quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Tierra, cuerpo, langor, locura, soledad






Fica a vontade lassa e abandonada, nada parece ter princípio nem fim e o meio é um vaguear apático e sonolento. Ficam os olhos de outra cor, quase cegos de tanta luz. Espreguiça-se o corpo e quase se toca as labaredas do sol.

Estradas rectas de ninguém. Vastidão imensa onde ensaiamos gritos. Porque nos dá vontade de gritar. É paisagem que convida ao exorcismo. E os gritos lá hão-de ficar a pairar. Talvez cheguem ao Sangre de Cristo, a um dos seus picos, onde eram, por vontade própria, abandonados os corpos vivos dos velhos homens que decidiam morrer. Levados em dança, deitados à espera que o Pai Céu mandasse os espíritos que os levariam.

De vez em quando lá surgem as bombas de gasolina com os móteis. Sítios de encontro para gente que nunca se conheceu, ou acabou de casar, ou assume solidão sem poiso, está de aventura ou viagem. Uns com ar de sábios, outros de loucos, outros indefinidos a pender entre uma e outra coisa.







Se se fizer um desvio, andam por ali morte e vida de mão dada. Expostas ou escondidas. De uma gruta, pode sair animal, e, se nela entrarmos podemos ouvir um grito tão agudo que todo o corpo estremece. Ninguém nos manda perturbar os espíritos latentes, provavelmente de algum espanhol de deus fixo ali supliciado.






Noutras parece que entramos na luz aberta de um quadro da O´Keeffe.





Ao lado de um esqueleto de branco puro, pode estar a exuberância, e a sensualidade de uma flor vermelha. No meio da areia ou pedra maior pode aparecer uma árvore frondosa com pássaros de todas as cores. Chilrrear contente. De um buraco na terra, pode surgir fio de água aos soluços. Gelada e cristalina. Andando ao acaso, encontram-se restos de vida de todas as espécies










E é importante que se ouça o som dos passos. Tão audível e indiscreto. Como se se pisasse brita. Todo o chão é mistério.


Antigamente, as muitas tribos de índios, escolhiam os ouvidores: deitados no chão, na Mãe Terra, ouviam os invasores pela vibração. Todos guerreavam pela terra de onde, por buraco ou gruta, corresse água.

Também de repente, as nuvens que foram mulheres doces podem encher o céu e dar a benesse da chuva. Muito se dançou para isso e rompendo o sol outra vez, no que era baça areia, surge um tapete de flores e viçoso pasto. E a orgia de cheiros não se descreve. É coisa para invadir toda a pele. E de olhos fechados.

E também de repente pode surgir um lago gigantesco e limpo, refúgio de solidões sem aparatos, como a de Greta Garbo. Naquela vastidão, ninguém se sente oprimido pelo nome e talvez seja repouso para a memória da própria história..




Ou no meio de nada, um rancho, recheado de gente de poucas palavras, a duvidar de turísticos estranhos.





Aliás, os índios, ou o que resta deles, depois de parcialmente destruídos por espanhóis e cowboys, falam pouco. São considerados altivos, arrogantes, orgulhosos. E quando falam são de difícil entendimento: o vento que soprou no nariz da montanha, fez lembrar ao Pai Céu que nas entranhas da Mãe Terra, as flores fecharam as pétalas.
Mas também são defensores do silêncio alheio. Não interferem. Falam da cabeça de cada um como uma outra terra dentro da primeira. Soberana e livre. Talvez por todos estes silêncios, tanto criador de grande urbe fuja para aquela terra e seja contagiado pela magnitude daquele sossego. O que dá o horizonte sem limites.





Os deuses parecem aceitar as loucuras que os homens condenam.

Toda a mitologia girava, e ainda gira, à volta da Mãe Terra, remetendo para as mulheres. Quando alguma chega à puberdade, os homens cavam um buraco no chão . Hão-de dançar, à volta dele, como festejo, quatro dias e quatro noites. Em círculo. A rapariga há-de escolher o marido. Chega a altura sagrada de "dar vida à flor". E a mãe dela há-de vigiar o genro, por legítimo direito legado pelos deuses. Ao contrário destes nossos lados, se os filhos não aparecerem, considera-se que o defeito é dos homens.




