quarta-feira, 20 de maio de 2009

Estando eu, de penitência, em arrumações, encontrei dois livros amarelecidos de Zelda Sayre, Fitzgerald de casada, chamados um Save me the waltz e o outro Pages of private journal, acontecimento que me leva a botar escritura sobre


A loucura dos espelhos simétricos



Já não sei se foi Rosa Montero, ou outra qualquer escritora, que disse não haver pior profissão que a de mulher de escritor famoso. As coitadas, ou ficam eternamente sentadas no degrau mais baixo do pedestal ou são culpadas de todos os desaires na fluência criativa dos génios. Tudo depende de que lado e em que tempo na História se está.

Ora, desde que nasceu Zelda Sayre, teve sempre o condão de inflamar e dividir opiniões e sentimentos. Tinha o absurdo das ideias fixas.

Colava-se a sonhos como se na alma tivesse ventosas de desespero.



Foi numa festa que viu Scott Fitzgerald.

Determinou que, a ser preciso, esperaria toda a vida por ele.

A espera foi curta, não demoraram a casar, apesar de no namoro, o destino já não ser misterioso quanto à montanha russa mutuamente destrutiva: se Scott já era alcoólico desde a saída da infância, ela já evidenciava sinais de vulcão em iminência de erupção.

Não há redomas que isolem o amor do resto do mundo. E aquele foi vivido em época baptizada, por Fitzgerald, de Jazz Age e por Gertrude Stein de Lost Generation.

Viveram o período entre guerras, encaixado entre a euforia de ganhos extraordinários na Bolsa e a depressão de 29.

Conheceram a confusão rápidas de valores.

Tinham sido ambos educados segundo normas rígidas: ele por uma mãe egocêntrica, autoritária e chantagista de afectos,

ela, aristocrata, por um pai juiz à americana, ainda por cima sulista, ou seja, com o estatuto, exterior, de infalibilidade muito próxima de Deus.


Depois da 1ª guerra o mundo correu como um doido enfeitiçado. A moral vitoriana morreu de um dia para o outro. Todo o recato e elogio da virtude se tornou motivo reaccionário de embaraço.



Era vergonha andar-se sóbrio. Mesmo quem não gostava ou não bebia, fazia alarde do seu vício.


Tornou-se chique fungar e exibir o lenço manchado de sangue narigal, anunciando a grandeza da cocaína.

Misturando óleo de amêndoas doces com pó de carvão, damas e cavalheiros simulavam olheiras até ao umbigo, como sinal de constante folia.

Procuravam-se os mais linguarudos para confessar as infidelidades, muito praticadas, nos bancos traseiros dos velozes carros Ford. Introduziu-se a expressão, ainda hoje em vigor, de back seat love.




A dança tinha a ousadia mulata do Charleston, o ritmo do Jazz, o tango (originalmente uma dança gay) foi introduzido como metáfora de sedução ardente e clandestina.

Se raças, como a negra, tinham sido escravizadas, foram elevadas à categoria de demiurgos do futuro.

Substituiu-se o velho e paternal Deus judaico-cristão por deuses mais exóticos e... permissivos.



Começou o culto do nu, não como forma de arte, mas como revolução no modo de vida.

Zelda e Fitzgerald foram o paradigma desta mudança.

Tornou-se ela, a grande musa mediática destes tempos: alimentava-se de espinafres e champanhe, recebia convidados deitada na banheira, e rejeitando as aulas de Ballet que tinha tido desde a infância, preferia as danças, chamadas de balcão, com soldados famintos, em clubes nocturnos.

Mas há sempre uma diferença entre aquilo em que se quer acreditar e aquilo que se é.

Scott, fervoroso adepto e companheiro destas revoluções, nunca deixou de ter a sua origem católica irlandesa, logo ultra conservadora, nas veias do comportamento.

Zelda substituiu a dança pela pintura , Scott insurgiu-se quanto à capacidade da mulher para criar ou trabalhar.


Criativo, para o publico, e a levar dinheiro para casa, só ele.

Hemingway, grande amigo de Fitzgerald, escreveu cartas e artigos a segredar em altos berros que, como vingança, Zelda instigava o marido a beber, mais ainda, como forma de lhe destruir a capacidade de escrita.

Dorothy Parker, também escritora de relativo sucesso, chamando-o sempre (até no funeral) de son-of-a-bitch, contava as formas maquiavélicas que Scott arranjava para destruir a auto estima da mulher. Percebia-lhe as brechas na alma e, em momento oportuno, colocava nelas pólvora. Seguiam-se cenas de fogo de artifício destemperado.

