quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Vai este ser escrito ainda com memória de areia nos pés, lonjura nos olhos, mar nos ouvidos mais mãos soltas numa alma a pender para o doido e com o sorriso de me terem dito, a meio caminho entre o elogio e o suave e carinhoso insulto, que estava, sentada ali nos degraus da casa a ouvir o lado infantil de mim, com escenas y semblante de Buster Keaton (em espanhol Bústér Kêatón), um dos meus actores preferidos de sempre e arredores.


A difícil arte de suster o tempo com…um ligeiro intervalo,
por supuesto

seja ele, o tempo, interior ou exterior que toda a gente sabe que são relógios com ponteiros de velocidades diferentes e que, de vez em quando, para que um funcione é preciso dar corda e limpar o outro porque a alma não bate assim tão certa como um aparelho suíço do mais fiável quartzo e pilha engendrada no rigor electrónico.



O mecanismo da minha alma precisa da hidratação de um mar insubmisso. Um mar que embebedado pelo firmamento nocturno arraste a areia e lhe modifique o leito como um Deus, daqueles clássicos, que revelavam o temor à fragilidade dos homens.




Um mar que deixa rastos de lagos como se fosse generoso ou herói cansado,




um mar que veste a paisagem com cor de donzela pacata, suave e distante na sua ignorância do mundo,


um mar que escreve e esculpe nas falésias os segredos antigos de quem foi condenado à imensa e eterna viagem,


que deixa, a céu aberto e sem pudor algum nas paredes, muros e chão, os cadáveres laminados dos habitantes a quem gerou e deu asilo. As conchas parecem vidas já vazias de pensamentos.


E as gaivotas, ali, em voos rasantes, parecem amantes ciumentas, a defender o intimo corpo do oceano.



Mas o bater dos minutos e das horas sincronizadas com o mundo voltou. Era domingo à noite.

Juntaram-se vários da mesma fala, ou de fala emprestada como é o meu caso, que espanhol que se preze tem íman que atrai os demais nem que seja só pelo olhar.

Juntamo-nos todos em redor de aparelho incompatível com a música do mar, com o pão manual e fumegante do pequeno almoço, com o sabor salgado do peixe grelhado por mestre (não chefe) Aníbal, com o colorido do mercado da fruta, com a terapêutica da rebentação das ondas nos pés magoados, com as conversas de quem, por vocação e profissão se inventa na tortura ou no riso.



E embora o sentido critico diga a toda a gente que um Óscar sai de muitas conjuras exteriores à arte dramática seja ela primeira ou sétima, que americano que se preze fica fascinado com a desordem latina que corre nas veias de qualquer espanhola, ainda por cima de Madrid, que uma americana estacionada há muitos naquela capital e eu digamos que não é preciso cinema para que, por exemplo

num supermercado ou livraria em vez do português ai que chatice, este miúdo dá-me cabo da cabeça ou do i´m tired up, take it easy child , se ouça um desgrenhado recheado de gestos amplos, e não necessariamente iletrado ou de bairro de lata ay la puta madre qué te voy a romper los cuernos en un santíamen, hijo de mi alma.

ninguém deixa de exultar quando se ouve o nome de La Penélope,


como ninguém deixa de se comover com as lágrimas embevecidas da mãe, com as referências a quem a pôs ali.

A memória corre-nos para a também madrilena Curri,



a professora de Ballet que, lá nos primórdios da primeira idade e sem fama nem glória, na sombra tem ensinado os primeiríssimos passos das artes performativas a alguns vocacionados para qualquer tipo de palco. Bem acertou quando previu que La Pene haveria de respirar público, como não se enganou quando disse à agora ali sentada ao meu lado, que mais tarde ou mais cedo haveria de lhe explodir a garra flamenca no sangue.

No dia a seguir, em conluio com o sol mascarado de maresia, as horas voltam a parecer lentas, sonolentas de sesta, com a calma idílica de um postal ilustrado.
Só no dia a seguir àquele, as curvas vão escondendo a pausa. Longe das folias pagãs.