A maior parte das tribos não tem linguagem escrita. Conta tradições oralmente,ou através da dança, das artes plásticas.





É quase sempre a vida contida no ventre das mulheres. Os filhos são paridos de cócoras, para que sangue e águas sejam oferecidas à terra, em comunicação vertical com o céu. Também gotas de leite háo-de ser aspergidas no solo. Em Santa Fé rezam a estas montanhas de feminino traço. A dançar.





Porque tudo se dança. Até no pôr do sol, quando o calor insuportável dá lugar ao frio e o Pai Céu se veste de sangue para ir dormir.











Ali, são as pessoas que se adaptam à natureza e não a natureza às pessoas. E a capacidade de as fêmeas gerarem, com tudo o que isso implica, torna-as sagradas. As mulheres, quando morrem, são enterradas na posição de parto. Uma forma de as devolver. As líderes transformam-se em águias. São as que indicam, lá do voo, a existência de caça ou perigo invasor.

Chega-se a Santa Fé de corpo mole e cabeça zonza. Cidade de rebuliço anárquico. Muita gente de tantos países, tantas cores a desembucar no vermelho e no verde. Somos autorizados a beber cerveja com sumo de limão em quantidade que não fosse perturbar o Lago dos Cisnes em versão contemporânea, naquele teatro que parecia um bloco de barro moldado pelas mãos de um artífice gigante






e ainda tivémos tempo, porque ali o tempo parece preguiçoso, de aprender de viva voz histórias de rituais e mitos. Já tinhamos passado e sentido a aura do Ghost Ranch, morada de Georgia O´Keeffe, agora percebíamos o quanto tudo tinha a haver com os seus pincéis e quando saímos, vendo as danças indígenas, também melhor entendemos palavras e gestos da Martha Graham.

Aquela terra, goste-se ou não, deixa traços na alma, torna-se palco de metáfora para amores ambicionados ou perdidos, para solidões ou euforias, guarda-se nos confins do corpo como uma carícia ou um desprezo.




9 comentários:

Lizzie disse...

Oh minha sobrinha despenteada:
respondo-te já neste.
Lá iremos às casas do Norte, mas por ora, compremos um carro descapotável por tuta e meia, garrafões de água, largos chapéus e vamos estrada fora aos gritos. Que bem sabe gritar e ouvir o eco. É sinal que as montanhas nos ouviram.
Também podemos ir até uma casa, gozar o fogo da lareira, porque havemos de passar por zonas, em que no meio dos sons da noite, também ouvimos o bater dos dentes.
Vamos tomar banho naquela praia à beira do lago lindo. Pode ser que os "espíritos" da Garbo e da Dorothy nos inspirem. E podemos dormir a sesta, debaixo daquelas árvores de folhagem cerrada. A ouvir os saltos que os pequenos peixes dão. Choc, choc, choc.
Daqui a bocado também irá um frango na brasa temperado com ervas do deserto.

Anda lá...

beijinhos.

Lizzie disse...

E Minha-Grande-Sobrinha-Lua-Tesoura-De-Vento esqueceu-se a Tia-Bolacha-Cara-De-Areia-Deslavada de te dizer que não tenhas medo, porque se houver algum problema na Grande-Estrada-A-Caminho-Da-Estrela, aparece guarda ou polícia a dizer moning mam, ou buenos diaz,sabe-se-lá de onde,a pedir o passaporte e a perguntar onde fica Portugal. Depois vai ao carro confirmar que não matámos nem roubámos ninguém e resolve o problema.
É narural que tenha palito ou pauzinho de erva na boca, mas dado o cenário, até nem fica mal.

beijinhos outra vez

Sara França disse...

uau!
espectacular, tipo Telma e Louise, hein? mas sem violações nem homicídios nem suicídios perde um bocado da piada...

e a minha tradução?
assim não dá...


a tia está a desconcentrar-me, mãe!



agora a sério,
magnífica viagem.
obrigada.

feliz saturdayyyyyy!

nnannarella disse...