Zelda, escrevia artigos para revistas femininas e outras, a denunciar os plágios que o marido fazia dos seus diários, sem contar com o aproveitamento da sua literal pessoa para as personagens de romances e contos. Nas festas, tratava-o publicamente por piece-of-shit.

A situação agravou-se quando o casal, protagonizado pelo escritor melhor pago do mundo, submergiu em dívidas. Já estavam em Paris, como muitos outros americanos, na ilusão de manter, na Europa, a vida, sem horas, de alta sociedade que tinham conseguido nos Estados Unidos.

Nesta cidade, Zelda aos 27 anos (vinte e sete), acordou o seu maior sonho entretanto adormecido: o de ser bailarina clássica.

Contratou um “honestíssimo” professor russo de Ballet (estavam em moda na altura) e até lhe ser diagnosticada esquizofrenia e ser internada, sofreu oito a dez horas de aulas inúteis por dia.


Não sei se conseguiu actualizar o treino muscular e ósseo tão tardio… através dos choques eléctricos e outros tratamentos iguais em crueldade, em voga.

Scott começou a vender prosa para todo o lado e mais algum para lhe pagar os tratamentos psiquiátricos.

Começou a introduzir, nos contos, personagens ligadas ao bailado. E sempre a vaguear entre o fascínio pela beleza e o repúdio por um mundo que o excluia. Veja-se o Estranho Caso de Benjamin Button, por exemplo.


Entretanto, Zelda tinha escrito um livro autobiográfico, o tal Save Me the Waltz.

Existem duas versões: uma, em manuscrito dado por ela a um editor, e outra, dactilografada, entregue por Scott a um outro editor,a pedido dela.

Zelda veio a descobrir que Scott, tinha corrigido e alterado a sua escrita.

A critica elogiou o produto inalterado.

Fitzgerald, em várias cartas, convenceu os médicos e editores que escrever derretia o já frágil estado de saúde mental da mulher.

Na guerra de Scott pelo protagonismo absoluto, Zelda perdeu. O seu livro foi remetido para a sombra. Nem a publicidade elogiosa na revista Vogue lhe deu luz.

Scott ia-se afundando cada vez mais no álcool, nas drogas e na solidão.


Os amigos foram afastados pelos constantes pedidos de dinheiro, pelo circo patético de encontros de amor fogoso alternados com reboscadas estratégias de mutua destruição.

Scott Fitzgerald, morreu novo, aos 44 anos, completamente afogado, de dentro para fora, no seu sustento: o liquor.

Zelda, oito anos mais tarde, ardeu o corpo e a alma no elemento que sempre lhe foi atribuído: o fogo.

Foi liberta do estatuto teimoso de sombra nos anos sessenta (embora só nos noventa começasse a ser estudada de forma mais desapaixonada e isenta).

Tornou-se um ícone de vitimização exemplificativa para as feministas mais radicais.



Foi, conjuntamente com Marilyn Monroe, alimento para literatura trágica de cordel.

Foi inspiração para escritores, coreógrafos sensatos e diva para outros que achavam que... para dançar era preciso provocar loucura e sofrimento nos bailarinos, tendo como agente, entre outros, o LSD.


Nas companhias mais institucionais, sobretudo americanas, foi sempre apresentada como modelo a não seguir. Em circunstancia alguma.

Muitos estilistas têm desenhado colecções temáticas tendo-a em mente.



Subi ao sótão, reli a citação dela, sozinha a meio da página, antes do começo do livro Tender is the night, de Scott Fitzgerald que, se bem me lembro, melhor a retrata :

Nobody has ever measured, not even poets, how much the heart can hold.

Onde terei posto o livro com a correspondência entre eles?
Prometi-me, pela milionésima vez, lembro-me agora, arrumar todos os meus queridos escritores americanos. Juntos.

Apaguei a luz e desci as escadas.

Lá fora, umas nuvens planas e pontiagudas pareciam apunhalar o azul, já de dia moribundo, no céu.



17 comentários:

Teresa Durães disse...

Marguerite Duras dizia que não se devia misturar os livros com os amantes pois os segundos tinham ciumes dos primeiros

Lizzie disse...

Teresa:

sejam livros ou outra obra qualquer (ou profissão absorvente), existem sempre pontas de ciumes pela simples razão que os artistas, cientistas e etc, dedicam muita atenção e tempo ao que fazem.

Os espanhóis têm uma expressão deliciosa para definir a dificuldade de viver com alguém artista porque:

TIENEN PAJAROS POR DEMÁS EN LA CABEZA
:)

Aqui, o problema, era um bocadinho diferente: eram os dois artistas e ele não suportava a ideia de ela ser considerada melhor nem mais versátil.

Ela achava que o metia num chinelo em termos de criatividade.

Segundo dizem, eram os dois modelos de um superior egocentrismo e egoismo.

