quarta-feira, 21 de outubro de 2009

E este vai, de certa forma, em sequência de oposição geográfica ao anterior. Assim segue a prosa

Dos galos residentes na filigrana dos olhos

Aquela era casa de descanso, do corpo e da alma, por um período de três meses, para cada um que nela tivesse entrada.

Saía-se de manhã, com a sensação de mero átomo a circular na capital do mundo, voltava-se à noite, com consciência de elásticos feridos no interior do corpo e com conhecimento da alma própria, cada vez mais escancarada.

Cada arte tem o seu tempero de desmesura na aprendizagem.

Era e continua a ser, uma casa vitoriana, de tijolo vermelho. Cada quarto com duas camas e uma casa de banho acoplada. Nas traseiras, um jardim e uma linha férrea.

Fomos enviados para lá, em meio termo, entre o susto e o fascínio. E com uma certa arrogância de impermeabilidade ao destino que só a juventude dá.

Recebeu-nos uma senhora muito grande e obesa, de apetitosa cor de chocolate.

Com montanha russa na voz: como todas as mulheres do sul, cada sílaba arrastada salta de três em três oitavas sem modulação nem aviso.

Olhou para nós. Éramos três na fornada daquela manhã.

Tinha os olhos enormes. As córneas pareciam jóias em filigrana de vasos sanguíneos.
Pôs as mãos cintura e comentou-nos, maneando a cabeça assente na espécie de bóia que era o duplo queixo.
Pelo aspecto, éramos figuras de que Deus e o Bom Jesus se tinham cansado, deixando-nos à mercê dos vagares do diabo.
Mais tarde desenvolveria as apreciações, entre a fé e a lenda, de que nós e os outros, felizmente, já éramos só figurativo pretexto. Era a dita senhora, embora desbocada nas apreciações, um chocolate ternurento e maternal.

Então ali estávamos:

Uma espanhola com traços de águia, daquelas que, ainda antes do Tempo das Palavras, se tinha instalado nos penhascos, e ainda por lá andavam. Não tínhamos ouvido falar deles?


Aqueles montes de pedras secas que se tinham formado quando a melhor amiga do Diabo, a volúvel Lua, escondendo o sol durante três dias, tinha feito o Mississípi andar ao contrário, empurrando as férteis terras dadas pelo Senhor, para o norte e dando-lhes tal secura que nem as chuvas mandadas por Jesus durante sete dias as amoleceram?

Um cubano da sua cor, mas temperado com leite, com pele preparada pelo Sol, aquele astro que traz a luz forte e quente do amor de Jesus e que mora no Céu que é tão grande como o seu Pai Deus.

Também ele estava seduzido pelo Diabo, assim a rebolar a anca como as mulheres que fugiam da Luz nos bares onde se cantavam amores sem lei nas profundezas das Trevas!


E, finalmente eu, parecida com os gatos, traiçoeiros e fugitivos como filhos do Demónio que são, que andam escondidos pelas noites e sombras dos bosques, como almas sem poiso certo e com olhos de ver à noite. Muitas e tantas, as almas que tomaram corpo felino, depois de Jesus lhes ter descoberto a perfídia e a luxúria.


Porque a noite se fez para os errantes sem rumo nos sentimentos nem terra para sentir o andar. E quem perde o Sol e a Luz da terra viverá cento e vinte dias no meio de almas agrilhoadas num terreiro com fogo escuro, com rios amarelos e fedorentos como o enxofre.

Note-se que, ainda antes do Dilúvio, Deus tinha criado o sono, para evitar que os homens, caíssem nas tentações trazidas por toda a escuridão onde também moram as almas desobedientes das mulheres com ventres esfomeados e vadios.

Em jeito de parêntesis, digo que Mamma Sam´s, alcunha por que era conhecida, botava ciclicamente estes e outros discursos, mais para si do que para mais alguém, depois do jantar, sentada numa cadeira de baloiço enquanto bebia o seu whiskey e fumava os seus mata-ratos, com aquele semblante entre o pragmático e o resignado que é próprio dos que muito sofreram calados e arranjam mil e uma histórias exteriores para desabafarem o que não querem dizer.

Com olhos de hoje, diria que se via bem, que tinha perdido algum pedaço de si, algures, na viagem do seu Sul para o Norte.


