quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O silêncio da nuvem






Lembrámo-nos dela, entre outras coisas, quando em céu limpo, uma nuvem isolada vagueava na luz crua do Alentejo. A luz que bate sem dó nas paredes brancas aqui





ou nos arredores de outra cidade nostálgica e calma dos nossos amores, Filadélfia, onde nasceu, riquíssima, no princípio do séc. XX e por onde deambulou de máquina fotográfica em punho, a tentar decifrar o negro das sombras, moradas tão dela conhecidas, já que reservou a luz para o seu amante Alfred Stieglitz.




Chamava-se Dorothy Stecker, Norman, pelo casamento e deu uso ao dinheiro a fundar galerias de arte, a patrocinar jornais e campanhas pelo fim das desigualdades, discriminações sociais e liberdades cívicas, pela independência da Índia - era amicíssima de Indira Gandhi-e Israel, a fundar editoras como ponte para os autores europeus como Rilke, Mann, Kafka, Malraux, Brecht e mais tantos. Financiou, sem alardes, escolas, teatros e várias companhias de dança contemporânea numa rede que começava no Sul e terminava em Boston.

E tinha a paixão pela fotografia. Era mesmo, para quem lhe conhecia a obra, chamada a Emily Dickinson da dita.

Mas sentia inibição de expor, abafada pelo domínio amoroso de Stieglitz.





Conheceram-se já eram os dois casados, ela com um industrial, ele com Georgia O´Keefee e, mais algumas laterais, sempre com muitos anos de atraso na data de nascimento em relação a ele. Na infindável colecção, parece que nunca teve nenhuma ao redor da mesma idade ou mais velha. Numa carta, para Hemingway, chegou mesmo a dizer que o barro fresco se moldava melhor. Mas mandam os mitos que tais máximas sejam remetidas para notas de pé de página, letra miúda. Em nome da sacralização dos génios.

E Dorothy foi esculpida a gosto até à morte dele. Sempre disponível, às ordens de corpo e alma. Aliás como Rebbeca Strand (mulher do fotógrafo e realizador Paul Strand), outra simultãnea argila em bruto.
Se algumas vozes dizem que ele lhes estimulavam o talento, outras asseguram que as usava para proveito da própria vaidade. Verdade seja dita que em tudo o que então vimos, à excepção posterior de Georgia, os nomes delas vinham sempre como acessórios do dele.
E enquanto o carro vai rodando a distância até ao destino lembramo-nos da exposição monográfica, numa galeria de Boston, dos instantes que ele lhes fotografou. Lembramo-nos do denominador comum a todas elas: o olhar nu e abandonado, triste e quase resignado.


Georgia






Rebecca






E algumas de Dorothy, esta tão infantil




e sobretudo esta, do Fine Arts Museum de Boston que, de tanto fascínio e empatia, comprámos reprodução e que, ainda, todos os dias nos olha, em discurso directo, fechada e protegida em molduras rectas e simples





Após a morte de Stieglitz, Dorothy escreveu-lhe uma biografia devota e adocicada. E, aos poucos depois da alternância entre ascenções e quedas, foi-se libertando da memória e entrou em pleno em todas as actividades que descrevi acima. Fotografou, já com linguagem própria, até que a cegueira lhe tirou a arte.
Fundou em Nova Iorque, uma espécie de casa museu destinada a guardar objectos de simples manufactura comprados em diversos países. Lá está um carrinho de madeira comprado numa feira: Ericeira-Portugal-1959. E uma boneca de trapos: Granada-Spain-1958.

Achou interessante que as companhias de dança fossem corpo de muitas línguas, muitas cores, vários credos, unidos pelo movimento da alma feita suor. E deu dinheiro , em parceria com outras entidades a uma das artes de manutenção e produção mais caras.

Por isso, para lhe celebrar um aniversário, no mesmo dia, com as variações de hora impostas pelos meridianos, estrearam-se, em várias companhias americanas, espectáculos de homenagem.

Num deles, obtou-se por pequenos solos, sem música, palavra ou adereço. Só o arfar da respiração e o arrastar dos pés. Uma ensaiadora já quase octogenária, que muito com ela tinha privado, ia dizendo que Dorothy era pessoa dócil de sorriso afável, simples, discreta e que tinha a leveza de uma nuvem.

Além de uma francesa, uma sueca, uma italiana, uma negra, uma chinesa, uma indiana calhou a uma espanhola, de traços com alguma semelhança, dançar-lhe o drama flamenco dos amores





e a uma portuguesa, o tempo de luto, talvez por ter no sangue o fado, aquela canção de dor que se canta quando tudo o resto fica calado.
Como uma nuvem, que aos noventa e dois anos, de forma serena e quase incógnita, se desfaz no horizonte.





E, há momentos em que parece que o céu, como nós, também envelhece. Assim como a distância, quando se chega ao destino.




20 comentários:

Sara França disse...

ai tia, tantas houve assim
que não há argumento algum
para que ainda haja tontinhas que
o sejam no século vinte e um!

desculpa o versejar cambado
e a toada desafinada
mas contagiaram-me os madrigais
da emma e da mámi ali ao lado!


eheheheheh - beijinhos

Emma Larbos disse...