Sim, Thelma & Louise, mas também, as fantásticas imagens de Edward Hopper e, antes de tudo, os livros de quadradinhos da minha infância, em que os apaches e os cheyennes eram sempre os hiper-maus da fita. (Ainda me lembro de ficar deslumbrada com a magia dos "sinais de fumo"...). :)
Emociona-me saber que o teu sangue (também) português andou por essas memórias quase fictícias de tão longes. E estás esplêndida em fundo rosso, assim como a sozinha escada do teu desenho.
Desconcentrações e desconcentrações! :)

Haddock disse...

como "sem título" se até gostámos dele??

(estamos a referir-nos aqui ao cabeçalho da caixa de esmolas...)

aliás, se nos for permitido um piqueno atrevimento, acrescentaríamos "e pó"...

paisagens espíritas, achamos também, embora não tenhamos tido o privilégio de lhes sentir o vento... (aide que hoje estamos poéticos!!! devemos estar a chocar uma gripe...)

até as achamos intimistas, vejais bem, lizzie, apesar do largo horizonte (aide que hoje estamos pirosos!!!)

pressentimos que ali pouco se fala ou se ri - coisas que nos fazem falta... mas há disposições e disposições...

gostámos imenso! gostámos de ver a lassie e o simulacro do carro da thelma e louise. o vestígio da boneca também nos impressionou. melhor só se fosse um sapato perdido... no pó! (aide que temos de ir tomar um anti-histamínico!!)

vénia...

Emma Larbos disse...

Pois a mim só me lembra Isabel Allende. Não só pela espiritualidade índia, que ela também mitifica, mas porque se me evocou logo a cena de abertura do _Plano Infinito_, com o herói americano de perfil típico a urinar no deserto.

Lizzie disse...

Minha sobrinha e respectiva mãe:
se uma quantidade de criaturas foram capazes de uns resquícios (cheira-me que o acento está mal posto, para variar) de concentração, também a vós não vos escapará.

E Meu Anjo,as tribos principais daquela zona são os apaches e os navajos. Com quem falei mais foi com colega da tribo dos hupys e muitos dos modos de que falei aqui são justamente dessa tribo.
Claro que em cinema e quadradinhos eles eram os maus. Foi de judeus a ideia de criar reservas em que pudessem continuar com os seus hábitos. Uma espécie de jardim zoológico, como diz uma amiga espanhola que também fez a viagem. Mas senão fosse isso, provavelmente, já não restava nada.
Do Hopper, e quejandos, gosto e ainda hei-de explicar porquê.
Olha que a escadinha já tem uns tempos e por ironia do destino, a útima vez que soube dela, estava, com os seus dois metros e trinta de altura, em Albuquerque, também no Novo México. Vê lá tu as voltas que as coisas dão e se esta vida não é um mar de surpresas...

espantos e espantos

Lizzie disse...

Capitão
Pois boa é a vossa sugestão de polvo, ou seja pó. Em tais sítios é farto, sobretudo se fizer vento, que ali não há brisa: ou venteja ou não venteja.
Também gostamos da Lassie. Inveja que temos. Seja qual for o ângulo fica sempre fotogénica.
E tendes razão, com ou sem medicação alérgico-gripal, tais paisagens são intimistas. Sentimo-nos tão perdidos e pequenos que só falamos para dentro. Acreditai que é um deixar ir.
Quanto ainda a silêncios, quem fala pouco são os índios. Têm um olhar que fala pela boca. Quanto ao resto, ajudados pelo "liquor" até achámos que às vezes falavam de mais, tal é a algazarra multilingue.
E não achámos lá muita graça à venda de ossadas nos turísticos mercados, como se de pevides se tratasse. Preferimos os chapéus, mantas índias e potes.
Mas vale a pena.

Continência

Lizzie disse...

Mi Emma
essa necessidade de que falas no deserto plano é um problema. Pouco sítio há de privacidade. Além das cobras e outros rastejantes atemorizadores. Mas é engraçado que na medicina tradicional índia, a mordedura é tratada com o veneno. Felizmente nunca experimentei.
Naquela altura, interessou-me a literatura daquela zona. Personagens incriveis se não tivesse visto alguns ao vivo. Pessoas completamente loucas segundo os nossos parametros.
Há uns anos que, sobretudo Na Universidade de Albuquerque, andam a reunir e sistematizar os hábitos índios. Parece que não é fácil. Parece que são demasiado simbólicos. Como na dança. Outro mundo.