Mamma Sam´s, ali, naquela imensa cidade de todas as cores, era aquilo que os negros radicais do Black Power chamavam depreciativamente de Oreo, em honra da bolacha de chocolate com recheio branco.

O tal cubano, por ser não uma, mas um pacote inteiro delas, teve a sina de ver o corpo espancado e a tão alma tão partida, que nem a cola do deus mais luminoso e ilustrado de qualquer fé, conseguiu tornar inteira.



Mamma tinha atitudes resolutas de espantosa universalidade..
Fiquem sabendo que o refeitório, além de um mapa do mundo terrestre, tinha uma parede cheia de relógios, onde se marcavam as horas das capitais de muitos países. Depois de lhe ter explicado, lembro-me, de manhã, onde ficava Portugal na vastidão do tal mapa, à noite do mesmo dia, com surpresa, inaugurei um novo relógio, tipo padrão nos descobrimentos, por baixo de uma placa onde se lia


Lisbon


Portugal

Tanto quanto sei, ainda funciona.

Mas, mais ou menos, findo este parêntesis, Mamma instalou-me num quarto já ocupado por uma alemã com aspecto larvar de inverno, a fazer lembrar as almas das senhoras brancas que, assassinadas por paixões inesperadas e ilícitas, se elevavam, em forma de vapor, nos pântanos, ao anoitecer.
Quanto a mim, quando a conheci, pareceu-me já a ter visto em qualquer lado:



Tal alemã cumpria aniversário no mesmo dia que eu e no mesmo dia fomos acordadas pelas cinco e meia da manhã.

Luzes acesas, com olhos encadeados e mente confusa, vimos a robusta Mamma à porta:

que dia era aquele? Que levantássemos os nossos “rabos escanzelados da cama”, que o Galo, que é a voz que Jesus encontrou na terra para anunciar a Graça da claridade, já tinha cantado, lá fora no jardim.
Seguimo-la, obedientes, para a tal sala-refeitório e talvez pelo sono e através do seu modo de andar, comprovei que a força gravitacional da terra existia.

Tínhamos à espera uma travessa de frango frito com maçaroca frita de milho, mais tomate verde frito, e para finalizar, rodelas de maça frita com mel.

Porque, primeiro, no dia de qualquer aniversário, qualquer cristão, judeu, muçulmano, hindu e as demais versões de Good Lord que existirem, deve logo cedo festejar a luz do dia, que é prova provada da existência e celebração da vida. Quem arrastar a noite pela manhã dentro, correrá o risco de povoar a alma de escuridão.



Depois, tínhamos tido a infelicidade de nascer com aroma de Outono, a estação de todas as mortes e maus hálitos da terra, ou seja, quando o Diabo se prepara para sair dos confins, como tinha feito quando o Mississípi tinha engolido gentes e árvores criando os pântanos cheios de animais com almas de gente perversa dentro.


Comêssemos o frango e ele nos cantaria no sangue, dando-nos força na vontade.

E o tomate, que é veneno doseado, mataria os males da inveja, da cobiça e dos arredores de todos os maus sentimentos.
Com o milho, nunca levantaríamos os pés da sabedoria do chão.

Com o mel agarrado à maçã, seríamos doces e fonte do desejo do nosso homem além de tão trabalhadoras como as abelhas.



Quando me despedi e ela me deu um abraço, ficou-me na memória do corpo, o contacto com um suave e acolhedor colchão de simples bondade.

E a vaga certeza que nem a Lua nem o Sol, nem Deus nem o Diabo, são criaturas de enredo certo.

21 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

Sabes que andam por aí uns resumos de livros conhecidos, não sabes?

Ora vejamos:

"Fui estudar para Nova Iorque, onde me instalaram numa casa velha, acompanhada por uma espanhola e de um cubano, andávanmos todos na Lua, e dividi um quarto com uma alemã de feição ultra-romântica. Mandava lá na casa uma gorducha com a mania dos relógios, e a comida era toda frita e metafísico-simbólica. Deu-me um certo galo."

FIM


Hehehehehe! Não consegui mesmo resistir!

Isto não se faz, eu sei :) Mas... um destes dias vingas-te!

Mais a sério (se possível!:), há calvários que até se justificam, quer pela experiência, quer pelos resultados. Não sei porquê, mas a Mamma fez-me lembrar a Consuelo. Tu saberás, mas deve haver por aí pontos de contacto.

