sexta-feira, 23 de abril de 2010

Vai este por encomenda a propósito do anterior, por me apetecer fazer uma pausa nos deveres, porque me apetece coscuvilhice mas em dose devidamente bem intencionada.

Segue pois a história

Da mulher que devorava os instantes.

Isadora Duncan (1877-1927) não nasceu com destino plano.
Pelo que ela disse, pelo que os outros dela disseram, pelo que ela imaginou e os outros inventaram, entre realidades e ficções, tem-se a sensação de entrar num glaciar de fogo. Ou num incêndio de gelo.

Ficou tão conhecida pela revolução na dança como pelas sucessivas obsessões com ramificações em escândalos.

Nasceu de um sonhador arbitrário e megalómano (só ele daria post) e de uma mãe professora de piano em recurso de sustento dos filhos. Ambos eram votados às artes.
Divorciaram-se.
Na ausência do pai diletante, Isadora cedo se habitou à música, com Bach como protagonista, à fome, a pedir dinheiro emprestado ou dado, a desenvencilhar-se.
Toda a vida alternou a fortuna com a miséria. Era capaz de, num dia, gastar o dinheiro suficiente para um ano.
Sempre lhe valeu o eterno apaixonado, mesmo quando utilizava o dinheiro dele para pagar a rapazes que seduzia na rua, Paris Singer, filho do inventor das máquinas de costura e pai do segundo dos seus três filhos.

Um dos desenvencilhos adolescentes, foi dançar na penumbra dos fundos de palco para acentuar o dramatismo das peças melodramáticas, espécies de Shakespeare para serões de trabalhadores, tão ao gosto do público da época.
Em boa verdade, mais que dança, era exibição rebolada das formas femininas ao critério da imaginação dos espectadores. Consta que a imaginação progride em relação proporcional ao puritanismo.

Durante toda a vida manteve quatro ódios constantes:
-aos bancos da escola tradicional por achar que neles se ensina o que nunca interessa;
- ao Ballet Clássico por ser uma forma artificial e feita rígida prisão de celebrar o corpo e a dança;
-ao Jazz por ser manifestação de uma cultura vinda de povos bárbaros. Para Isadora, toda a civilização assentava na Antiga Grécia;
- à passividade feminina em relação ao destino e aos amores.

Abandonou a escola mas, desde pequena, sempre foi uma leitora compulsiva, sobretudo de filósofos e visitante de dias inteiros, repetidos e repetidos de museus.
Sarah Bernhart descreveu-a até como uma miúda irritante e afectada na demonstração da sabedoria.
Fundou, sem sucesso, três escolas.

Foi por esta via que se apaixonou (nunca tinha interesses ou curiosidades mas sim paixões arrebatadoras) pela Primavera de Botticelli. As Três Graças, neste quadro,


inspiraram-lhe movimentos e figurinos.

A turbulência em que vivia, justificava-a com o dito de Oscar Wilde: vale mais o prazer que dura um minuto que a tristeza que dura toda a vida.

Quanto ao Ballet, Isadora defendia os movimentos do corpo de uma forma natural, alegre, ao sabor da improvisação.

Embora admirasse a ultra conservadora e esmeradamende tecnicista disciplinada Anna Pavlova,
não suportava a claustrofobia dos tutus, das sapatilhas, as regras.
Mas, embora as suas coreografias pareçam infantis e desordenadas, dançando-as, percebe-se que há ali uma técnica muito mais difícil do que parece.


Queria o corpo livre como estado honesto dos apetites da alma.

Queria dançar Chopin ou Schubert ou Bach ou Wagner.

Dançava descalça e com as túnicas largas.
Sem artifícios ou maquilhagens.

Estas, só as usou para disfarçar as cargas de pancada. Mas já lá vamos.

Tornou-se tão desbragada na exibição livre do corpo, e do gozo dele, que a intelectual Cósima Wagner, viúva do dito, acabou por lhe fechar as portas das suas tolerantes tertúlias. Demasiado Dionísio à solta.

(boto aqui este livro que acho fascinante em vários aspectos)

Foi várias vezes vista a dançar nua na via publica.

A tal ebulição do instante.

Para além de depender do olhar dos outros sobre a sua pele. Toda a vida necessitou, mais que de pão para a boca, de ser venerada e seduzida.