Começa a ditadura dos dias sobre a liberdade das noites. Não tardará muito, não tardará mesmo nada que a poluição adulta encha de pó os cantos mais recônditos dos caminhos que levam o tempo ao pulsar do coração.



O mar fará o favor de ser eterno



e não há nada que não se defina pelo seu contrário.

(e já agora vou tentar botar, para além de trinta segundos, uma copla bem espanhola da espanholíssima Lola Flores que é muito do gosto da muito espanhola La Pene e que ainda há pouco tempo uma espanhola de 3/4 de empréstimo, ou seja eu, em tempo de limpeza do relógio interior, tentou fazer playback imitativo, custando-lhe tal heresia o embate de três ou mais almofadas na cabeça, em cena digna de Óscar para o melhor filme estrangeiro.)




ay pena, penita, pena - lola flores

15 comentários:

Miguel Batista disse...

sim estava a falar do Henry Ford. nao falei directamente das fardas, mas como tive uma cadeira de historia do design em simultaneo com os alunos de moda, acabamos por falar tb de alguns aspectos na area do vestuario, libertaçao do espartilho, estilizaçao das vestes, etc( nao chamo á moda design para nao cair no erro de enquadrar a moda na area do design, pois se fosse esse o caso, entao teriamos mau design nos que se refere as bases do design).
defendo mais que tudo que as areas criativas, a semelhança de muitas outras, sofrem drande influencia da época k se vive, logo nao é de estranhar, que duas pessoas de pontos diferentes e em areas diferentes, desenvolvam pontos em comum...

dark kisses

Emma Larbos disse...

E se na Páscoa estiver a chover? Como é que poderemos fazer mais uma destas viagens para fora do tempo, de regresso às costuras da alma? Saberá o S.Pedro da importância de descoser a alma, virar o pano do avesso, sacudir-lhe o cotão e lavar-lhe as manchas de suor?
E para que serviria o mar se não precisássemos tanto dele?

Dormi tanto e tão bem nestes dias que não vi os óscares. Ouvi dizer que a Penélope se saíu muy bien e por mim la chica está de parabéns, que me gusta mucho.

Emma Larbos disse...

Ah! E aquela gaivota?
Estou lá com ela, tu é que não fizeste bem o zoom, senão via-se eu ali de asa dada, a beber salpicos de ondas!

Arábica disse...

Lizzie,

felizmente o sol não escolheu entre mar e rio e as gaivotas, também ainda indisciplinadas como as águas, não se decidiram todas pela areia reinventada de cada nova maré cheia...

Assim, entre a indomável vaga e a mansa foz, foi-me possível também gozar o pagão ritual do sol...

E comover-me com a Penelope e aplaudir o Sean Penn e ficar ainda a pensar, como a vida nos ensina as respostas, pelos caminhos mais misteriosos, caso a vivamos de olhos abertos e predispostos a reconhecer os detalhes marcantes...

O relógio, esse, cumpre também o seu papel no palco...uns dias mestre, outros, aluno dedicado à sabedoria do Tempo...

E com este céu aberto, não nos sentimos todos, pelo menos um pouco, relógios de sol, entre a ousadia do astro e a fuga da sombra dos ponteiros?

Beijinhos, Lizzie Zizzie, adulta mascarada de criança :)) e às vezes ao contrario e às vezes ambas, sentadas nos degraus ao sol...

Haddock disse...

bem... é natural que comecem a notar-se, com indiscreta evidência, filamentos brancos em nossas barbas, pois de cada vez que vos visitamos tropeçamos em motivos *asteriscais*, ainda que fugazes... salvou-vos, lizzie, o intervalo cocosiano, que muito apreciámos, ou teríamos dado de frosques, amuados!!
mas estamos agora em estado augado ante a miragem de um peixinho grelhado em cenário pitorisco... não se faz!!
e, quanto à penélope, não vimos a película mas olé!!

vénia...

Alien8 disse...

