terça-feira, 13 de julho de 2010

Querida Secretária:


(espera, deixa-me fechar a porta para que ninguém me veja a falar contigo.
Não sei se sabes, mas não está no meu conteúdo funcional nem nos parâmetros do relacionamento interpessoal, falar com móveis.

Esta conversa fica só entre nós. Passamos a ser cúmplices na clandestinidade dos segredos.

Logo tu que sempre foste tábua de carácter sólido, como o mogno e de sensibilidade fina, como a cerejeira)


Por acasos do destino, calhou-se ser a última em ciclos diversos.
Calhou-me a tarefa de guardar as chaves, mesmo aquelas que guardam memórias de séculos. Na boca do Tempo, sou já o sabor a nada.


Ainda hoje virão aqui os homens fardados de azul escuro, pegarão em ti, e nas outras, meter-te-ão na carrinha e levar-te-ão para o fogo. Vais com o sofá e com a estante.
Não sei se já percebeste, mas és uma espécie de metáfora dos tempos e dos modos.

Fiz tudo para vos salvar.

Quando aquela senhora trajada de executiva e que nunca tinha visto, entrou por aqui dentro, assim que olhou para ti, ditou-te a sentença. Não precisou de martelos cinematográficos. Têm os na voz. Chamou-te mono.

Sabes que lhe mostrei a assinatura, escondida na face interior da tua saia e feita a estilete e a fogo, do teu pai: Manoel Souza - 1889.
Letra tombada para a direita, infantil.

Um nome é muitas vezes um rosto em forma escrita.

Mostrei-lhe que o teu corpo resiste a qualquer intempérie de secura ou humidade.
Basta alimentar-te de óleo de linhaça uma vez por ano.
Pedes pouco.
Passei o dedo indicador pelo teu friso de folha de ouro colada a mordente.
Disse-lhe que tens a discrição e a majestade do estilo inglês.

Ela olhou-te de esguelha: nós apostamos na modernização. Decidimos em Concelho mudar todo o mobiliário. Não temos espaço para monos.

Pois Secretária, quando a primeira pessoa do plural aparece em forma de célula pertencente ao corpo das empresas e das instituições, temos o abafamento da preciosidade única que é a personalidade individual.

Tu sabes, talvez melhor que eu, que não é um nós intuitivo ou afectivo: é um nós programado e programador.


Segundo me contaram, tu sempre foste testemunha dessa riqueza apoiada nas caracteristicas de cada um.

Falaram-me que durante trinta anos se sentou a ti um homem coleccionador de desgostos. Calado, eficiente, mesmo fora de horas oficiais não se separava de ti.

Eras-lhe melhor companhia que a sua casa vazia de gente, recheada dos fantasmas que lhe foram devorando a alma.

E depois veio uma senhora sem relógio cujo sonho era ser rainha do rei que nunca teve.

E depois veio o galã que te utilizava como instrumento de conquista. Era predador de olhos carentes.
Contigo, qualquer pessoa vulgar na miséria fica imponente na importãncia.


E depois vim eu e muito te agradeço o seres discreta.

E gostei de ti. Foste uma espécie de prolongamento de uma paisagem.
És igual a uma outra que conheci, numa terra ainda recente mas em que quanto mais larga for a idade mais as coisas se respeitam.

Lembro-me de ser muito nova, com todo um mundo oposto para descobrir.

Lembro-me de entrar num gabinete, de me fazerem perguntas, lembro-me do medo de me darem a minha própria vontade: from now on, that´s up to you, girl!

Lembro-me de me fugirem os olhos para a Eneida, com capa em couro, recheada de papeis e notas.

Lembro-me da senhora me dizer que, cada vez que se sentia tensa, lia passagens da Eneida. Mais tarde, se não a tivesse ainda, também eu haveria de arranjar a minha própria Eneida, ou Eneidas, para me evadir ou esconder.

Toda a gente as tem, toda a gente tem direito a tê-las. Never forget this! Com certeza!

Sabes, ouviste a conversa, que ainda perguntei se te podia levar, comprar, tentar arranjar colocação. Até tenho uma amiga arquitecta e designer, que é americana, vive em Madrid, tem casa em Portugal e que gostava de te ter.
Não vendemos património.
Não faz sentido.
Decidimos que o abate é a política mais equitativa.

Fiquei a saber que existe uma Comissão de Abates, abutres do respeito e da memória.

Sugeri várias alternativas.
Até que fosses para a casa de uma tia, refugiada alemã a viver no agora no Alentejo.
Nós não sabemos, mas estás relacionada, indirectamente, com a história dela.
Afinal o marido trabalhou aqui.
Tenho uma pasta de arquivo que me diz que muitas vezes ele aqui se sentou para resolver coisas com o homem dos desgostos.