Tinha que se sentir fonte de desejo dos homens e das mulheres.
Vivia tanto a época Clássica, que, na Grécia, comprou, melhor, compraram-lhe, um vastíssimo terreno com o fito de restaurar o culto dos deuses gregos.
Para a primeira pedra do templo, convidou um sacerdote vestido de preto que sacrificou um galo também negro.
Esqueceu-se de reparar que tal terra era seca como o deserto. E que ninguém pode viver sem água.
Nunca percebeu porque os gregos já não veneravam os deuses antigos nem aderiam ao entusiasmo do seu culto.
Como não percebeu, quando se converteu à Revolução Russa, porque é que os camponeses de aldeias remotas, não admiravam as suas danças, nem Chopin, nem Wagner nem os outros.

Sempre odiou o conceito de dona de casa, mãe de família. A dependência dos homens.


No entanto, entrava em grandes depressões quando era abandonada pelos seus inúmeros amantes.

As suas tragédias têm sido objecto de inúmeras coreografias,algumas, imagine-se, de Ballet Clássico ou Neo Clássico.


e peças de teatro.

Aliás, sempre foi motivo de inspiração, mesmo para artistas seus contemporãneos.

Ou então, recorria aos amores femininos.
Embora, em escritos oficiais, estranhasse a homossexualidade, escrevia-lhes cartas de amor inflamado. E não propriamente platónicas.

Foi amante de famosas como a bailarina, também muito inovadora e de vida convulsa, Loie Fuller,
da actriz atormentada Eleanora Duse


e da abrangente destruidora de corações, nomeadamente o de Greta Garbo, a "poeta" Mercedes Acosta.


À excepção de Singer, todos os homens a abandonaram ou mentiram.

Algumas mulheres foram-lhe refúgio até à morte.
A todos dava nomes de divindades gregas ou de personagens de óperas de Wagner.

A todos prendia numa posse esfomeada.
Tinha ciúmes doentios que chegavam a levá-la a estados de choque ou desorientação.

Talvez os mais marcantes tenham sido o talentoso cenógrafo Gordon Craig, pai da primeira filha.
Rodin ,

e o rapaz italiano seduzido na rua e a quem pagou uma fortuna para que a engravidasse, de forma a que o novo rebento fosse a reincarnação dos outros dois filhos mortos por afogamento.



Aliás, acreditava que muita coisa diária, ligada à natureza, eram os filhos.

Entrou numa espiral de consultas a videntes e outras mensageiras do além.

Mas a mais avassaladora e obsessiva foi a paixão pelo poeta Sergei Esenin, quase vinte anos mais novo.


Por ele Isadora casou, aos quarenta e tal anos, perdeu a nacionalidade americana. Foi expulsa de vários países, teatros, restaurantes, hotéis.
Conheceu-o quando se embrenhou na Revolução Russa.

Apesar de revolucionário, Sergei queria vingar nos círculos intelectuais aristocráticos e de alta burguesia da Europa e dos EUA.

Tinha uma ambição sem limites, um cérebro marinado em álcool.

Queria conhecer gente importante e para isso dava festas escandalosamente caras. Dormiam nos hotéis mais luxuosos. Isadora mantinha-lhe os caprichos com receitas dos espectáculos e com o dinheiro de Singer, a quem chantageava com ameaças de suicídio.


Apesar dos conselhos dos amigos, Isadora continuou a suportar os insultos públicos de “vaca gorda” e a levar sovas físicas e psicológicas.

Afastava-se num dia, abria os braços no dia a seguir.


Começou a dar espectáculos deprimentes, completamente alcoolizada ou com ópio paliativo. E cheia de hematomas. Isadora defendia sempre o seu Apolo. Até perder a dignidade privada e o respeito público.

Apesar dos avisos, antes das danças já patéticas e sem talento e arte, cantava a Internacional e fazia comícios.

Em Boston, por exemplo, além de interromper a dança com uma espécie de comício, durante um jantar de homenagem a Isadora, Sergei subiu para cima da mesa e urinou para os pratos dos convivas.

Chamou porcos imundos aos judeus e “montes de merda” às mulheres que na altura, ali, já eram professoras universitárias, administradoras e comandavam os seus destinos.
No mais caro hotel da cidade, destruiu obras de arte, deixou Isadora desmaiada depois de murros na cabeça.
Isadora, só desistiu de viver com Sergei quando este a acusou publicamente da morte dos três filhos e lhe apresentou formalmente as amantes grávidas.
Isadora, abandonou a União Soviética quando todos os seus projectos foram sujeitos a condições ideológicas.
A dança, figurinos, música, tinham que obedecer a padrões obrigatórios, contrários ao que sempre tinha defendido.

E quando um outro querubim, por quem se apaixonou, desapareceu.
Voltou para a Europa. Para Nice.


A par de tertúlias com os mais conotados artistas e intelectuais, manteve-se activa nas buscas nocturnas, pelas ruas, de rapazes belos.

