sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Não sei se por temperamento ou por vários ensinos de gente optimista, penso que sempre que possível, se deve escarafunchar à procura de qualquer coisa ou circunstância que suavize aquela aspereza dos dias encharcados de absurdos e delírios que se vivem nesta esfera imperfeita, achatada, a que se chama Terra, Planeta Azul, com variante dos Macacos ou nas Bananas.

Do alforge das estranhas coincidências, dos galos transatlânticos e do que mais se pode conversar à lareira.

Quando era miúda, confesso, achava da maior piroseira, aquela visão rústica do Nissan ou do Toyota passando pelo Simca, a estacionar, a expelir famílias com ar nostálgico, sacas de batatas, couves portuguesas, garrafões de palhinha recheados de vinho ou azeite, cestas de vime cheias de ovos cobertos com pano de cozinha ilustrado com galinhas, concubinas do Galo de Barcelos, um ou outro velhote contrariado constando do elenco de pais ou sogros ou ambos, em regime de rotatividade pelos filhos disponíveis. Uns “vinham da terra”, os outros vinham passar uma “temporada”.

Perguntava-me para quê tal carrego se na Av. da Igreja e transversais havia tudo à venda. Menos os velhotes, claro. Penso eu.


Confirmo hoje que a má língua tem sentença garantida, apoiada no “nunca digas desta água não beberei” ou não me calhasse agora a mim o descarrego do alforge em que cada elemento do conteúdo vem embrulhado em ternura, em interesse, em conforto à distancia. É como se trouxesse partículas da vida que lá continua de forma a que a ausência, ou a saudade, ocupe menos espaço.

Já é hábito ter o alforge aberto e ir metendo, conforme me vou lembrando, as coisas que quero trazer.

Podem lá faltar espargos, anchovas, corações de alcachofra, e outros, tudo víveres baratíssimos em Castela.
E os boquerones caseiros, sacrificados em vinagre de sidra e ervas com reminiscência de açorda lusa sem falar do molho de tomate com inspiração de vários tipos de pimento numa sinfonia que vai do allegro assado na brasa ao adágio do marinado.

E ficando o alforge ao dispor de quem passa pelo recanto da sala, como se caixinha de presenças não esmoladas se tratasse, é sempre uma surpresa o esvaziamento.


E desta vez saiu-me um galo travesti, ou galinha hermafrodita, já que o sexo não é muito explicito naquele artesanato.


Vinha acompanhado de um saco de urtigas de cor violácea, cujo aspecto de instrumento de micro tortura sempre me faz comichão logo nos sacos lacrimais, antes de prosseguir viagem para outras partes.

Não me posso esquecer do caderno americano, a convidar ao trabalho, com espaço lateral para notas ou alembraduras em relação ao labor contido na auto estrada da página.


E veio tudo de uma senhora recentemente chegada à minha “família” castelhana, por via do amor maduro, e recíproco, a um dos seus membros, situação que deixou os outros membros descansados em relação a solidões imerecidas.

Vou resumir a senhora porque me apetece. Faz de conta que estamos à lareira em conversa saltitona.

A senhora nasceu no Texas,


filha de pai americano com antecedentes alemães e de mãe nascida em tribo lateral aos Navajos, tão populares, mesmo quando de Navajos não tinham nada, na filmografia adulterada que eram muitos westerns.

Fez-se arquitecta e decidiu, à boa maneira americana, viajar pela Europa.


Aí, em Roma, conheceu um espanhol e tornaram-se ambos símbolos da evolução nas atitudes do mundo:

(tipo de imagem que normalmente utilizo para irritar espanhóis)

- o espanhol não a matou;
- ela não matou o espanhol nem, após, lhe comeu a mioleira para lhe ficar com a alma.

Casaram e foram viver para Espanha.
Descasaram após alguns anos, que não foram poucos, e ela em Espanha ficou no exercício das inúmeras funções relacionadas com design e afins passando por cenários e figurinos.

