quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Doña Pilar






Doña Pilar parece este pássaro, em versão de desenho infantil. Muito baixa mas com perna magra e alta e, por problemas da coluna, tronco quase esférico com acentuada corcunda. Os olhos são pequenos mas espevitados, lá atrás das lentes de ver a todas as distãncias. Assume-se como viúva crónica, depois do marido ter morrido de traumatismo craniano, provocado por queda após valente bebedeira na casa de passe onde tinha frequente garrafa comprada como se de assinatura se tratasse. Era remotamente parecido com o Júlio Iglésias, embora fosse mais baixo, mais gordo e tivesse a cara redonda . Diz ela.


É porteira em Madrid e dá lustro vezes sem conta ao início do corrimão do prédio, ou seja, cada vez que pressente movimentação não esperada à porta do elevador. Fora ela barroca e criança, porque espanhola já é, e a imagem seria esta:









Muito tem que espreitar e polir porque ali moram pessoas estranhas, com vidas fora da dela, lá nos confins do cinema, do teatro , del Ballété, da moda e do flamenco e, de vez enquando, até uma portuguesa que cada vez que chega está mais magra e que por isso nem se sabe como ainda não virou esqueleto integral, própriamente dito, anatómico, tipo radiografia em positivo.

Foi o que aconteceu da última vez: que delgadita está usted! Faz de conta. Doña Pilar, por função e respeito trata todos os condóminos e visitas por usted. E sempre pergunta como está Lisboa, como se de pessoa de família se tratasse.
Doña Pilar está sempre informada de todas as notícias do mundo, emitindo opiniões convictas e formadas:
o Bush é parvo porque comeu muitas hamburguesas com queijo quando era pequeno;
Zapatero é seguramente marícon porque tem os olhos azuis e cara de senhora;
Doña Letizia está incorporada do espírito da Princesa Diana, mas nunca será projecto de santa porque defende os de Barcelona;
Figo é o melhor homem, filho, pai, marido do mundo, apesar de não ter nascido em Espanha;
D. Juan Carlos reina Espanha a partir de Portugal e através do telemóvel, não chega aos calcanhares de Doña Sofia, a grega, que, apesar de não ser espanhola é tão inteligente que parece nascida em Sevilha;
o Almodovar engana muito bem porque nasceu mulher e fez operação para ser homem;
debaixo de cada balcão da loja dos chineses, estão vinte ou mais crianças a fazer colares, más feos aún que los marroquís....

Tais opiniões formou-as ela com base no tal programa sabor a ti, compartilhadas por Argimiro, o dono do café na esquina e cujo sonho era ser figura pública, de preferência comentador político para dar cabo dos bascos e dos catalães sem esquecer os galegos. Aqui vai o meu modestíssimo contributo:




Merece porque é pessoa muito afável e tem um caniche branco chamado Luis Figo, porque nasceu no dia em que tal personagem saiu de Barcelona e foi para o Real Madrid. Sugere ele que devia ser dia festivo, ou seja, feriado municipal.
Doña Pilar é dada a catástrofes e mal chovem uns pingos prevê que Madrid vai desaparecer em água por causa do efeito de estufa. Ou, se não chove, vai ficar sequinha como África.
Por isso todos os domingos, pôe a sua mantilha preta e vai à missa, conversar com Deus, que é espanhol, a ver se ele ouve os seus alertas. Às vezes diz que não consegue por falta de concentração. Nós achamos que se trata de monólogo.








Não é esta senhora mas faz lembrar. Tem o mesmo fenótipo espanhol de devota exemplar.
Doña Pilar diz que é surda, mas sabemos que é só para o que lhe interessa. Uma vez, uma nossa visita que ela não conhecia disse, em voz muito baixa, que já se sabia que D. Juan Carlos acabava de ser pai de um filho bastardo cuja mãe era uma emigrante russa que fazia a limpeza na cozinha real, e, largando ela o brilho do corrimão clamou por Santa Madre de Dios, coño! Son todos iguales, mire usted lo puñetero. Não lhe chegou a perspicácia para ver que estava tudo combinado e lá se desfez o engano antes que o boato circulasse e fosse ter ao noticiário da Antena 3.

Também disse, no verão passado, que os portugueses inventaram o caso Maddie, para chamar turistas ao Algarve.. Na aldeia dela, se fossem espertos faziam o mesmo, mas os espanhóis nunca inventariam tal coisa.
Ay Doña Pilar que cosas dice usted, que barbaridad! Altiva, disse que era a pura verdade, porque na televisão estavam sempre a mostrar as paisagens com aldeamento. Logo a seguir pediu muita desculpa e no dia a seguir levou um tabuleiro de rosquillas com travo a limão que fizeram as delícias dos ofendidos.






Mas Doña Pilar sabendo, como sabe todos os horários rotineiros dos habitantes e sendo de intuição guardiã apurada, já salvou a vida a um, que não indo passear o cão à hora do costume, estava estendido no chão com ataque cardíaco. Depois de internamento retomou o seu horário habitual, encharcando-se em chá de folha de oliveira malaguenha. Afiança ela que é curativo para todos os males da circulação.
Também se oferece para cuidar dos animais e plantas quando os donos vão de viagem. E o que mais preciso for.