Tirando a parte das cinco e meia da manhã, que só são horas de levantar lá para os lados da Sibéria, e nem sempre, o desayuno até não estava mal. Tudo frito, por supuesto, mas nesse século ainda não se sabia que os fritos faziam mal - e que se soubesse!...

Para variar, ilustrações soberbas.

E que aventura! Estes posts dão cabo de mem. Então depois de comer tanto e tão bem... :)

Ah, terás reparado que vou metendo aqui e ali umas espanholadas, a ver quando é que sai asneira... coño!

Muy bien, Lizziezita, muy bien!
Besos para ti!

Alien8 disse...

Hum... "dão cabo de mim", qual mem! Esse era o Martins, e ainda há pouco de lá vim! :)

Lizzie disse...

Ó Alien

adorei o resumo:))))

Olha se me desse para fazer um resumo em inglês nova iorquino?

(Peço desculpa pero las cosas estas son cómo son...):

One day, some fucking years ago when i whent to that fucking New York City for three fucking months, to learn and work how to shake on my stupid ass, whith a spanish girl, Benfica´s eagle face, and a ass hole negro cuban,darker than Fidel, i enter a bull shit, kind of english, house of brit color and i met a tower, fat as hell, negro woman with a shit of a dazzle lights instead of eyes.

She put me in a fucking large bed room whith a kind of nazi german clever girl, whith a fucking face like the drawings of that european fellow there, named Holbein.
I don´t give a shit of the sermons about moon and losts, that negro woman gave by to us, but....

(isto falado ficava mais autêntico)

Imensos pontos de contacto entre a Mamma e a Consuelo. Muitas vezes falávamos disso.

E naquele período de, hummm, recruta, como quase "soldada" rasa, e sem perceber nada do que fazíamos durante o dia, Mamma era uma figura maternalmente acolhedora. Refilona, mas ternurenta.

E com uma história dramatiquíssima, como quase todos os "exilados".

E não me fales daquele pequeno almoço, que ficámos enjoadas durante quinze dias.

A propósito, alcunha Mamma Sam´s vinha de uma rede de estabelecimentos de fast food,com comida do Sul. Não sei se ainda existe, mas acho que não. Ai tanto frito...:)
mas os grelhados eram óptimos no tempero.

Y, enfín, coño, te doy las gracías, no?
Por lo de más agradable que eres tú!

Así qué besos, pués claro!!!

Lizzie disse...

e Alien:

esqueci-me de assinar:


Lizzie Maria de Pedro Álvares Cabral e Colombo

(a kind of):)

Arábica disse...

Lizzie,

então era esta a casa da linha do comboio? :)
As tuas mil e uma histórias são realmente um universo sábio onde se cruzam afectos, cores e sabores, rostos e músicas a perder de vista!Fascinantes!
Escritas em inglês, também.:)
Sim, tal como ao Alien, também a mim me lembrou Consuelo. Há muitas Mama's Consuelos por esse mundo fora e se em certas vidas/histórias, parece difícil encontrá-las, é porque talvez não tivesse a/o autor/A dona/o dessa mesma vida, o dom de as conhecer...
(acho que me troquei nos ós e nos ás, mas percebes).

Dom que a ti não falta.
Graças a ele, estes soberbos momentos devidamente salvos em palavras e imagens.

E o comboio passa e eu tenho que ir apanhá-lo! :)

Besos, Sherazade.

Lizzie disse...

Arábica:

aquela coisa mal educada ali é a modos que inglês americano.
Se fosse inglês-inglês era mais assim:

Once upon a time, the young Miss Lizzie, went to that terrible and mad city of New York, and she lodge her self in a beautiful house, with an extraordinary americanized Victorian architecture, placed near a railway.
That house had, indeed, a very nice garden.
In the left and west corner of it, a little stone-cutter with red roses....

enfim, uma pequena diferença de estilo:))

E, até hoje ainda não consegui descobrir o que é que a Mamma queria dizer quando atravessava o corredor do nosso andar de um lado ao outro e enorme, armada em despertador, a tocar um sino e a berrar:

"o pequeno almoço está servido e os patos estão no lago"

se ali nas redondezas não havia nenhum lago nem os correspondentes patos!