Lizzie,

Ao som desta magnífica copla que não é a "Mi niña Lola" nem a mi niña Lola, fui-me extasiando com as imagens, coisa que, quando aqui venho, é fatal!

Também eu gosto do Pamplinas, perdão Bústér Kêatón! E do mar, e dos grelhados de um Mestre (embora também não desdenhe os de um Chefe...).

A Penélope, por acaso vi-a nos Óscares. Falou bem, foi digna, e aquele final em espanhol, sim senhor! Se mereceu ou não o prémio, isso já não sei, que me é difícil comparar. Digamos que sim, elas e várias outras.

O teu texto... bem, confesso que me gustó mucho, o que também é natural.

Também lá para as bandas da ria de Aveiro, na costa piscatória e entre a gente do mar, pescadores e varinas, gente de olhos azuis e verdes em larga proporção, onde se diz

" - Eh mãe, queijo é tão bom!
- Ah, rico filho, quem deu-te?
- Bi comêri!"
,

também se usam coisas como

Ah, mê rico filho da puta que te como os olhos!" - como expressão de carinho de mãe para filho, já se vê!

O que me fizeste lembrar!

Um abraço!

Teresa Durães disse...

apropósito de espanholas, ando a derivar num livro sobre a guerra civil que tanta curiosidade me desperta

Lizzie disse...

Angells:
também me pareceu que estavas a falar do Henry Ford. Tanto ele como a Chanel são frutos da revolução industrial, da urbanidade.Todas as artes foram influenciadas por ela.

A moda não cabe nas definições clássicas de design e de arte. Mas pode tocar os dois pólos.
Por acaso, ainda este fim de semana estive a discutir isso.
Quanto a mim, as definições são estáticas mas os fenómenos que definem não são.Espartilhar estas actividades pode ser redutor.
Passa-se o mesmo em relação à dança.
Enfim, questão que dá pano para mangas.

dark kiss

Lizzie disse...

Emma Mía:

cá para mim o S. Pedro anda de neura: no fim de semana voltei ao mar para dar lustro à engrenagem do relógio e acabei a bater o dente. Valeu-me a lareira e o concerto entre o crepitar do fogo e a fúria das ondas. São sons que casam muitíssimo bem e convidam a histórias. Lá vem a minha costela inglesa.

Costuma-se dizer que carnaval em casa, Páscoa na rua. Olha se valer para o contrário...

Ia jurar que te tinha visto às cavalitas na gaivota e que te tinha ouvido o riso. No último instante deste um pulo para o laguinho.

Escusas de me encandear com a brancura Tide da tua alma.

Também me fartei de dormir a horas habitualmente proíbidas. Que grandes sestas. Não imaginas o que o mar cantou ao ouvido para me embalar. Como os sonhos me voaram para longe.

E ninguém vai acreditar que não combinámos a andança.

Lizzie disse...

Arábica:
o sol, quando as nuvens o deixam, é muito generoso e dá-se muito bem com a água, seja qual fôr o leito onde corra.
Desta vez apeteceu-me mais o mar trabalhador furioso na transformação da terra. Apeteceu-me uma natureza bruta,
não domesticada por deuses simpáticos.

Segundo fontes geralmente bem informadas, não me mascaro de criança: está cá e acordo-a. Ou ela acorda sózinha. É só preciso ter a visão de um parque infantil a jeito:))
Dizem que é coisa contagiosa e que com essa doença se descobrem coisas a que os totalmente adultos são cegos.
É a ilusión, coño.

La Pene já tinha o destino escrito: ainda muito pequena já inventava personagens e teatros mesmo no modesto salão de cabeleireira da mãe. E se os cabeleireiros têm boa matéria prima de personagens...
Comovi-me porque me lembrei do percurso e de muitas histórias caseiras, aquelas que não são mascaradas pelo marketing e pelas revistas cor de rosa.

Besos .

Lizzie disse...

