terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Venho, através deste,explicar (e advertir os incautos como eu), os motivos da minha ausência e consequente neura de regresso às lides diárias, como decerto compreenderão.

Do parêntesis em forma de algodão, palha de aço, punhal místico e espiral de fogo com coelhos ilusionistas no asfalto.
Para a minha tia A., eu sempre fui um parêntesis na ordem natural do mundo, na divina hierarquia estabelecida desde que Eva saiu da costela de Adão,


na feminina e cerrada compostura que protege de todo e qualquer pecado,


um desvio do centro que garante a geometria harmónica do Universo.


Encontrei-a numa minha visita involuntária ao reino dos corações parados, das respirações interrompidas, dos sonos sem regresso.


Ainda não tinha percebido porque, ao subir a silenciosa alameda, me parecia eu própria, ter a troca gasosa deficitária, quando não suspensa, além de umas punhaladas na omoplata que não atribuí a hipotética travessura dos moradores entediados daquele silencioso bairro.

Após cumprimentos, comentários de circunstancia e reprimendas sobre vícios tabágicos , a Tia A., que sempre foi boa organizadora, indicou o espaço que ela resolveu reservar-me naquela marmórea moradia. Como quem dispõe, protocolarmente, os lugares numa mesa em jantar de cerimónia.

Entre uma ou outra violenta e profunda tosse, não resisti a uma infantil provocação, respondendo-lhe que para ali não vou, que lhe cedo o lugar, que era o que mais faltava…apetecer-me dar uma voltinha à noite, trajada com a minha melhor mortalha, praticar uma assombração inocente, e ouvir o meu pai perguntar desde quando e quem é que manda, a Tio G., que não conheci, a sentenciar que menina que se preze fica em casa, a outra a colar-se, vamos aos fados e eles todos a chamarem o Louis Armstrong, o Charlie Parker, o Cole Porter, em Ré Menor, em Fá Maior, em Dó Enorme…



e depois aquela vizinhança ali da frente, credo...que bolor...que naftalina

Oh Tia, em cinza ou massa inerte, quero ficar em Madrid! Ou em Inglaterra, com uma corte de duendes ruivos e fadas sardentas e risonhas!

E o punhal a atravessar-me agora também o peito como quem rasga uma falta de reverência, respeito, memória ou afecto. E o calor fogoso no corpo. Digno, ao que suponho, da portaria do Inferno.


A Tia A., apesar dos oitentas e muitos, nostálgica de actividade, ordena em vício:

- Vai fazer um RX de tórax, Não gosto desse quadro, não é um quadro de gripe!
As teses acabam sempre por se preocupar com as antíteses.

Mais voltas e obrigações natalícias e nas voltas um céu com luz que não me cabia na moldura dos olhos, uma terra, que farta da estabilidade que lhe é essência, vai buscar aventuras de movimento ao mar e me empurra de seca em seca onda. Sinto-me marinheira de uma terra brusca.


E na estrada, de manhã, começam a saltar coelhos, tantos coelhos. A cada sombra os olhos reproduzem coelhos, os coelhos que a mente sabe que não existem mas tem medo de atropelar.

Já me é indiferente para onde vou, se é tarde ou cedo, dia ou noite. E deixo-me arrastar para onde me levam.


Digo, à enfermeira da triagem e que ostenta uma afabilidade mal maquilhada,



que sinto um novelo de algodão nos pulmões, que tenho palha de aço na traqueia, uma espiral de fogo que parte do estômago, que estou “mareada” (porque não me lembro como coño se diz enjoada e tonta em português) e uma faca de lado a lado.

Pergunta-me se liguei para a Saúde 24 como se a tecnologia das comunicações já incluísse oxigénio e coelhos rodoviários prudentes.


Finalmente, após horas de espera, segue-se o estardalhaço no estetoscópio e a cantilena ritmada do
encha o peito de ar…
não respire…
pode respirar…

e desta vez nem entro em pânico com a parafernália das seringas.

O médico, de ar bondoso


e com vocação genuína para o anonimato no combate à morte e que não trata nenhum doente por tu, diz-me que tenho uma pneumonia não sei quê (sabia lá eu que as pneumonias também têm apelido) e interna-me numa sala armadilhada de aparelhos.

De repente, ali, sinto-me quase leviana ao pé dos olhos enevoados ou dos que mesmo fechados, têm o traço das dores e dos medos tão longos que roçam o impossível.
Mas finalmente adormeci, com a frescura de um chuveiro de sonhos.


Porque me senti embalada a partir de dentro. O ar pode ser um bom silêncio em expansão.

Passados uns dias tive alta (com espantosa melhoria),

já que me chamaram “diferenciada e bem orientada”, capaz de cumprir o receituário.

Pensei, no entanto, que continuava com delírios febris e pneumónicos, quando outra enfermeira, rapariga nova, me pregou discurso quanto ao dinheiro que os doentes custam ao Estado.

Irritada e espantada, prometi à missionária patriótica da culpa que me iria esforçar para não chegar a velha e inútil na contribuição para a riqueza nacional.

Que para a próxima vez que me lembrar de ter pneumonia, me sento à porta do jazigo (quanto se poupará no transporte), já trajada para a ocasião, esperando, ao menos, que os coveiros já não circulem por ali a comer sandes de chouriço e a ouvir os relatos do Benfica.

Toda eu, Sr.ª Enfermeira, serei poupança!

E depois continuei em delírio quando me pareceu que candidatos a presidentes andavam em círculos fechados de ideias, velhos no espectáculo ilusório do pensar e do debater interessante.


