segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Telefone







É esse o poder do telefone, o de guardar a voz que se espera como se a contivesse dentro e fosse dono da vontade de a soltar. Olha-se para ele e pede-se-lhe que a anuncie.


Tudo partiu de um post da Nnannarella, nas extintas Costelas de Adão. Comentei e alguém do outro lado do fio, com voz embargada e castelhana, me pediu que completasse o rumo ao texto. Sem pensar para quem ou quê. Fiz-me letra de saudade. Alguém iria dançar uma dor arrastada de silêncios, de todos os silêncios que se ouvem nos olhos de quem espera. E já dançou. Com o corpo já muito aprendido.









Disse-lhe no caminho que a saudade é aquela vista habituada a olhar para o longe, para a fronteira entre o mar e o céu, à espera que brancas velas venham restaurar a vida. Também lhes disse : a vossa distância é feita de terra, de acidentes geográficos, a minha foi parida no Tejo, água corrente até chegar à foz do desejo. É no sítio onde se cresce primeiro que a paisagem da ausência se define. Depois vão-se aprendendo outras formas. É espiral sem parança nem poiso. Aprende-se a gostar, a amar e chega-se ao conhecimento intimo do que falta.


Lá chegamos, neve em redor, lá vestimos os vestidos para ocasião solene. Pretos por noite e empatia. Também será um bocado de mim a entrar naquela arena de foco ambíguo entre a atracção e o temor. Quem o saberá definir melhor, que as pernas fracas de tremuras ou os braços na direcção do desafio dos voos, ainda que agarrados ao chão.







Lá a deixámos. Lá a vimos subir as escadas, lá a mandámos à la mierda, cumprindo a tradição com o coração aflito, disfarçado de calma, a pôr a voz clara, os olhos enxutos, tantos anos depois de já ter largado o tique, que mantém, de descontrair os dedos, de lhes dar mando de obediência.









Começa a ouvir-se a voz a modular o texto, nem o conheço assim dito do exterior, barro que a interpretação transforma. Para melhor. Não tenho aquele dom de martelar as palavras até doerem e o meu corpo já se esqueceu da forma do chão









que o desenho da luz faz líquido.


E damos as mãos, na plateia, no meio daqueles olhos atentos , estranhos e críticos.



Ali, naquele corpo que se rebola, contorce, expande, contrai, grita, ri, está a nossa história.

Comum e partilhada ao longo de anos. Já quase não nos lembramos do enredo.







Depois a música de Philip Glass, concerto para violino, ecoa-nos nos ouvidos, faz a viagem até à memória. Agora com outros movimentos, talvez com outra sabedoria ou com outro encanto.


Ouvimos os aplausos do lado de cá, enxugamos a lagriminha insolente, naquele final feliz em que o telefone anuncia a voz que há-de pedir, sonolenta e louca que te olvides de morrir. Seríamos lá capazes de deixar alguém triste...sem promessa de saída para um laivo que seja de felicidade.





E cumpridas as formalidades, voltamos ao hotel para a festa de quem se conhece. Largamos vestes, voltamos a ser aquilo que sempre fomos: pessoas que andam com os amores nas mãos, aqueles que o tempo nos ensinou a ter sem luvas nem resguardos. Talvez por isso a Lola tenha comido o seu quinto chocolate sem ralhos. Ou a mais nova tenha desmanchado a cama com pulos e cambalhotas. Ou eu tenha massacrado a protagonista com almofadas de penas. Vingança latina naquele mundo tão asséptico e ordenado, tão vazio de santa loucura.








E, desta vez, Doña Pilar, conseguiu que Deus, na sua indiferença, a ouvisse: ia rezar um terço para que tudo corresse bem. E correu. Nem os terroristas puzeram uma bomba nos risos que ainda não esquecemos de espalhar.




Hasta luego, telefonem-me quando chegarem!
E até hoje os nossos telefones não têm sido cofres que guardem para si as vozes por onde a alma espreita.