Discreto e charmoso grisalho Capitão:

Não será de todo nossa intenção branquear-vos a farta barba com asteriscos, pois, se bem vos lembrais, tanto nós como a Maria Papoila, somos convosco coincidentes nas alergias. E logo o C*******, cruzes, vá de retro, que não nos chega a infância a tanto.

Em vossa honra, quando tivérmos tempo, falaremos da antítese chaneliana. Fica o quadro, já agora, completo.

Se não haveis visto a película, em nossa modesta opinião, também não haveis perdido grande coisa. La Penélope já teve desempenhos bem melhores até em cenas não passadas nas lusitanas salas.
Achamos que o óscar vale por essas tais.

E para vos alegrar sempre vos dizemos que salvámos, há bocado, do lixo, um volume de 1967 com as vossas aventuras encadernadas: tintin a revista dos jovens dos 7 aos 77 anos. Preço 5 escudos.
Vêde que não tivémos coragem de vos deixar aterrar num contentor na companhia de Modeste e Pompon (mais baratos que vós: 4 escudos) Conheceis?

Continência comovida.

Lizzie disse...

Alien:

clicando nas palavras castanhas que estão em baixo daquele quadro horroroso do Imeen, verás que lá botei o mi niña Lola da Buika. Se passa dos 30", isso já não sei. Mas espero que sim.

Estou como a Emma: enferruja-se-me o relógio e vou espreitar o mar nas imagens.

Quanto a mestres e a chefes: pois o primeiro é um velhote ex pescador e mestre de barcaça que agora virou cozinheiro duma tasca simpática e acolhedora sem luxo algum mas muito asseada. Vem por oposição a um segundo, com a categoria de Chefe que cozinha um peixe supostamente grelhado. É que no meio de tanto molho, decoração e nomenclatura francesa mal se dá por ele. E toda a gente é de muito alimento:)) Até os rabanetes são do tamanho de azeitonas.

Também gostei do discurso da Pene. E aquela parte em castelhano, bueno, nos ha dado mucha comocíon. Nos ha tocado en nuestros adentros como si fuera la chica família, no?
Nosotros somos de lo más sentimental que puedas creerte.

E eu a pensar que só os espanhóis e os portuenses, carago, é que eram desbocados e asneirentos...até na Ria de Aveiro!
Também misturam raiva com amor?
E também depende do tom de voz a distinção entre zanga zangada e ternura?


Obrigada e abraços para ti e para tú niña Lola.

Lizzie disse...

Teresa:

já derivei por vários, quase todos fascinantes, alguns escritos por mulheres, com a visão femenina dos factos.

Editaram-se agora uma série de autores esquecidos e, passado um certo luto, muita gente está a escrever sobre a guerra.

Felizmente, tenho a facilidade de os ler em espanhol. Fico sempre irritada com as más traduções. Existem expressões em castelhano, com asneiras incluídas, que quando traduzidas literalmente para português, resultam em ordinarice e não correspondem ao sentido que têm na língua materna.

Arábica disse...

Eu sei o que é ter uma criança dentro de nós, que não resiste a um balouço :)

Os guarda jardins de Chaves que não saibam que aqui estou :)

Quando digo mascarar digo: deixar a criança sair e tomar conta por inteiro.

É assi que às vezes faço: quando me sento no chão com a neta.


A mim emociou-me a emoção, a paixão da sua voz, dos seus olhos.

Tal como Sean Penn me tinha emocionado com a sua interpretação, um mês antes.

Beijos e um bom dia :)

Anónimo disse...

Por supuesto,tiquetaca ainda a tua alma sempre na reconhecível hidratação engenhosa e geniosa. Zona bem demarcada.:)
É bom embebedar-me nestas firmes folias do teu imaginário, mais este doc das terras de Palmela, afortunadamente encontrado em preço anti-crise.
Assim, no dia irreverente, deixo-me navegar, molhar, afundar na jangada ibérica, em vez de nas profundas obrigações de que nem o menino jasus precisou para ser feliz (incluindo as bibliotecas).

Em cuidadosa fermentação de prazer, tua
Compreensiva de Delírios