Quando a conheci, embora ela não tenha a pele vermelha nem ande de penas na cabeça, logo lhe reconheci a origem: voz calma, aveludada e funda , com discurso que parece não conter reticências nem virgulas, todo ele cheio de pontos finais sem serem definitivos nem absolutamente parágrafos.
E os gestos lentos num corpo alto e sólido.

Fui atrás na minha história e lembrei-me de uma paixoneta por moço da mesma característica de que ela parecia ser selo desfocado.



E , vendo fotografias antigas, ambas as duas com mais outros, focámos os olhos numa com espanto. O moço era seu primo e vi-me na obrigação de lhe explicar que a paixonite aguda teve termo por discrepâncias numéricas e de tempo:

-o moço, como os todos os da tribo, queria casar fosse qual fosse o ritual da cerimónia;




- o número de filhos pretendidos por ele ia aumentando enquanto o meu ia diminuindo. Até chegar ao categórico zero.


Mas voltando ao alforge, as urtigas, fervidas para tisana, servem para combater os efeitos secundários do vasto espectro terapêutico do fumo, tão utilizado como cura, desde a mais tenra idade pela dita tribo, lavando os cadáveres das bactérias e vírus que o tabaco matou.



Quanto ao Galo, assim em maiúscula, toda a gente deveria ter um em casa porque, cantando alvoradas, espanta os espíritos maus da noite, tantas vezes surgidos em forma de tormentos de pesadelos ou memórias de infortúnios em sede de insónia.

O Galo abre, assim, a porta a dias mais felizes.
O Galo não é bicho que se coma, nem a Galinha, porque também é o símbolo da fertilidade tão apreciada (bem me parecia) pelos tribais.

E sabe-se lá se por influência mediúnica da senhora, que isto mais pareceria argumento forjado se não fosse verdade, após a noite da minha chegada e depois de dormida, acordei com um canto que o Tejo ainda não tinha trazido.


Foi-me dito que por ali andavam, altivos e autoritários, havia três dias vindos não se sabia de onde.

(Galo Jaquim Marceneiro, um dos que apareceram inesperadamente na minha morada)

Agora, senhores, fiquem à vossa vontade que vou só ali ver quem bate à porta.

Sirvam-se do que quiserem e não deixem morrer o lume que, a bem dizer, é dos lados que mais aquece o coração do Inverno.

10 comentários:

Lizzie disse...

Senhores,

quando voltar para a sala, de caminho trarei mais ilustrações. Agora urge que vá ver quem com tanta insistência bate ao portal.

Será o galináceo?

Bom fim de semana!

augusto, um entre mil disse...

Snhora,

ide.
por coincidência também tenho de ausentar-me.

mas volto.

augusto, um entre mil disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
augusto, um entre mil disse...

e sem esperar, à memória chegam-me coisas esquecidas. arrumadas. boas recordações. como são quase todas as de infâncias mais ou menos felizes.

bairro da Graça. lá nascido e criado (o meu saudoso liceu Gil Vicente)*.
as férias na província e o descarregar no regresso. de tudo, até galinhas. não me lembro se, alguma vez, um galo. sem dúvida batatas e todo o resto que fazia a publicidade ao espaço do carrinho...

.......

as recordações touxeram também a saudade de quem já cá não está....






mas hoje não quero .



voltarei à procura de novas ilustrações :). e de palavras.

bom fim de semana e semana vindoura.







*se há coisa de que não goste é de carregar na caps lock para as maiúsculas (taras), mas há situações em que não me permito não o fazer

bettips disse...

Estar à conversa
na lareira dos sonhos e conhecimentos
da pura diversão
da memória
da tribo de cabelo negro
do que se transforma e cria

Que melhor chama para nos acalentar?
Beijinho

Lizzie disse...

Senhor:

Quem batia, não leve, levemente, chamando por mim, era exactamente gente espanhola, desta vez com texana incluída.

E o mais engraçado é que é já tradição ir a uma tasca na Graça "tapear", que é como quem diz petiscar, pastéis de bacalhau e outros.
E depois dar uma volta pelos miradouros, institucionais e outros,coisa que a texana, particularmente, muito aprecia porque, tal como eu, pensa a Graça com uma alma genuína, mais discreta mas não menor que o turistico Bairro Alto, p.ex..