E, se os desprezos mudassem de ventos, talvez naquela casa, um dia, ficassem expostos documentos e fotografias das histórias das passagem de judeus por Portugal,


dos refugiados da Guerra de Espanha.


Talvez ficasse audível a história calada de um país pequeno que, obrigado a sussurros e rostos embuçados, abriu os braços e tentou a hemostase de todas as perdas.


Faria todo o sentido.
Daqui não vês, mas ali no pátio, já está a tua sucessora embrulhada em plástico. Tem pés de metal, tampo de formica hipócrita com recheio de aparas de madeira com cinta, chamado aparite.
Madeira pouco digna e espartilhada que devora uma milionésima parte dos meus impostos. Uma milionésima parte de um todo de todos os impostos.

Olhando-te a dança dos veios, sem penosa dízima, adivinho-te o cheiro dos bosques.


O meu velho conhecido, meio louco e sábio, Pasillas, com o tradicional copo de vinho de Valdepeñas à frente, disse-me com a sua voz castelhana e megafónica que alguém que não canta o hino do seu próprio país, nunca pode ser de fibra inteira, enfim, traduzo a expressão por respeito para contigo, obviamente.

Com voz de entoação mais variável, menos potente, sempre te digo que um pais que queima o seu passado, o seu valor, as suas assinaturas com História nas mãos, corre o risco de ser um barco sem velas com a ilusão de navegar num mar de águas paradas.

Até se transformar num tanque cheio de orgulhos amassados em cinzas.


5 comentários:

Alien8 disse...

Esperemos que não se chegue a tanto.
Cá para mim, acho que a secretária está algures bem guardada, e que tu sabes onde :)

Vejo-lhe em cima uma caixa antiga cheia de fotografias a preto e branco, um cinzeiro não necessariamente de vidro, livros de capas duras, sólidas, impressas a ouro. E um pato de plástico branco.

Beijos.

Lizzie disse...

Alien:

também espero que não chegue a tanto ou que, pelo menos, haja uma selecção das cinzas.

Ando um bocado comovida e agora ainda me comoveste mais com o que botaste no tampo da secretária.

E fica guardada sim senhor, que sou teimosa.
Não é por lhe terem dado umas marretadas, partido toda, para mais fácil transporte, que lhe vou dar abate. Acho que um tal Manoel Souza, dado o esmero e a perfeição nos pormenores, não merece.
Assinando-a, mesmo em sítio escondido talvez nos estivesse a contar do seu orgulho pela obra.

Esta nova não tem tampo nem estrutura para grandes pensamentos, coitadinha. Já a conheço há algumas horas e ainda não lhe notei traços de individualidade. Nem uma manchinha, nem uma irregularidade...que tédio de mobiliário.:))

beijos

bettips disse...

(não se trata de enciclopédia
... mas da vida imensa, retalhada e tantas vezes divertida, que sabes contar)

Em tantas repartições se contaram histórias de madeiras cuidadosamente afeiçoadas, por mãos antigas: esta que te ouviu a metáfora merece que a guardem. Ah...sempre que haja poder para tanto que se protejam as belas memórias! Contra programas de abate em cabeças modernas e funcionárias sem chão nem cabeça.
Bjinho

Lizzie disse...

Bettips:

se calhar toda a gente tem uma vida imensa. É uma questão, às vezes, de se apurarem os pormenores.

É díficil e incompreensível para toda a gente "gente" que se queimem coisas com história ou se assassine a natureza.

Não consigo perceber porque é que junto da minha morada, morrendo os velhotes, os novos deitem para o lixo bons móveis para comprar contraplacados.

E que sendo uma aldeia campestre e rasa, perto de Lisboa, se subam andares estragando linhas de arquitectura, se cortem árvores para encher espaços de betão. Com a concordãncia, ou alheamento, das cãmaras. É tal coisa considerada sinal de civilização.
Mesmo que se invada a propriedade, a privacidade do próximo.

Ai Bettips, que me andam os genes aos pulos:)
Há quem me diga que a culpa é da de-educação que se foi praticando. Não sei, não estive cá.

Ainda ontem uma licenciada "sem chão nem cabeça" (maravilhosa expressão a tua) me perguntou se o Camilo Castelo Branco tinha vivido no séc. XV ou XVI...

Uma pequena ignorãncia tem o poder de se espalhar, como mancha,por todas as áreas do respeito.
E todas as memórias são enciclopédias de futuro. Acho eu.


Bjs

Lizzie disse...

...e Bettips, ainda há dias, atrasado como se diz no Norte:)
salvei uma cadeira de costura do séc. XIX, daquelas que as mulheres usavam para costurar à lareira. A madeira disse-me que passou anos à lareira. Estava junto ao contentor do lixo.
Restaurei-a e manteve a beleza da talha a que tem direito.
Sei lá que afecto de plástico a foi subtituir...