segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O vestido




Chego lá, sento-me, olho para eles e para mim, reflectida no imenso espelho, e sinto-nos a vida feita de partidas e chegadas, conheço-nos o lapso entre o que dissemos e o que sempre ficou por dizer, aquela última palavra, o último beijo e o último toque sempre falho de intensidade, a intensidade que se quer eterna na pele.

Passado um tempo chamo-a e digo-lhe: tem que ser preto, o teu vestido tem que ser preto. Muito simples. Linhas direitas.



Porque ali se fala da ausência, da dor de quem chega a casa e depara com um vazio a circular pelos cantos. De sofás, mesas e camas onde se procura o cheiro que deixa rasto na saudade. A urgência de gritar para além do tempo e do espaço.

Apetece-me condensar a memória própria e alheia na negritude de um traje negro: Edith Piaf, com os olhos fechados e braços em ângulo recto, movimento ondulante, Padam, Padam, Padam; Greta Garbo, seráfica, no seu olhar distante a fechar as portas ao vasculhar do seu mundo; Marlene Dietrich, com o desprezo desenhado nas sobrancelhas erguidas ao alto; Ingrid Bergman, de face doce, assustada por uma trama que não escreveu e tantas outras mais aquele que foi o menino dos nossos olhos: o cinema mudo, de emoções nuas, à flor da impudícia dos sentimentos fartos de prisão.





E, além disso é cor que viaja pelos segredos, onde as almas se escondem. Cor da melancolia, da rebelião, da anarquia da criatividade, aquela que ela irá ter no palco em movimentos revoltos pela ausência, por todas as ausências que nunca ninguém nasceu completo. nasce-se para se ser inteiro nas diversas formas de amor, da amizade, do riso, do choro.


Vai-lhe ficar bem quando torcer o corpo ao som das palavras, quando se arrastar pelo chão, quando se lembrar dos passos da dança baixa da Idade Média, como quem hesita entre entrar de manso no futuro ou rasgar-lhe o pano num acto de resolver a vida sem lamentos.
Uma especialidade nossa, a dos viajantes de longe e perto, de dentro e fora.

Lá vou defendendo a minha tese, a falar até do Fado, sem saber que enquanto comíamos esfomeados e tontos, tapas com pan calo, os que dançavam e cantavam, naquele dia, no palco da taverna arroubos flamencos , me iriam apoiar na sobriedade do traje.




Se estivessem no meu bolso e não dali ausentes, concerteza que as Pecadoras concordariam que tudo o que é simples é tão universal como uma gota que brota dum olho indefeso, seja de desgosto ou de riso, de seriedade ou loucura.
Então, adeus, tengo qué irme a Lisboa. Hasta luego, que é tão raro os espanhóis dizerem adeus.




Ai, Marreta, aquela não apanhava moscas, apanhava boeings 747. Cada vez que taconeava, era terramoto certo, 9 na escala de Richter.
E tu pára de me dar pontapés, que mania...coño!

7 comentários:

Lizzie disse...

Serve a presente para dizer aos que pensam que fui de viaje só para comer cogumelos a saltar em castenhana sertã,e etc. que me fartei de trabalhar sentada. E fanhosa.Atchim não tem país.

E que muito lamentei não ter as pecadoras no bolso, se bem que foi melhor não irem, dada a companhia dos lenços de papel e do Broncoliber da praxe.

E mais olhei para criatura holandesa dançante e me lembrei que estaria Passarinho muito melhor moldada para tal expressão de movimento.E tal disse, desta vez sem levar pontapés por baixo da mesa.Ainda bem.

E daqui digo ao Pirata que é mesmo o Paulo Bento. Não gosto nem percebo nada de futebóis mas é o único de quem eu gosto. Desculpe lá, mas aquele tique nos ombros inspira-me ternura. Ou então é do cabelo, ou do ADN, sei lá...