Isto para além de outros enquadramentos, claro.

Teresa Durães disse...

Tal Frida? :)

Lizzie disse...

Teresa:

tanto quanto sei, apesar da doença, a Zelda Fitzgerald, tinha mais força.

Há muitos anos atrás, tive que lhe ler todos os escritos e era mulher de não vergar ao "poder", muito menos ao masculino. Não se punha a questão homem/mulher.

A Frida, apesar de revolucionária e bissexual (enfim...talvez até para agradar-excitar-ao seu Diego, o pançudo, que adorava vê-la em intimidades com mulheres), nunca perdeu a submissão "institucional" e interior face ao homem-homem. Para ela, ele foi-lhe sempre superior. Como outros homens o foram.

Casos, mais ou menos semelhantes, cada um com as suas especificidades, foram a bailarina Olga Khokova e a pintora e fotógrafa Dora Maar, ambas do Picasso. E Camile Claudel do Rodin, embora anterior na época histórica.

Curiosamente, em muitas artistas norte americanas, em vários campos, a situação foi inversa. Melhor explicando, os homens, maridos ou amantes, que se adaptassem aos "demasiados pássaros na cabeça". Elas praticaram em pleno e com autonomia a sua arte. E sem chorarem vitimizações.

Tudo começou pelas "amizades bostonianas". Já, sobre isso botei post.

Claro que para muitos, como André Breton e Picasso (benditos Miró, Klee, p.ex.), hum, eram masculinas: feminilidade=submissão natural:
homem= sensibilidade agressiva e criativa,
mulher=sensibilidade passiva e maternal.

Assim mais ou menos, acho eu. Dava pano para mangas.

Haddock disse...

lá está! não é por acaso que sempre defendemos que só se deve desposar uma pessoa intelectualmente mais fraquinha!! até pode ganhar mais do que nós ou simplesmente "por nós" (isso dependerá do orgulho de cada um...), mas tem de nos admirar!!

esperto foi o arthur miller, que catrapiscou a monroe para umas voltas (sacramentadas) e que até concebeu "the misfits" a pensar nela, para lhe dar alguma credibilidade dramática (a ela ou a ele...).

pronto, confessamos: nunca fomos especiais admiradores da loira.
e também nunca pensámos ser da elisabeth taylor, mas depois do "quem quem medo do lobo mau", rendemo-nos (por instantes)!! casório atribulado esse, também...

e só nos assaltam exemplos,
que vão da princesa de gales à helena vieira da silva, em
associações ligeiramente esquizofrénicas...



vénia...

so lonely disse...

Lizzie,

Gostaria de ter, em ramos mais antigos da minha árvore genealógica,
uma, ou mais enciclopédias das quais eu tivesse herdado algum, muito, conhecimento, a fim de poder estar à altura do que por aqui se escreve.
Lembro-me quando aqui venho de um filme que vi há muitos anos "the singer not the song" (não me recordo to título em português, mas traía totalmente a ideia do t´tulo original), filme esse em que se perguntava se o valor estava na religião (igreja) ou se estaria no padre que a transmitia aos fiéis.

É exactamente o que me pergunto quando aqui venho: qual o maior valor, o dos temas aqui tratados (que acho sempre interessantes e com os quais aprendo sempre) ou a forma como são contados?

E, a minha conclusão é sempre a mesma: the singer, not the song.

e, como diria o capitão,

vénia...

so lonely disse...

E, pela minha parte, pássaros na cabeça nunca sinto que tenho demais, o meu problema é quando começam a cantar muitos ao mesmo tempo...

Alien8 disse...

Lizzie,

Duas figuras à altura da época, desenhadas por ela e influenciando-a.

O egocentrismo dos autores e artistas :) e a eterna luta pela supremacia. O certo é que, da Zelda, nunca li nada... e pouco ou nada sabia, até ler o teu texto - que, já agora, ilustra perfeitamente a Jazz Age, ou como queiram chamar-lhe, desde o esquema geral a certas particularidades, passando por uma das muitas lutas entre apaixonados pelos outros e por si próprios.

Beijos e uma boa semana!

isabel mendes ferreira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lizzie disse...

Capitão:

Credo, conseguimos lá nós imaginar-vos imerso em vossos pensamentos e a terdes por companhia conjuge cantando

"afinal havia outra
e eu nãoooo sabiaaaaa..."

"Oh malhão malhão
(pum pum pum)
que vida é a tua
comer e beber...."

