sexta-feira, 2 de julho de 2010

Vai este em relação ao mês de Julho, não só mas sobretudo também, como adiante se verá

As lágrimas do Sol distraído

De um modo arredondado, sempre vos digo que nestas bandas do hemisfério norte, América nativa e colonizada incluída, tanto quanto se sabe, Julho sempre foi o mês da dança e do sonho, do sol e da água, para além de ser conhecido como o Tempo das Cerejas.

A partir da Idade Média, inclusive, sempre se esqueceram as leis dos Deuses e dos Diabos e se soltavam os corpos das gentes em movimento e tropelias.

Se nuns sítios, de um lado, saltavam reis e senhores, rainhas e senhoras com passos ensinados pelos mestres das cortes e do outro pulavam a ritmos gritados plebeus sem normas, noutras partes, em Julho, todas as classes se juntavam na folia.

O que mais tarde se chamaria folclore recebia influências das cortes e as cortes do folclore num paganismo de calor e sol que nenhum teórico sisudo avesso às liberdades do corpo conseguia inibir.


Ficou célebre a Praga da Dança, alastrada a partir de Estrasburgo, em Julho de 1518.
Conta-se que uma mulher, Troffea de seu nome, provavelmente ouvindo a música tocada na sua alma, começou uma doida dança nas ruas.

Atrás dela seguiram-se muitos num cortejo anárquico sem regra nem parança, sem dia nem noite. Muitos sucumbiram exaustos, tombando em terreiro de feiras ou embaraçando o trânsito nas vielas.

Descreve um monge escandinavo com vocação para repórter, que se perdiam os pudores da carne e da mente e que nem novos nem velhos temiam alçar as vestes ou mesmo despi-las expondo ao sol e à lua as suas riquezas ou misérias, agitando-se sem outro ritmo fixo senão o da sua urgência e alegria em mover-se.


(Nos anos 60 e 70 do séc.XX, alguns coreógrafos e teóricos da coisa tentaram reproduzir esta Praga, com fundo musical de LSD e outros instrumentos.)

De forma mais ou menos destravada, em todos os reinos e tempos fora, Julho era tocado por esta febre.
Como curiosidade, em certas zonas de Inglaterra e Irlanda, acendiam-se fogueiras dançando o povo em volta delas.

Tais movimentos consistiam num ousado maneio da anca e dos ombros, mãos na cintura em pose de desafio. Pedia-se assim que o sol emprestasse ao corpo poder e fertilidade. Esta dança chamava-se Dança do... Fogo de Santo António.

Nesta zona e nos países nórdicos também se dançava dentro de ribeiros, lagos, tanques, com intenção de absorver a alma da água, mãe de todas as almas.

Em Espanha, os homens depois de combaterem com touros e de lhes comerem os testículos, dançavam inebriados de poder masculino para mulheres de sangue assim aquecido.
(Ainda hoje a “volta à praça”, tem uma conotação de elevado erotismo solar masculino.)


Em certas tribos índias da América do Norte, também se dançava sem parar em louvor do sol. Neste caso, os homens executavam a Dança do Castor, bebendo-lhes o sangue. Como toda a gente sabe, castores, coelhos e demais roedores raramente precisam de pedir energia emprestada a comprimidos azuis.


Do que faziam a colonizadores capturados no mês de Julho, pois nem vos digo nem vos conto que não vos quero arrepiados.

Mas continuando por estas bandas europeias e já que agitar Santos exorcistas se mostrava inútil a esta febre de liberdade pagã, as autoridades resolveram patrocinar estas folias, estabelecer-lhes espaço e datas fixas, dando-lhes assim legitimidade.

É facto histórico que quanto mais impopular ou autoritário fosse o reino, mais patrocinadas eram estas festas.

Não é, por isso, de estranhar que nas ditaduras quer de esquerda quer de direita, no séc. XX, as chamadas tradições populares sejam enaltecidas e fomentadas mesmo nos seus aspectos mais negros e contrários à evolução na sensibilidade dos tempos.
O que já é hábito,conhecido e simples não desperta o pensamento para perguntas.

Em termos de elites, Julho também era fértil em Danças. Também aqui a folia durava vários dias.

Celebravam-se bailes nos jardins e espectáculos onde se surpreendia pela inovação e habilidades.
O público farto do quer já tinha visto, queria aprender novos passos, espantar-se com o novo.
Há quem diga que se traziam bocadinhos de sol no esplendor dos fogos de artifício, por exemplo.

No Renascimento, com a entrada em cena da burguesia endinheirada, começaram os contratos para os capazes de inventar novidades. Cada casa queria surpreender mais que a outra.

Em Inglaterra e sobretudo na Germãnia contavam-se histórias, faziam-se sátiras dançando, cantando e falando.

Estão aqui os primórdios da Dança-Teatro do séc. XX-XXI de que Pina Bausch foi o mais exemplar e mediático corpo.



Com o avançar do tempo, estes espectáculos deixaram os palácios e seus jardins, para se transferirem para espaços próprios, mais abertos a quem nas cortes ou salões fechados ou floridos não tem entrada.

Mas como toda a gente que vê o boletim meteorológico sabe, o sol brilha nuns sítios e distrai-se noutros deixando que as nuvens o escondam.

Assim, esteve o céu muito nublado quando no dia 5 de Julho de 2005 foi extinta a dança que brilhava entre os dez maiores brilhos do mundo: o Ballet Gulbenkian.


E em 2010,agora, em Madrid, no dia 4 de Julho, um dos cinco sóis mais quentes e bronzeadores do Planeta, dará o seu último espectáculo de luz.


