terça-feira, 27 de julho de 2010

Boto aqui excertos traduzidos de texto que me foi encomendado para performance dançada e em homenagem a um conjunto de pessoas maiores de 45 anos, estrato etário que faz o favor de me incluir, e que parte da senil Europa, perdão, resolveu varrer ou arrumar na prateleira dos não alinhados num feixe de ideias normalizadas pelo padrão burocrático ou partidário paciente de artrite reumatóide incapacitante.
Não fosse tal prosa, intervalada com música a condizer, destinada a movimento dramático, e ser-me-ia mais fácil falar , a propósito, do Restaurador Olex, do poder dentário e multi racial da Pasta Medicinal Couto, de Bach como jogo da Nintendo ou de Eça de Queiroz como treinador da equipa sub-21 na Selecção Nacional de Pancada Escolar.
Mas pronto, aqui vai que o anterior já me cansa…e com este calor que odeio e não me está na natureza,


fico empática com todos os niilismos .

A circular melancolia do espanto


Sofremos o medo da memória.
Um manto que se estende para além de todos os silêncios. Até ao silêncio maior de todas as fomes.

Passamos as mãos pelo vento como quem foge.
Temos ainda sonhos que nos escorrem pelas paredes, que nos voam pelas janelas fechadas.


Temos medo do conhecimento que a memória nos traz.


Temos saudades dos gritos que não chegámos a gritar. Continuamos a criá-los. No corpo, nos olhos, nas mãos.
Apertamos os gritos contra o peito.

Tombamos a cabeça no ombro frágil da idade.
A idade que é um circulo, que é um quadrado de cantos lembrados.

Mostramos as rugas ao espelho: somos árvores, somos barcos com vocação de árvore. Árvores com vocação marinheira.


Não queremos estar aqui.


Não somos de parte nenhuma.
Obrigam-nos a estar neste tempo.
Fugimos do aconchego do passado, corremos para o futuro, saltamos sobre o presente.

Somos bombardeados por uma ignorância, cega, executiva.
Somos um átomo transitório e transeunte.

Somos parte de uma sabedoria intemporal.



Pingamos espantos.
O espanto de não reconhecer esta espécie que não nos foi apresentada no tempo em que nascemos.

Gesticulamos na montra de uma rua cheia de passeantes distraídos.



Não temos idade para ser velhos, quase somos patéticos no resquício da juventude.
Querem-nos curvados. Com olhos confusos.

Temos o desassossego de quem nunca tem a certeza de se julgar certo.
Segredamos afectos como se fossemos espias românticos de um coração mais alto.

Devoramos a Beleza sem encomenda recomendada.


Olhamos a voz das árvores e dos bosques.
Bebemos-lhes da raiz.
Fomos educados pela terra nos joelhos esfolados que o infinito do ar cicatrizou.


Adormecemos com letras lentas. Aprendemos o fluir da curiosidade.


Não nos recrutamos para guerras nem para mitos antigos.
Fazemos de cada viagem uma descoberta.


Sofremos a solidão maior da descrença.

Não cuspimos nas diversas faces de Deus.
Mas não somos prisioneiros de conveniências indiferentes.


Não mordemos Universos.

Somos cada um único de si. Não acertamos corpos por medida.


Temos o amor encostado à pele.

Sentamo-nos, e continuamos a possuir o riso raro da ternura.
Até que a raiz da terra nos abrace.
Definitivamente.

3 comentários:

Lizzie disse...

Por acaso,ou não,nos últimos quinze dias toda a gente maior de 45 (média)se me tem queixado de uma série de de directivas de "gestão" de um absurdo incalculável, há muito abandonadas em países mais frescos.

Muita gente foi subtituída por "gestores" fora de área porque, como toda a gente sabe, qualquer licenciado em filosofia pode comandar os rumos da astrofísica. E vice-versa. Por exemplo.
Por estranho que pareça, há uma massa enorme que os apoia e tem relações intimas com "objectivos": cumpram-se os fins sem olhar aos meios.

A cultura é para os maluquinhos, entre o deprimido e o esquizofrénico. Sem ofensa nem para uns nem para outros que eu própria sou maníaco-compulsiva em relação às Artes.Recuso tratamento. Finjo que engulo os medicamentos. E fico com riso travesso mas triste.

A melhor terapêutica é o contacto com muita gente menor de 45 cheia de criatividade e vontade de fazer perguntas.

E mal dos Tempos que não sabem perguntar...

Alien8 disse...

Lizzie,

Confesso que o calor faz com que quase "não esteja de palavra", assim como me fez passar os olhos pelo texto em tom meio adormecido. As imagens, no entanto, ressaltaram, e compreendi o essencial. Voltarei para reler quando estiver mais fresco.

Um abraço.

Lizzie disse...

Alien:

com o teu comentário acabaste de me dar uma ideia visual para...palco:))
Ai, que não te livras:)

Também ando com os pensamentos transpirados, contrariados até, exactamente, "não estar de palavra".

Por acaso escrevi o texto noutra língua, sentada numa cadeira, a receber massagem da rebentação das ondas, na praia portuguesa mais bonita do mundo. Melhor, agora, só os rios do Alaska ou do Massachusetts:)

Depois, quando li aos intérpretes, acentuando ritmos e inspirada na fragãncia que vinha da cozinha, disseram-me que interpretasse eu e que não jantava.

E eu disse que me ainda me dava uma pavana e interpretava mesmo, rematando com um

"anda Pacheco!"

e ouvi um "quién coños es el tío ese?"

após o que se seguiu uma fusão de Gil Vicente e Calderón de La Barca com laivos de Hermínia Silva passando por Carmen Amaya, tudo salteado em versão viva e contemporãnea:)

Sabes que sou mulher para isso!

Suspirando pelo estético e higiénico Outono, aqui te deixo um fresco abraço.