E quando vi pessoas da aldeia da minha morada irem em romaria, como apoiantes, num dia, ao jantar de um candidato, noutro dia ao de outro e depois ao de outro. Quebras de rotina num mundo pardacento que continua com arrumo no adro.

Democracia esclarecida no tempero da feijoada.

Regresso e nem sei qual é a temperatura mas vejo que tomou posse um novo director. Mais um com um pelouro indefinível e com propostas labirinticas que a secretária entusiasmada aprova com um moderníssimo “faz todo o sentido”.

Comunicam-me que será o sr. Engenheiro, outro que ainda não conheço, a decidir se uma pneumonia é justificação para atestado e para a retribuição de vencimento perdido. Irá para “ponderação”.

Da próxima vez que encontre a Tia A. talvez lhe diga que fiz as radiografias e que o diagnóstico foi de Sindrome de Absurdo Crónico, uma patologia febril e mutante, bactéria que circula há séculos e para a qual não se vislumbra terapêutica.

Faz com que todas as imaginações e erros já nasçam velhos e com a ilusão de eternos.



Talvez!

Porque a culpa da alucinação, provavelmente, será toda minha e um dia hei-de ter o patriotismo luso de me poupar de existir.

7 comentários:

bettips disse...

Já tinha andado por aqui e ali, não sabia era que tinhas conhecido intimamente o SAC, que é muito das minhas relações e ralações.
Tinha-te visto num quadro de Bösch e saía-te um peixe gordo e acutilante, com olhos críticos e antigos, pela boca; não vi coelhos na paisagem e a cartola também estava vaga.
Desejos de completo restabelecimento.
Como dizem os de Boston, a propósito de tudo e nada, wars or birthdays: take care!
E beijinhos

Lizzie disse...

Ai Bettips, tu não me fales em Boston que ainda decido apanhar um daqueles aviões que desenham o céu e ir morar definitivamente para um daqueles cemitérios lindíssimos, cheios de estatuária,árvores e moradias maiores que as da Quinta da Marinha. E aquela mania de em vez do "eterna saudade", botarem poemas, ou frases, de todo o mundo. Nem o Camões escapa. Felizmente.

Uma vez atropelei,à noite e sem querer, uma coelha muito grávida. Acho que estes coelhos vieram daí.
Volta e meia, também via pessoas a atravessar a autoestrada.

Quanto a SAC, todos os dias me debato com ele.
Por exemplo, porque que coños, um medicamento com receita custa aqui 17 euros e sem receita custa 3 em Espanha, sendo tal e qual igualzinho?

E hoje uma senhora que conheço chorava porque tem uma doença degenerativa do sistema nervoso central, mal se tem nas pernas, começou a trabalhar aos 14 por falta de dinheiro, tem agora 56anos e não lhe dão a reforma!
Um sindrome pior que o meu.

Qualquer dia estamos mortas e passam a cobrar-nos o IMF (imposto de manutenção de fantasma). E se não cumprimos, penhoram-nos a tumba e ficamos expostas ao relento.

Hei-de contar porquê noutro sítio, mas cá para mim ficava em restabelecimento (sem doença) para o resto da vida.

O SAD afecta a paciência.

Obrigada e beijinhos

Alien8 disse...

Lizzie,

Também de certa forma ausentes, viemos aqui dar fé de mais um belo texto, embora lamentemos o porquê do dito. Esperamos que estejas já completamente restabelecida e apta a funcionar como um membro activo e pagante da comunidade, em vez de um gastador de dinheiros públicos, Srª. Enfermeira dixit :)

(A Lola pede o nome da Srª. Enfermeira para lhe dar, segundo diz no seu melhor vernáculo, "um enxerto de porrada":)
Beijinhos,
Lola e Mário

Lizzie disse...

Alienegena Lola e Alien Mário :

dessa do "enxerto de porrada" também me lembrei, apesar de ainda fraquinha, mas fiquei com medo das seringas. Olha se me agarram...

Apesar de estar mal, deu-me um certo gozo, confesso, quando o médico bondoso mais uma médica simpática (os dois de 50 e tal) pregaram um responso à enfermeira da trigem por eu ter pulseira amarela e não vermelha. Olha se me defunto...

O 1º sintoma foi em Madrid:imagina-me com falta de apetite para gambas, cogumelos salteados, vinho manchego, roscón de reyes cheio de nozes tostadas e torrón de almendras. Nadinha.

Ainda internada encomendei e comi com gosto muitos corações de alcachofra com vinagre, boquerones com pan pico, coño! Poupei refeições à cantina, logo aos cofres publicos.

Por acaso logo que cheguei a casa deu-me uma inspiração e fartei-me de trabalhar. Sentadinha. Foi outra febre, activa mas não tributável, pelo menos por enquanto e é melhor não falar muito não se vão eles lembrar de cobrar imposto sobre o pensamento acrescentado. Aqui e em Espanha.Credo!

Obrigada aos dois e abraços já com força,sem dor e com ar:))

augusto, um entre mil disse...

que a bonança permita novas sementeiras. e que seja boa a colheita de sementeiras anteriores à tempestade.

augusto, um entre mil disse...

ps- perdoai-me, falhou-me o vocativo.
os meus respeitos.

bettips disse...

..a memória é que se me encosta à cabeça, o diabo a tentar, o s. sebastião a penar. É uma representação muito gay friendly, essa das setas no santinho eos olhos em alvo. Religiões têm essas contradições.
Mas será como dizes-lhe:
há-de passar.
Espero que estejas "fina" do break dance que fizeste no hosp.!
Um beijinho