O mais espantoso era a capacidade de sargentar num quartel tão heterogéneo e com tanta gente. Sem agressividade e sobretudo sem amargura.
Talvez por ter essa capacidade de "gestão", chegou a governanta.

Aquilo foram tempos muito, muito duros, ainda por cima naquela idade. E de facto era bom ter alguém...Mamma:)

Tal como a Consuelo, quando o sítio ficou sem ela, segundo nos disséram, perdeu a graça.
Não chegámos a saber é se saiu por reforma ou se morreu. Naquela altura já não era nova.

Quanto a músicas, muitas das mais "tradicionais" dos negros do sul, sobretudo ligadas ao trabalho, falam de comboios. Era uma linguagem de código para os escravos: fuga para o norte.

Mamma batia com os pés no chão para sublinhar as palavras. Outro código utilizado por eles na dança.

Tudo se liga, tudo tem uma raíz e explicação, causa e efeito:)

Acho graça!

Obrigada!

Besos

Frioleiras disse...

lindíssimo........ tudo !

o Reverso disse...

Senhora,

encantado e ensonado retiro-me que a noite vai caminhando e, apesar de mudar a hora e poder dormir mais um pouco e não ser dia de meu aniversário não quero arriscar e entrar a dormir pelo dia adentro.

voltarei e deixo os meus desejos de uma boa semana para todos.

Anónimo disse...

Passo para depositar beijos em vossas mirabolantes e miracolantes águas. Demorados, ainda que eu passe a vida apressado e apertado entre aviões.

Incondicionalmente
vosso,
Passadiço felidófilo

Lizzie disse...

Frioleiras:

pois que muito obrigada.:)

Lizzie disse...

Estimado:

sobretudo às segundas-feiras, maldigo a hora em que o dia chega e me impõe a verticalidade. É incómodo andar a dormir sem o corpo deitado ou recostado.

Por isso, fico a olhar para a cadeira de costas reclináveis que tenho aqui. Nem imagina o poder de sedução que tem a dita. Então depois de almoço...chama-me para o mundo da lua e outros astros mais distantes.

O esforço que faço para desligar os motores afoitos na viagem.
Mas pronto!

Também para si, uma boa semana. Com as suas horas acertadas por si, de preferência.


Os meus respeitos

Lizzie disse...

Passadiço voador felidófilo:

oh que palavras usa, que me obriga a viajar até à sua escrita três vezes para que "felidófilo" saia digno da sua augusta e sempre apressada tecla...

E não é sem esperança e aperto no peito que olho os aviões a rasgarem os céus: ou neles adivinho a sua chegada ou me pesa sabe-lo uma vez mais na partida.

Ou antevejo os seus olhos a procurarem-me na multidão, ou recordo o seu último olhar, de pasta na mão, antes de cruzar a porta que nos dói.

Ah, mas como é doce a lembrança da minha cabeça repousada no seu peito, à beira mar, rio ou lago. Como o bater do seu coração não tem tempo, rotina ou enfado.

Juntos, oh, havemos de beber o vento...

Juntos, oh, havemos de espezinhar o tempo. Aquele que nos aflige.


Sempre com a alma abraçada à sua.

Oh!

Arábica disse...

Lizzie,

pois que fiquei a pensar na simbologia dos patos no lago.
Pois que até me socorri de meios audiovisuais (como agora é corriqueiro) para quem sabe, antever a grande verdade encerrada em tão magnifica imagem (a guiar-me pelos patos e gansos fotografados nas termas).

Mas como sou muito muito limitada e sem imaginação nenhuma, a única ideia que me assaltou é a de que a vida, o tempo, o dia, não espera. Tal como o alimento -limitado e condicionado- dos pequenos qua-quás no lago.

Há que ir.

De comboio ou a nadar (todos os patinhos sabem bem nadar, cabeça para baixo e o rabinho a dar a dar)! :))

Quaquá para ti também.

E abraços, ora essa.

Lizzie disse...

Arábica:

há aí um qualquer ingrediente de chop-suey com molho agri-doce que me está a escapar.
A gastronomia não é de todo a minha especialidade.:))

A tua explicação dos patos, é bastante plausível.:)

No imaginário do sul, metem patos e abelhas e outros animais para além de Deus e Jesus, em lagos, rios e florestas em tudo e por vezes de forma indirecta, ou seja, pergunta-se alhos e sai uma história que sabe a bugalhos (ou será bogalhos?).