Oh Nnanna Meu Anjo, é verdade que me falaste(s) da gaguês do Tristão, mas eu já sabia. Foi naquele dia em que te contei várias coisas da trupe dos marialvas, ou seja, desculpem lá, putas, fados e toiros que Fátima ficava para as santas legítimas esposas. Também não admira que no bilhar do defunto Café Ribatejano, ali para a Almirante Reis, se confundissem bailarinas com coristas do casino Estoril e do parque Mayer. Aquilo do Lago dos Cisnes devia ser no lago do Campo Grande à noite, entre os arbustos. Nos palcos da Gulbenkian a devassidão era a mesma. Só mulheres de boa vida sem saberem fazer uma baínha ou estrelar um ovo. Haveria alguma virgem?
Enfim, são épocas.
Tens alembradura do contado?
Ainda bem que saíste do Convento, queres um bocadinho de turrón? Daqui a pouco já não há...

-pirata-vermelho- disse...

Vertiginosa! Lizzie...
e cantava a outra, 'eu não t'acompanho mais'.
http://www.youtube.com/watch?v=1A-0ZUqAdHo

A. disse...

_______________________________...










... alguém me diz que não sei escrever. é verdade, não sei.
ponto.

mas por vezes até gostaria de saber e deixar um verdadeiro abraço...assim, tipo sopinha de letras. quentinha. cheia daquele doce conforto. inteira nas diversas formas de... contra todos os nossos males.




e assim vou.como.vida.para não me variar.e por alguma razão... quase sempre de preto.




querida Eli____________________...

Emma Larbos disse...

Lizzie, eu não te pontapeio mais! Nem poderia! Se esta está no sítio certo onde as moscas devem ser apanhadas! E para mais aviões e tremores de terra! E o preto que escolheste é cor (dizem que não é cor...) que parece uma folha em branco (também dizem que não é cor), porque nela tudo se pode escrever e moldar e o canto e a dança e as palavras ficam sozinhas sem aparato para mostrar tudo o que são. Mas com mais drama do que se fossem em branco. Escolheste bem. Queremos ver as outras folhas do caderninho!!!!

Lizzie disse...

Ó Pirata, pois está claro que com esta constipação não me falta vertigem. A modos que até tenho os ouvidos tapados. O coração é que não deixa de bater, ao contrário do que diz o fado, e eu lá o vou acompanhando, não fazendo muitas birras à vida, que as há piores que a minha.


#, como é que adivinhaste que eu gosto de sopinha de letras? Acho graça, ali anárquicas, mas não perdidas, a flutuarem no líquido. Há qualquer coisa de criança com falta de apetite que acorda em mim. E então quentinha recheada de abraços, ia já!
E, com um comentário destes não sabes escrever?
E é verdade que Passarinho para a peça em questão ficaria melhor. Quase parada a viver da interpretação . É preciso idade, experiência e sobretudo talento. Mas os impérios tecem escolhas que ninguém pode desfazer. Lá como cá.Suponho.


Mi Emma, deram em adivinhar?
A ideia é justamente sublinhar o expressado sem adornos que distraiam. A dama em questão já tem uma capacidade interpretativa que não precisa deles. E a provecta idade, como a qualquer pessoa, já lhe vai dando algum recolhimento de luto. Não o folclórico e macabro, mas o interior.

Pois que hei-de falar do preto e do branco, cores muito ricas, desde sempre.Com páginas de caderninho, sim senhora.

A todos o meu muito obrigada.

nnannarella disse...

Meu Arcanjo costureiro, é claro que tenho vincada e viva alembradura do contado de que falas, não tivesse sido ele tão horripilante em certos detalhes...
Bentornata e obrigada eu por mais est'outro contado palpitante dos bastidores das tuas e d'outras artes. Tu andas atchim e eu também um pouco assim. A ver se este Luís Pato me aquece e trepa, dando uma húmida cor de melancia às minhas pálidas faces. É lindo, o vestido. Como tu. Cabides e cabides!

Lizzie disse...

Meu Anjo, atchimtemos. Partilho contigo uns goles de Golden Loch da velha Escócia, com a manta de xadrez sobre os joelhos.

Mantas e mantas.