E bem me lembro de, quando estava fora e vinha cá, ir visitar um ex colega e amigo que morava, altaneiro e de vista deslumbrante, numa casa pequena de último andar, da Rua de Sapadores.
Mesmo lá ao fundo, quando começa a descer.

Ainda na sexta falei nisso e a texana disse, com ponto final, que as pessoas são mais felizes em casas pequenas porque os ninhos são refúgios em que a solidão, como era o caso,se sente de forma menos agressiva.

E, Senhor, também ia de férias quando era miúda mas não trazia nada a não ser doçuras de olhos morenos, mãos grandes onde eu parecia caber mesmo quando já andava pelos 13 anos ou assim, memória de terra quente na pele, pintas de caiar, cheiro de cal que me refrescava.

Mas por minha vontade, teria trazido uma ou outra vaca leiteira para a passear por Alvalade fora.
Se ela quisesse, claro. E uns patos, a minha paixão.

Mas enfim, estas coisas fazem-nos doer o afecto e para tal maleita não há remédio que dê a volta ao tempo para a gente viver tudo só mais um bocadinho para não correr o risco de as arrumar definitivamente.


Para si, os meus afectuosos respeitos.

Lizzie disse...

Bettips:

Muitas vezes fico a trabalhar e há um silêncio que se faz voz.
Há histórias que se contam assim, ou por meias palavras.

Por memórias, pois, pediram-me para escrever uma coisa com pés e cabeça sobre o filme Cisne Negro e eu refilei, e não escrevo, escrevam vocês, coño.

Por extraordinário que pareça, foi por estar à lareira, por ter visto imagens de cisnes em lagos, pedras e mais umas coisas que disse que sim e me saiu logo ali a prosa.

Numa corrida sem pressa entre o que me lembro e o que fui sabendo.

Juntei tudo e acabei por sorrir como se a memória me tivesse contado segredos.

E esperguicei-me para o fogo.

E assim se fazem e guardam os bons e aliviados dias.


Beijinhos

Lizzie disse...

Bettips:

queria eu dizer que fico a trabalhar à lareira...:) se é se pode chamar trabalho aos impulsos que vêm de dentro para apenas, às vezes, assomar meramente as ideias para fora.

Alien8 disse...

Alforges absolutamente necessários, seja qual for o conteúdo, que é sempre o melhor de cada um, apenas porque sim, e que conseguem com facilidade juntar a nostalgia à gula, a leitura aos galos, os navajos dos filmes aos que não são dos filmes, enfim, o caderno de trabalho aos boquerones...

Um abraço, Lizzie, e obrigado por este alforge! :)

Lizzie disse...

Alien,

estes alforges, de lá para cá ou de cá para lá, são sempre prolongamentos, assim como se se arrastassem os afectos feitos coisas pela viagem, na bagajeira das ternuras.

Pelo menos, levo sempre isto que A aprecia, aquilo de que B falou...

com pena de não poder levar a vista, o passeio, o som suave do rio, os edifícios que parecem chorar glórias, do Cais do Ginjal, p. ex. para falar só da área de Lisboa

nem bacalhau à Brás (bacalao dorado) primeiro porque é bom feito no momento, porque eu comeria todas as batatas fritas no caminho e ainda porque, sendo eu a fazer, ai credo, seria preciso um camião TIR de urtigas para o chá de limpeza purificadora ( com o meu jeito para a cozinha...) e sei lá se não correria o risco de me comerem a mioleira:)

Por minha vontade já tinha enchido o caderno mas ainda só tive ainda tempo de comer todos os boquerones e os corações de alcachofra. Os que eu trouxe e os que entretanto foram trazidos.

Chá de urtigas é que ainda tenho bastante porque me dá a sensação que estou a beber água de lavar couve lombarda em fase de apodrecimento, com um toque ligeiro de tintura de iodo passando por Ben-U-Ron.
E depois começo a pensar: se aquilo me der comichão no estômago como é que vou coçar?

Enfim...

Eu é que te agradeço, coño, e toma lá um alforge de abraços para vocês:)