Às vezes é difícil chegar à moral da história.

Dou-te um exemplo (esta percebi e lembro-me bem):
um dia os patos ficaram no lago a nadar, a nadar, a nadar.
Veio o inverno, o lago gelou.
Os patos, então, levantaram voo e levaram o lago com eles.

Moral:quando há união, tudo se consegue.

Origem: uma plantação de algodão tinha muitos escravos. O dono da plantação, tratava-os tão mal e era tão estróina, que a produtividade baixou até a níveis de falência e fome.
Planearam uma fuga conjunta para o Norte, onde foram libertados e prosseguiram as suas vidas, quase todos, em fábricas de tecidos.

E esta é uma forma de comunicação que ainda hoje se mantém. Para todas as circunstãncias.

Pronto, já voei um bocadinho e agora vou pousar no lago para pescar.))

Abraços, faz o obséquio:))

Arábica disse...

Zizzie, obrigada por mais um desvendar de "blues" onde a filigrana dos olhos se interliga harmoniosamente com as rendas de bilros tecidas pelos olhares...
neste caso, pelo teu olhar.

Às vezes o alimento é usado de forma figurativa e era o meu caso.
Mas também acabei por achar uma certa graça, uns dias depois, ao encontrar três patos num sitio novo de um novo caminho e ao levantar os olhos para melhor o identificar, ter lido numa placa "Bar Restaurante".

Também os que ousaram partir partiram em busca do seu alimento.

No passado, temos óptimos exemplos de tudo: coragem, crueldade, ódio, amor, solidariedade.
Os séculos passam e as rotas refazem-se. Erro meu pensar que vamos evoluindo sempre presos aos mesmos temas e causas?

Beijos com antiácido e protecção aritmética a relatórios enfadonhos! :))

Haddock disse...

muito meiga a senhora chocolate... mas acordassem-nos às 5h da manhã para soprar velinhas, ainda que com frango frito a chamar por nós, e havia voo na certa!!

é mauzinho, bem sabemos. mas, 1º) como sempre epigrafamos no defunto "sono", "dormir é pensar para dentro" e não gostamos de ser interrompidos nesse raciocínio!! 2º) detestamos fazer anos; não só porque envelhecer chateia, mas também pela nossa proverbial timidez: centro das atenções é que nunca!! (ou melhor, até podemos ser subtilmente exibicionistas mas apenas nas festas dos outros!! aí, pelo menos, podemos fazer o que nos apetecer sem anfitrionices...)

vénia... e, como se usa elegantemente dizer, que contais muitos e nós cá para ver!!

Lizzie disse...

Arábica:

Uma das vantagens de ter sido, durante uns anos, nómada, foi exactamente ter contacto e aprender, como coscuvilheira e enfim, pragmática que sou, várias formas de olhar os mesmos factos.

Até os patos e derivados são utilizados para morais diferentes consoante os povos.
Não é por acaso que é bicho tão utilizado em histórias de encantar. Ou desencantar.
Mas isto é conversa longa.

Também aprendi (lá vou eu ser politicamente incorrecta) que no passado e no presente a humanidade é um poço de "maus costumes", exista ou não um Deus a ditá-los.

No caso do post, Mamma como outros, fugiu da maldade dos resquícios da escravatura, ou seja, fugiu dos brancos.

Chegou ao Norte, onde os brancos (uma milionária judia) lhe deu um cargo de chefia. Não por caridade ou maternalismo de lavar a consciência, mas por capacidade de gestão de gente vinda de todo o lado. Até da China. Garanto-te que é difícil.

Deixou de ter medo dos brancos, vivia aterrorizada por alguns sectores de pretos (curiosamente não nascidos em sul nenhum).
Matavam-se uns aos outros, imitando o pior daquilo que condenavam. A manipulação faz milagres.

Isto tudo para dizer, que, acho eu, apesar de mudarem valores e épocas, a parte estrutural dos defeitos e das qualidades dos bípedes pensantes continua igual.

Enfim...

Besos

Lizzie disse...