A ultima paixão foi um imberbe mecânico de automóveis. Convenceu, por isso, Singer a comprar um Bugatti.
Foi com o rapaz experimentar o carro. Por causa da échape, partiu a cervical e morreu sem aviso nem espera.

E se viveu e morreu de instantes, mudou a Dança Ocidental em direcção à eternidade.


13 comentários:

bettips disse...

Desde sempre, as écharpes, as flutuações.
(e já me aconteceu ficar uma ponta presa e eu sobressaltada/ pensativa...)
Os namorados que se perdiam delas e nelas.
"Douta" em tom de brincadeira claro, desenvolta, sempre... que te conheço há muito, de te ler, de projectos e de comentários.
Sempre divina, ou seja, 3D!
Abçs

Lizzie disse...

bettips:

Então o douta de abroad é a brincar? E ando eu aqui de pesadas vestes com este calor?:))

Pois que se há uma linguagem codificada para os leques também há para as écharpes.
Agora, que falas nisso, lembrei-me dos livros de protocolo.
Regras que os namorados, ou pretendentes, também deviam saber a bem de evitar mal entendidos.
Ora podia uma pessoa utilizar o apretrecho para dizer "não te vás embora que nem és desengraçado de todo" e a criatura pensar que saía um " estafermo, parece que não tomas banho há um mês".:))

Às vezes reparo nos pensamentos pela forma como se manipulam as écharpes. Mais uma coisa aparentemente simples que diz muito. Há pessoas que lhes pegam como se fosse uma espada, outras renda. Outras discretas, outras quase de teatro declamado.

E, sobretudo, nos anos 20, era uma imagem de liberdade e autonomia as Isadoras andarem de descapotável, em alta velocidade (?) de écharpe ao vento.

É uma das coisas em que este post é omisso: a paixão que tinha pela velocidade e por carros.
Mas se fosse falar de tudo...e mesmo assim já está tão comprido. Para variar.

E hoje não me sinto muito em 3D: é segunda feira e a modos que às 2ªs me sinto um bocado espalmada:))
às terças, enfim, evoluo para um incipiente baixo-relevo. E é com sorte:)

Obrigada!!!

Bjs

Alien8 disse...

Lizzie,

Uma história fascinante, que conhecia em parte e desconhecia noutra parte, apesar de, já lá vão muitos anos, ter visto - e acho que revisto - o filme.
Nunca me esqueci da écharpe...

O Singer era realmente uma boa alma...

A Isadora, inclassificável. Nem é bom tentar enquadrá-la, como aliás se conclui do texto. Limites? Nunca. Nem a ela, nem a outros que foram e são grandes, precisamente porque os não têm, apesar de outros, também grandes, os terem tido. Cada um com a sua arte e a sua forma de a exercer, não é?

Mais uma bela história que nos contas.

Um beijo.

Lizzie disse...

Alien:

há uma pergunta clássica que faço sempre que vejo alguém no palco de teatros,de músicas, de livros, de quadros, etc:
"és tu que fazes a dança ou é a dança que te faz a ti?"

E acho que os grandes "fazem" aquilo em que trabalham.
Talvez, exctamente porque ultrapassam os limites do que já foi feito. Mantendo, claro, os limites da ética (estou a pensar na falta de respeito na utilização de pessoas ou animais como, por falta de talento e desejo de protagonismo, alguns fazem, sobretudo a partir do pós modernismo).

À Isadora Duncan talvez nem tivesse passado pela cabeça a dança que fez.
De facto, não houve limite que não tivesse ultrapassado, a começar pela autonomia da dança em relação à música. Fosse dizer tudo e não saía daqui:)

Lançou as bases para quem veio a seguir.

A Loie Fuller também, mas mais noutro aspecto. Fica para um próximo capítulo.:))

Teve sorte em ter morrido na altura em que fez uma maldade ao Singer e este entornou a paciência.
Também a entornou a uma multimilionária americana, mecenas de várias artes e que além de a financiar a ela, também ajudava o clan Duncan. Todos os irmãos eram...delirantes.:))

O filme com a Vanessa Redgrave?
Também vi. Não me lembro se revi.

Olha que sentar no jardim, bebericando qualquer coisa e contando as vidas destas criaturas, dá um serão que nem as avionetas interrompem:))

Abraço

Lizzie disse...

Adenda Coscuvilheira As Voltas Que a Vida Dá:

Isadora saiu dos EUA, com a mãe e os quatro irmãos, clandestinos e com nome falso por via de não terem dinheiro para o bilhete, a bordo de um navio com destino a Londres.