Outros sóis mais pequenos também se apagarão. E os festivais destes sóis, marcados para Julho, já foram extintos, sendo o pecúlio a eles afecto transferido para “festas populares”. Assim mandam governos.


Neste Julho, muitos despirão os trajes com que vestiram sonhos. Os seus e os dos outros.


O sol só brilhará na memória e sei lá se lhes voltará a queimar os pés no futuro próximo.

Nestas lides, só se pode andar descalço até uma certa idade. Depois sente-se o chão de uma outra maneira. Choverá mesmo para os que já andam calçados e ensinam



ou orientam os outros a andar ou lhes inventam movimentos ou os vestem ou os maquilham.

Ficarão, apenas, os corpos e as sonhos vestidos com uns farrapos, onde, olhando com atenção, talvez se veja a transparência das lágrimas do sol.

Até que um apresentador ou apresentadora, corra a mão pelo mapa e


diga que na Europa o céu amanhã estará limpo ou pouco nublado.


Porque o sol sempre foi capaz de recuperar toda a sua natural atenção.

4 comentários:

Alien8 disse...

"Estão aqui os primórdios da Dança-Teatro do séc. XX-XXI de que Pina Bausch foi o mais exemplar e mediático corpo."

Ia eu todo contente dizer, sem qualquer nexo, claro, que estavas a contar a história da dança moderna, e pronto, estragaste-me a festa! Não se faz, Lizzie!

É uma história tão bela que se comenta a si própria (ora aí está uma boa desculpa para quando não apetece comentar:)

Pena os sóis desaparecerem, os grandes e os pequenos. Talvez voltem. Quero acreditar que sim.

Até lá, estás cá tu :)

Um abraço!

Lizzie disse...

Alien:

também acho que os sóis vão voltar pela simples razão que voltam sempre.

Nessa altura, provavelmente, eu já confundirei gambas com mexilhões, direi ao taxista em Madrid para me levar aos cacilheiros que me apetece rio ou em Lisboa pongame usted en el Fidel que tengo yo ganas de gazpacho:))

O problema é que quando os da minha geração nasceram, não estavam a contar ter que viver nestes tempos polvilhados de esquizofrenia. E os que nasceram depois de nós, menos ainda.
A nossa preocupação é o que vai ser dos que ainda são novos.
Felizmente alguns foram contratados para outros países.
E os outros? Fazem história no "cursi" (pimba, kitsch)?

Isto foi mais uma fatia que cortei.
A partir de agora, vou abrir outro bolo. Talvez tenha um sabor tão terno como o anterior, porque espremendo a memória, só me sabe a boca a ternura.

Mas enfim,nunca me (nos) passou pela cabeça ver quem vejo, p.ex., defender as touradas e outros rituais bárbaros em nome da "raça" do povo espanhol.

O que acho graça é que quase ninguém tolera que se misture futebol com glória nacionalista ou política. Nem os próprios jogadores.
Se calhar há mesmo uma "raça"...:)

E Alien, com este calor e para sol, estou um bocado murcha e baça:)
Só penso na neve, em bosques, em rios, em mares:)
Não me armava em Troffea nem morta.

Obrigada e um abraço para os dois, claro.

bettips disse...

Lizzie: atão semos de parecenças aparentadas (isto a propósito do que se faz para bem público, nem que seja um fontanário um um coro de aldeia...!). Futebol e CsCs é um ver se te avias; quanto à feijoada, cá a do Porto é, como sabes, de magros recursos tripeiros. Uma mão de feijão branco para cada um e as ditas interioridades do bicho, mais cenoura às rodelas e umas rodelas de bom chóriço. Sugiro que ...bem, não sugiro nada. Pode ser que aconteça por amigos e miscelâneas comuns, um dia a gente vê-se em frente a uma pratalhada à maneira. Ou tapas que também as aprecio e muito.
Este repente que nos deu de começarmos a olhar por nós as duas abaixo, tem que se lhe diga.
Prazer em ler-te e saltar de ideia em ideia com a etérea dança dos pensamentos e corpos.
Nem sempre o tempo, disposição, conhecimentos, etc. me deixam comentar-te "taco a taco": mas que te aprecio!!!
E lia-te sempre no nosso comum amigo, o Mário - com quem por acaso já me cruzei em pessoa mesmo: e há acasos felizes.
Um beijo, cara.

Lizzie disse...

Bettips:

eu cá entro em feijoadas, mas com extremidades ou miudezas de bichos é que não que se me salta a genética.

Agora tapas, sempre. Ainda no outro dia comi uns altramuces, que é como quem diz tremoços, temperados com alho, sal e azeite.
Primeiro disse que era boa coisa,mas quando me disseram que tinha azeite refilei.:))

Se calhar é como os chouriços: já ouvi dizer, que ouvido é sentido que tenho apurado, pôe isso mas não lhe digas nada se não já não come.))
E para manter a dignidade faço de conta que não ouvi nada, nadinha.

Uma pessoa quer fazer, nem que seja um coreto, e é tão difícil. começa nos presidente da junta, chega às comissões...quanto mais museus e coisas afins...

Lá que não tenhas tempo ou disposição, coño, é uma coisa. Agora essa dos conhecimentos é que me deixa parva.
Terei eu cara de enciclopédia ou assim?
Credo, cruzes!

Pois, pode ser que um dia...

e conheço um Mário de quem gosto, dele e dos arredores, dos arredores e dele:)
Como no, coño?

(por causa da causa do post que acabei de botar, hoje só me apetece falar castelhano e inglês, vê lá tu!)

Agora vou correr a embalar umas coisas portáteis e com história antes que vão fazer de acendalha para o fogo das madeiras dignas.

Beijinhos e obrigada:)