E diz-se, cá no nosso mundo, que serviu de inspiração para a porteira do "Fala com Ela" do Almodovar. Sei lá se é verdade...tendo sido ou não, lá continua. E já é um hábito chamar o elevador e olhar para a esquerda, para a porta entreaberta e ver um bocado do sugestivo quadro espanhol que concorre, nos lares, com o menino da lágrima.


Ao fim e ao cabo, nunca ninguém, provávelmente, limpará com tanto esmero e notícia aquele corrimão num prédio tipicamente madrileno, ou seja, espanhol. Se algum dia tiver dedádas é porque finalmente, com toda a concentração, está a ouvir as últimas novidades directamente da boca de Deus.

6 comentários:

Anónimo disse...

Obrigada pelas gargalhadas que me fez soltar.está um retarto incrível e antes de chegar ao Almodovar eu pensei logo que a Dona Pilar parecia uma personagem do dito!tTambém amei a Agrado, ali mo no retrato de baixo, no filme e em todo o lado!Bom fim de semana!

lana (z.)

nnannarella disse...

Meu Arcanjo. Texto e visualidade verdadeiramente geniais, passe o adjectivo inflaccionado que, sei, me perdoarás (mas é que ainda não tomei café). Com estas e outras bem se vê o grande pendor e arte que tens para o guião e para a encenação, aproveitando tudo o que ao teu olhar arguto e mente audaz não escapa...:)É bem aquecida por esta alegria de contar e pelas hilariantes poses, opiniações e conversicas da Doña Pilar que me vou ao frio gélido, dar a volta ao quarteirão com as miúdas e beber um café.Bom domingo de sol a ver o rio. Pilares e Pilares deles, que até já parecem os tantos do meu claustro... eh eh!!!

Haddock disse...

lizzie, raios e coriscos por nnannarella se ter antecipado, logo antes do passeio domingueiro, pois que nos roubou a novidade do elogio!!! pois que muito gargalhámos com o colorido da personagem sublinhado pela magistralidade de vossa descrição. desgraçadamente o pitoreco de doña pilar faz obnubilar o argimiro e as suas ânsias de protagonismo...

maravilhoso exagero de porteira!!

vénia...

Emma Larbos disse...

... sem ofensa para a cegonha, claro!

Pois que, se não soubesse da tua capacidade para fazer da vida verdadeira um filme de comédia, diria que inventaste esta Pilar. Tão perfeita no seu género só na ficção.
Mas como sei que é muitas vezes a vida que imita a ficção e não o contrário, resta-me apenas rir-me da Doña Pilar.

Madame Maigret disse...

Mais ouis_______ Madame Lizzí! Rire á bon rire!___________Les concierges elles sont des personages que Jules bem conhece.Invariavelmente alguma havia nos seus casos e era sempre uma excelente fonte de informações e às vezes de desinformações também!____________Bonne jounée ma chére amie.

Lizzie disse...

E acabadinha de chegar de muitas emoções aqui vos digo

Lana, obrigada eu pela risota que é só pôr os pés naquela terra do demo e começam a chover almodovarianas a rodos.

Meu Anjo,adoro pormenores, são eles que definem os enquadramentos e as espécies, senão seríamos todos iguais. Adoro olhar. Mesmo que não dê atenção ao que estou a ver.
Domingo de sol? Olha que sorte que eu cá apanhei neve e mais neve. Vi-a no trajecto e pela janela. Nem tive tempo para ver coisa nenhuma, turisticamente falando.
Sóis e sóis.


Estimado Capitão, deixai-nos vir de f..... (já sabemos que é palavra para vós fóbica assim como o N.....) e haveremos de falar das teorias do Argimiro e dele própriamente dito que bem merece pela rareza. Pensaiteis vós que a saga tinha acabado? Pois outras virão.
Continência agradecida.



Doña Pilar, Mi Emma, é mulher de carne e osso, perfeitíssima personagem da vida real. Daria a criatura com os seus ditos para escrever crónica sem fim. Também embirra com o coitado do Saramago mas mais ainda com a homónima: diz que é ela que lhe dita os escritos, está lá um velho capaz quando vai dizer para a televisão que Portugal e Espanha se deviam juntar...mais terroristas, não? Portugal sempre foi espanhol, para ela, e acabou-se.Queres uma rosquilha? As dela têm pouco açucar e muito limão à moda de Toledo. As minhas preferidas. Muito gostava eu que ela soubesse fazer pastéis de Belém, embora sendo portugueses deve pensar que são feitos com ovos podres.



Cara Madame, é sempre um prazer ver uma francesa rir-se.
Doña Pilar seria silenciosa para votre Jules se houvesse crime no prédio. É que é palavrosa em relação ao exterior, mas no seu reino mantém o código deontológico actualizado. Só quando se distrai é que lá deixa sair comentário sobre casamento ou divórcio. Mas não é frequente. Está mais vocacionada para o jet-set que é tão numeroso.
Grata pelo seu regresso e simpatia.