Aqui, dormiram noites a fio na rua com os sem abrigo. De dia iam para os museus estudar.
Anos mais,tarde,poucos,Isadora era recebida com pompa e circunstãncia nos salões de Edward VII, de quem se tornou amiga e confidente.
Segundo ela, o Rei, era dos poucos ingleses...suportáveis.
Credo, não exageremos:)

Alien8 disse...

Ahahahahahah!

Alien8 disse...

Hmm... obviamente só estou a rir-me do final!

Lizzie disse...

Alien:

então eu reli e não vejo onde está a graça...:))))

Náná, a emergente disse...

E devorava mesmo, Lizzie!
"A modos" que há pessoas que nascem irrequietas e propensas a adições de vento e nunca sossegam!

Como é habitual, a tua graça natural, sentido de humor e expressão dramatica, que tu tão bem sabes dosear nestes posts, faz desta, como diz o Alien, uma bela história.

Gosto de écharpes, vou observar de que forma as uso, caso seja possível a observação quase umbilical. :)

Um beijo, boa semana

Náná, a emergente disse...

Ah! E já me esquecia, não não, não gosto de absinto, demasiado forte e duro, demasiado. :)

Vamos a um verde bem gelado? :)

Lizzie disse...

Cara Náná:

também não gosto de absinto. Nem de licores. Nem,imagine, de vinho do Porto. Espantam-se tanto ingleses como portugueses quando digo que não gosto de café.
Sou uma desgraçada que alia o paladar desdenhoso a um fígado frágil.

Quanto à Isadora, tem razão, foi uma ventania. Fico até a pensar que o vento foi produzido mais pelas árvores que pela correria doida do ar.
Árvores celestes e nómadas.

Claro que o enquadramento histórico também propiciava tornados mas,outras e outros existiram que também fizeram revoluções metendo-se em grutas abrigadas. Foram dados a pensamentos mais fixos, mais calmos, mais estruturados.
Isadora entrou num sonho e dentro dele viveu.

Só dois pesadelos se mantiveram: a morte dos filhos e a decadência física.
Tinha consciência, quando acordava por breves instantes, que enchia teatros com um público mais ávido de ver ao vivo um animal escandaloso que propriamente curioso e critico da sua arte.

Talvez a busca carnal de amores mais novos e belos fosse receita do elixir da juventude. Mais um sonho dentro de outro sonho.
O vento nunca a deixou pousar no chão.
Há sempre quem se sopre a si próprio.

As outras depressões "menores", davam-lhe forte mas passavam-lhe depressa.

Quanto a écharpes, adoro vê-las, por exemplo, no cinema de antanho.
Aí, os códigos de colocação e manuseio estão certos com as personagens.
Hoje em dia já não. É pena. Porque são pormenores que têm graça. Têm qualquer coisa de discretamente teatral e dão colorido, ou seja, evitam que tudo seja estandartizado e monótono.

Com ou sem vinho verde, de vez enquando, os meus pares e eu, praticamos tal arte écharpistica, acabando sempre a prática em gargalhada. Que falta de profissionalismo, não lhe parece?

Agradecida, desejo-lhe também uma boa semana

bettips disse...

Lizzie ...tão linda e misteriosa a casa dos rabiscos e conchas e pedras!
Obrigada, muito!
Espalhar - boas - ideias e receber, é bom. Memórias - boas - comuns também.
(a mais importante, écharpe, era uma cor de roxo-azul-anil, aí pelos 17??? ou 16 anos??? já nem sei... e flirtava pela ponte adiante, a de D. Luís, com o??? sei lá agora...Veio o vento e levou-a para o rio, estou a vê-la flutuar no meu espanto; mas tantas cousas se foram assim, no vento ou brisa ou tempestade!)
Bjs

Lizzie disse...

Bettips:

credo, não tens nada que agradecer!

Foi só uma alembradura que me deu.

As cortinas também são lugares de memória, de refúgio e de sabedoria. Como, a um nível mais privado, as écharpes.

Se fores a alguma casa em Lisboa, sobretudo ali para Alfama, bate nas paredes. Pode ser que sintas o som do oco.
É que, em Tempos de Inquisição, os judeus e falsos cristãos novos, faziam uns nichos nas paredes e lá colocavam os livros sagrados e objectos de história familiar. Depois tapavam e botavam uma cortina ornamental em frente. Os ornamentos costumavam ser com flores e árvores.

Ainda hoje, sobretudo nos EUA, Inglaterra e derivados, em cerimónias e festas caseiras, os judeus penduram uma cortina como simbolo de homenagem histórica.

Olha que, na brincadeira, uma pessoa amiga com morada perto de Stª Apolónia, ganhou um lindíssimo nicho que nunca imaginou que tivesse. Estava vazio, mas estava lá.:))

Bjs, obrigada eu!