8 comentários:

Madame Maigret disse...

Bonjour madame Lizzí... entro discretamente, como passei toda a vida car sinto que piso um terreno tão intime e personnel.Fico sempre maravilhada com a felicidade des autres e sinto que aqui é de pura felicidade que se trata!_________ C'etait un plaisir! Continuation, mon amie!

Lizzie disse...

Ma Chére Madame:
Vous avez raison: é sempre uma felicidade ver uma amiga e colega de tantos e tantos anos voltar ao palco e sentir que a dança nasceu e há-de morrer com ela. Já está longe de ser rapariga nova mas o corpo ainda responde ao que quer transmitir.A idade também tem força. A passagem do tempo é sábia.
E também eu gosto de ver as pessoas felizes.
Madame seria bem vinda à tal festa se não se escandalizasse, e parece que tem uma mente muito jovem, com as nossas criancisses. Cher Madame, ali ninguém tem juízo a começar pour moi.

Como vou de férias, aproveito para me despedir. Até para o ano, ma cher amie.
Um abraço para si e para o seu Jules.

Haddock disse...

de facto, lizzie, também hesitámos, tal o intimismo deste postal. parece que escutamos, sem respirar, uma conversa cruzada e tentamos adivinhar o que, por ser pressuposto, não é dito.
auspicioso regresso ao palco.
quase que assistimos à dança.

vénia...

pentelho real disse...

aqui vim depois de passar pelo nosso querido Hddock, que por sinal tem um comentário antes deste.
com o frio que faz arrepiei-me um bocado ao ver esta senhora descalça e deitada pelo chão.
é a primeira vez que por aqui passo. voltarei


ps-o pai natal lá da nossa vila não dá ao rabo...

pentelho real disse...

madame maigret, fiquei com pena de não poder entrar na sua casa, mas acho que faz bem, a privacidade é coisa muito importante...

Lizzie disse...

Honroso Capitão, este postal tem a intenção de uma homenagem, se bem que sejamos adversas a tais afectos encomendados.
Esta dança-teatro foi assim como as cerejas:começou-se numa e vai mais uma e vai mais outra ideia e muito massacrei a cabeça a esta senhora para que voltasse ao palco e não me arrependo. Ao fim e ao cabo muito nos ensinou em tempos passados e mais provou que a dança não tem idade. Pode-se mudar a forma mas o conteúdo nunca se perde. Ficámos assim comovidas a dobrar.


Mais uma vez vos faço continência.

Lizzie disse...

Pentelho Real:
Saiba vossa Alteza que se há sítio onde não se tem frio é ali. Até se chega a perder peso com tanta agitação e calor.
Quando fordes a uma exibição balética sabei que já lá se chega bem aquecido. Às vezes apetece até que o chão seja frigorifico.

Muito vos agradecemos a visita.

A. disse...

pois é...

...tenho que voltar com toda a calma e tempo. quero muito ler e ler o que por aqui tens deixado, minha Eli.

leio na minha tanta pressa...e cheia de vontade de te escrever, deixo o espaço em branco e vou.

mas queria agradecer.sabes do que falo.tens tanta razão...mas também sei que entendes a dor, a luta e a esperança que um dia as coisas até............e lá vamos nós, apanhamos o avião e estamos sempre por perto...........porque sim.




Eli, não vás ver...deixa lá!!
já me deixaste assim...ai ai ai...e tal e ...
;)

(...sei que já vai tarde, mas se quiserem bilhetes para 20 ou 22, por favor digam-me...eu aranjarei com todo o gosto.claro que também falo da minhaNnanna, espero que ela saiba disso, que nunca a esqueço ou deixo de a visitar.
e logo que me volte o Tempo à vidinha...lá estarei também a comentar.)



...mais uma vez, Eli, muito obrigada pelas palavras de coragem, de atenção, de abraços únicos e tão certeiros.vénia.
profunda e minha.


grata.sempEr.

ana