrafia. As cartas perderam encanto, é certo, mas apenas na forma, porque os conteúdos continuam a ser os mesmos, interessantes ou não dependendo de quem os escreve. E a emoção de receber um e-mail de alguém que tem uma conversa atraente, essa não se perdeu. Só que em vez de nos aparecer na caixa do correio à entrada de casa, surge-nos por artes mágicas sob a forma de envelope minúsculo no canto inferior direito de uma coisa chamada monitor.
Tu falaste mais na criatividade e na sedução do acto de escrever cartas à mão. Eu respondo mais em registo de destinatário desencantado.:) Gostava de ter recebido uma carta daquela senhora que escrevia para destinatários ao acaso. Havia de ser muito divertido! :)
Obrigada por esta bela epístola sobre as coisas fascinantes.
Beijinhos
Cici
Lisboa, 17 de Abril de 2008
Lizzie, está bem ?
Não terás apanhado demasiado sol?
Coisas dessas já não se usam. É perda de tempo, menina, se queres viver a vida. hoje já ninguém liga a epístolas. quere-se é actos
e nós, lá por casa, actuamos muito.
Querida Cici:
Ainda bem que também gostas das cartas escritas à mão. Se tivesses vivido nos anos trinta talvez tivesses recebido uma da senhora americana que vivia naquela cabana. Ainda lá estão a cadeira e a secretária mais os apetrechos de escrita onde ela desaguava toda a loucura avulsa e inocente que lhe ia na alma.
Quanto a mim, convivo com o velho e com o novo. Também gosto de receber mails. Ainda ontem, enquanto falava com uma amiga ao telefone, recebi um de Espanha com uma fotografia cheia de história e dança lá dentro. Quase se levantou e me deu um abraço.
Escrever à mão pode ser uma forma de afagar à distância. Transporta o cheiro e o toque. Já reparaste nas diferentes maneiras como cada pessoa dobra um papel?
Há quem o vinque com força, há quem pareça ter medo de o magoar, há quem eleve as mãos até à altura do peito na fronteira entre a face e o coração. As tais coisas e gestos simples que dizem tanto, com ou sem arestas nos traços.
Lá também recebo o folheto publicitário do Carrefour: cinco cds por el precio de dos (esta semana Mozart por von Karajan), cinco libros por siete com cinquenta ( e já se sabe que um há-de ser do Saramago).
Ontem além do folheto do Lidl, dum convite da FNAC e das notícias do ACP, tinha um anúncio do “fabuloso baile dançante na sociedade recreativa******, abrilhantado pelo maravilhoso conjunto musical Irmãos Pereira e pela extraordinária acordeonista Soraia Gomes.”
Muitos beijinhos para ti com agradecimentos pelo teu excelente comentário
Lisboa, 18 de Abril de 2008-04-18
Tua
Lizzie
Casa de Passe:
aqui apanha-se tanto sol e tanta lua com calma e vagar que não há:
gonorreia
HPV
SIDA
hepatites B, C ou D
sífilis
tubercolose cutãnea, pulmonar ou óssea multiresistentes
e BSE também não consta.
Se se apanhar alguma que seja o "major vírus" da gripe das aves.
Aqui toda a gente gosta de voar, mesmo que tenha os pés assentes na terra.
Percebido?
lizzie, excelente pretexto!
infelizmente, já nos desabituámos das epístolas.
só as escrevemos para quem reclama formalidade e pouco mais... e até temos um letra assim-assim!
mas adorávamos, mais do que escrevê-las, lê-las.
e não só as que nos tinham por destinatários...
e ainda hoje relemos missivas antigas por acto masoquista ou de saudade ou simplesmente para rir. rir de nós e também dos outros, embora com afecto, que não somos assim tão cínicos...
de resto, na tradicional caixa de correio só aparece publicidade enganosa e contas para pagar.
excepcionalmente, postais de quem está de f***** ou a celebrar o n*****.
tema giro...
vénia...
Ainda no outro dia, em certas circunstâncias, tive de escrever um texto sobre as razões por que hoje ninguém guarda os e-mails que recebe e antigamente se guardavam as cartas durante anos, às vezes séculos. E entre muitas coisas que então dizia, recordava as mães analfabetas que durante a guerra colonial traziam sempre na mala a última cartas recebida do filho que estava na guerra. Não porque pudessem lê-la mas porque o contacto com ela lhes permitia trazer o filho embalado e guardado quanto era possível.
Tocando nas letras que outro desenhou fazemos-lhe uma festa.
E aquelas cartas, da tonta e ingénua adolescência, em que se escrevia ao namorado e depois se deixava cair na tinta um pingo de água para fingir que era uma lágrima?
Tantas carícias e enganos e falas silenciosas e mímicas entre linhas que o e-mail não autoriza!
Capitão:
Folgamos que vossa letra seja assim-assim, já que a nossa só é legível por quem a ela se vai habituando. Tivemos suplício de caderno de duas linhas. Já não nos bastavam os erros ortográficos.
Como desde muito cedo andámos de um lado para o outro, fomos guardando todas as cartas. Uma forma de não nos perdermos o rasto ou de criar um território fixo.
E, tendes razão, são uma forma de nos rirmos de nós com muita ternura pela mansa ingenuidade. Vamos vendo pelo o que nos escreviam como os outros e nós vamos mudando. Estou-me a lembrar de um namorado que tivemos que, nós com quinze e ele com dezassete, nos escrevia com vastos pormenores de casamento católico para breve. Estávamos lá nós para aí viradas com tanto mundo para correr…
Pois o infante não casou e muda de mulher de mês a mês.
Quanto a publicidade enganosa, embirramos especialmente com as cartas das Finanças na sua relação custo-benefício.
Continência
Mi Emma:
É isso mesmo: nas cartas manuscritas há um toque que se faz presença.
Boa essa tua lembrança da guerra colonial. Letras de saudade e aflição.
E, se calhar, com muitas cartas se fez história. Na dança, por exemplo, foram um bom meio de a fazer. No séc. XVIII, houve até uma espécie de espionagem através delas. Roubavam-nas para saber o que as e os rivais se preparavam para fazer de forma a causar mais estrelato e sensação. Na chamada época da Dança Moderna também se soube muito sobre as ideias inovadoras e suas consequências através das cartas escritas pelas mentoras das novas formas.
E a correspondência do Van Gogh? Ainda hoje se estuda a progressão da doença através dos gatafunhos cada vez mais desordenados.
Duvido que daqui a anos se faça história com os mails e sms apagados.
Nasce quase tudo para passar e esquecer sem fonte própria, pessoal e mais profunda.
Acho eu.
amiga e senhora lizzie,
li e reli esta sua encantadora missiva.
foi a segunda carta que li nas últimas 24 horas e ambas me deram muita satisfação. Por motivos diferentes: esta porque me encanta tudo o que de seu tenho lido; a outra, porque, por motivos pessoais me alegrou.
sabieis que ontem foi noite de lua cheia? estava linda a lua. a partir de hoje vai começar a ficar mais pequena mas não faz mal. estou feliz...
Cara Alteza:
Muito me alegro com o Vosso contentamento, assim sabendo que mesmo sem letras a Lua vos trouxe boas novas quer através da minha modesta pena, que muito folgo seja do Vosso agrado, quer da outra que haveis recebido.
Jubilemos a felicidade nestas horas.
Reverencialmente Vossa
Lizzie
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