Capitão:

nem imaginais o que nos custou sermos interrompidas em nossa augusta liberdade de estarmos viradas para dentro, pois que é exactamente a essa hora que mais profundo pensamos.
Até na nossa hiper organizada e disciplinada germânica notámos breves arremessos hitlerianos. Por congénitos segundos, que não era pessoa dessas coisas.

Mas a Senhora Chocolate da Tez assaz acetinada, lá tinha tal forma de nos prendar.

Por muito discretas que fôssemos, connosco, seguia ficha com local e data de nascimento, proíbições gastronómicas, religião.
Neste item, Mamma sempre escancarava os olhos quando via inexistência no culto da dita. Tal coisa potenciou-nos alguma aura de felina, imaginai!

Também, como vós somos de ser discretas. Nem sequer organizamos festas em nossa honra nem exigimos presentes, até porque temos sempre medo que no próximo nos ofereçam uma bengala
ou um kit de tricot
ou um sonotone
ou uma placa com nosso nome e morada para trazermos ao pescoço
ou pior, ainda, que nos ofereçam tudo isto numa vez só.

Continência e que ainda por cá andemos uns tempos a protagonizar as festas alheias.

Ps: já lá vamos ao outro "postal".

Emma Larbos disse...

Ai, Lizzie,

Exegese com exegese se paga...

Lida toda a história, parece-me que temos aqui uma narrativa extremamente perigosa, ilícita e – diria mesmo – absolutamente pecaminosa de cripto-canibalismo, como aliás não será de espantar em terras do Novo Mundo, onde, como se sabe, os povos autóctones sacrificavam o seu semelhante extirpando-lhe o coração, bebendo-lhe o sangue e comendo guisadas as partes mais musculosas dos seus pobres corpos.

Portanto. Uma rapariga cujo totem era a águia e outra cujo totem era o gato aboletam-se em casa de uma pobre senhora transportando consigo já uma vítima cor de chocolate mas que lhes sabia a pouco porque parece que era daqueles chocolates da Kinder que do bom cacau só têm uma fina capa e por dentro é tudo leite. Não admira que as moças andassem com fome e por certo lhes luziram os olhos assim que viram a senhora apetitosa, de verdadeiro chocolate Côte d’Or, tamanho tablete familiar. Ainda por cima a senhora recheva-se a si própria com licores alcoólicos, como um verdadeiro bonbom! As más línguas diziam que não era uma tablete a sério e sim uma oreo disfarçada, por isso, a águia e o gato, previdentes, foram logo lançando o olho para uma larva que por ali andava, para o caso de precisarem de um acompanhamento.

Ora senhora vinha de uma terra onde morava um senhor chamado Mississipi que já tinha engolido muita gente e deu-lhe a gulodice assim que as moças lhe cheiraram a aroma de Outono. Um dia preparou uma travessa de frango frito com maçaroca frita de milho, mais tomate verde frito, e para finalizar, rodelas de maçã frita com mel e mandou as moças comer tudo. Lá na terra dela também usavam esta técnica com os perus de Natal.

Assim que as moças comeram o opíparo repasto sentiram-se muito mal dispostas e caíram de cabeça em cima da travessa.

Nunca mais ninguém ouviu falar delas. Mas ouve-se contar que a Mamma com nome de comida de plástico está cada vez mais gorda...

Lizzie disse...

Ai Emma, que vingativa que andas!


Ai o que as moças sofreram, coitadinhas! Vê lá a ironia do destino: andavam famélicas, a dieta e sem repouso a não ser no dia santo, e acabaram metidas dentro do estomago, a cheirar a fritos, de uma bolacha, filha do Mississipi.
Lá se encontraram com dama vestida de branco a berrar que tudo o vento tinha levado. As moças ficaram surdas porque nem te passa pela cabeça o eco que o estomago da comida de plástico faz.

Vá lá que o Mississipi não gosta muito de cérebros com ovo. Olha se fosse mais para o lado este...o que não teria sido da moça espanhola? O que vale é que faz anos em Junho e nessa altura já estava mais ou menos a salvo, noutra terra. Coitadinha, que qualquer águia deve manter as penas até ao fim!

Mas que boa música já soava no esófago...
bem me parecia que tinha ouvido solo de trompete na garganta.
Mas naquela descida, uma pessoa sabe lá...

Alien8 disse...

Lizzie,

Já me esquecia de te dizer que o resumo em amaricano e a assinatura são fucking preciosos :)

Um abraço.