"....mas não fiques com ela..."

e vós, debruçado sobre o Menino da Lágrima,tentando estabelecer ligação patafísica com a Arte Pop e a "música animal" e ouvirdes

Oh Ádoqui, Ádoquí, filho, atão desde ca nos saiu o êro milhões na precisas de pensar, filho.
Ai quintiligenti qué este mê home.Muto magica ele. Já em catraio sabia de cór as linhas e os horários dos quimboios, mais dos rios e afluentes de Portugal, Angola e Moçambique.


Somos de achar que o ideal é a igualdade mas sem concorrência psicótica, nem domínios.Companhia com estímulo. E vice versa.

Fomos de ter senhorio que era homem interessante e interessado casado com mulher possessiva e afecta aos jornais do incrivel e do crime (que também os existem na estranja) e ficou o desgraçado carregado de pastilhas, porque não é de divórcios, ainda para mais já sendo velhote.

Ai Capitão, nós que só íamos pagar a renda,já virávamos Hitchcock, Kubrick em imaginação...:)

Somos de gostar da Taylor, sobretudo depois da gata aos pulos na chapa de zinco aquecida;

da loira, enfim, não apreciamos mas suspeitamos, pelo que sabemos, que a história anda muito incompleta (haveremos de postar);

não era preciso ser vidente para ver o resultado da união de Lady Diana.

Simplesmente esquizofrénico, lembramo-nos, ainda, do suplício da mulher de Einstein. Ter-lhe-íamos cortado o bigode rente e perderia a força como Sansão.
(aqui, onde nos ledes, somos de ser aguerridas, mas não tanto como Zelda)


Continência

Lizzie disse...

e Capitão

os ingleses têm um dito:

BIRDS OF SAME FEATHER
MUST FLY TOGETHER

Serve para tudo, sobretudo para os casórios.Regra geral, claro.


Continência outra vez

Lizzie disse...

Milady:

Quando os pássaros cantarem todos de uma vez, tente colocá-los em grupos:
sopranos
mezzo sopranos
contraltos
...

e talvez do canto polifónico, qual contraponto, saia música harmoniosa.

Imagine o aborrecido que seria se todos fossem monocórdicos.
Não acredito,Senhora,que saia criação se todos tiverem a mesma e única voz.

Não me lembro de ter visto tal filme, não Senhora, mas acho que por melhor que seja a voz, nada brilha se a canção não for boa.
Neste mundo anda tudo interligado e, quanto mais não seja, pela curiosidade,umas coisas levam às outras.

Enciclopédia, Milady?
Queria ter um adn folhado? Quiçá, já amarelecido e puído pela traça?


Agradecida, como sempre.

Lizzie disse...

Alien:

pois, as situações dependem sempre das épocas,ou,no caso de pessoas "excepcionais", talvez nem tanto. Tens razão: é problema eterno.

Falei deste simpático casalinho, porque encontrei o livro. Mas outros existiram, talvez menos trágicos, é certo, mas também com uma boa dose de luta.
Muitas vezes não era (é) a competição pela prevalência do nome, mas pela falta de atenção exclusiva. Tomada como desamor. Um sente-se desprezado, o outro invadido.

"Conheci" a Zelda relativamente bem:)Pelo menos tentei conhecê-la.

Nas "cartas", que afinal estão em terras de Castela, nota-se, de facto uma paixão longa. Destrutiva, mas sempre presente.

Como diria o Fitzgerald, eram unidos pela loucura e separados pela sensatez.

Aqui botei só um bocadinho da jazz age.
É um período quase inesgotável. Para ser descoberto por capítulos.

E tal como a Zelda, há muitas escritoras, que só há poucos anos, estão a ser levadas a sério.

Muitas escreveram com pseudóminos masculinos, sobretudo na Europa. Era mais fácil.




Abraço duplo e boa semana

Haddock disse...

credão, lizzie!! só nos referíamos a um cônjuge intelectualmente mais fraquinho; não a um completamente debilóide!!! aí nem seria preciso a sofisticação de um hitchcock ou de um kubrick para adivinhar o responsável por um voo picado com final estatelado em plena via pública!!

e o dito é inspirador, mas nós temos um problema com passaredo... receamos até que ao trauma não tenha sido indiferente o alfredo.

Arábica disse...

Lizzie,


um prazer, ir descobrindo através dos teus olhos estes encontros pontuados a fogo.

Mais tarde, talvez fogo fátuo, quando a destruição alcança já a luz do outro, enquanto individuo.

Há quem se sinta irrediavelmente seduzida e quem, a seu tempo, torça o nariz.

Pois que todos os pássaros tenham espaço.

E quem os admire e respeite.
Mutuamente.

Um abraço, virtualmente atrasado.

Frioleiras disse...

soberbos (sempre)

estes textos!!!!!!!!!!!!!

um bj...

Frioleiras disse...

E da Alma Mahler?

que dizer dela em relação aos seus "homens".........