Há um certo tipo de mulheres que, depois das dores da viuvez, se dão verdadeiramente à luz. Conheço várias. Dá gosto vê-las. Pertencem à geração anterior à nossa e têm certamente uma sorte que as que não enviuvam a tempo desconhecem: a sorte de não precisarem de se ver reflectidas no espelho para saberem que existem.

Madame Maigret disse...

Chére madame Lizzí,sempre oportuna.... Não conheço as madames de que fala mas conheço des atitudes, des sensations, des factes.....Ça c' est un discours que me faz pensar muito, jusqu'á moi même! Mais j' espére me reveiller antes de enviuver!..... :-)Je vous embrasse, bon fin de semaine!

Lizzie disse...

Ai sobrinha, muito versejam vocês que até parece que já chegámos ao St. António.
Pois minha filha lá vão havendo tontinhas. E vê lá tu que estas eram mulheres muito inteligentes fora dos amores.
A mais tontinha era a Rebecca, que servia de pombo correio para ir chamar as outras para o dono.
Aqui para nós, o que teria o homem de especial?
Mas vá lá que a patroa Dorothy se viu livre dele aos 44.
E tenho impressão que irias adorar as fotografias dela mais a casinha de Nova Iorque. Se já te conhecesse nessa altura tinha-me lembrado de ti. Mas assim não me lembrei.

Beijinhos da tia.

Graça Brites disse...

...e, já agora...Lizzie, gostei especialmente deste post. Porque ainda não tinha lido mais que duas ou três linhas sobre a Dorothy e, pelo que contas dela, era mulher de requintado porte e maneira de estar que muito aprecio. Muito interessante a revolução pessoal e a forma de olhar o mundo à sua volta. Uma nuvem discreta, mas poderosa.

Beijinho e bom fim-de-semana.
Cici

Lizzie disse...

Pois Mi Emma, também conheço tantas. Uma, que me é próxima, só vestiu calças depois de ter o marido defunto.
Questões de educação orientada para a falta de identidade própria. Educadas para serem sombra, nunca luz. Depois descobrem que afinal sentem e pensam. São simultãneamente filhas com responsabilidade de mães. Esta Dorothy sentia-se artisticamente imatura e deslumbrada face ao Stieglitz. Por outro lado protegia-o, sobretudo na parte financeira. Via-o como uma criança com birras.
Espertalhão.
Às vezes a "libertação" das mulheres vem da falta de autonomia dos homens.

Lizzie disse...

Chére madame:
é natural que não conheça estas madames. São malheureusement pouco conhecidas na Europa, apesar de Madame Dorothy ser fluente no votre français e ter livrado o coiro a muitos vossos conterrãneos na 2ª guerra.
Espero que votre Jules não coleccione des femmes nem à frente nem atrás do votre nez.
Espero que viva numa certa possível felicidade e que não precise de ver morto, cruzes-canhoto, votre Jules para continuar a ser maravilhosa.
Mas Madame se é o que gostaria de ser, ou se sonha ser outra coisa, só Madame saberá, nas profundezas da V. alma. Que sais je?
Je vous embrasse aussi.

Lizzie disse...

Cici:
já agora, nunca conheci ninguém que dissesse mal da Dorothy. Quem a conheceu sempre referia a simplicidade e a discrição. Odiava protagonismos. Teve a delicadeza de agradecer, individualmente, às companhias que a homenagearam, pedindo desculpa por não poder ver nenhuma por ter cegado (só morreu em 1997).
Acho que irias gostar muito das fotografias dela. Se fores a Boston e a Filadélfia não te esqueças. Transmitem uma certa paz, uma capacidade para olhar e dar história a coisas que ninguém vê. Sempre à volta da luz.

É uma pena que o nome dela seja sempre acessório em relação ao dele,com a referência de "amante de" É uma injustiça. Ela valeu bem por ela.

Beijinhos,bom fim de semana.

Frioleiras disse...

interessante, muito interessante...

Acontece que gosto da Georgia O'Keeffe, que aprendi a gostar, precisamente em Filadelfia, no Philadelphia Museum of art... recordaste-me uma cidade que adoro (adorei...) e onde me senti muito bem e ... as flores
da Georgia...

A. disse...

...

[...e espero que Mi Eli não me cobre o direito da(tão Sua e rara) palavra.]





...grande é o abraço meu.

Haddock disse...

pois que tivemos de confirmar que estávamos em vossos aposentos, lizzie, já que fomos surpreendidos com o "e, já agora...".
e prestámos atenção ao sublinhado das entrelinhas...
que teria o "bigodes" de especial, além de fotografar assim-assim?? freudiana atracção, talvez. aquela amizade confessional como o do porrón no cocuruto também não ajuda...

vénia à benemérita e a vódes...

nnannarella disse...

Bem lembradas, Fri... os jarros, as rosas, as orquídeas.

St. J. disse...

O destino leva longe. E quase parece sina dos nascidos em Hoboken, aquele sítio incaracterístico que apesar de tudo tem a melhor vista para os arranha-céus da grande maçã. Há quem diga que é essa vista que dá às crianças locais largos rasgos. Stieglitz, o Francis Albert ou um largo batalhão de mafiosos - alguns bem mediáticos, que lá nasceram -, foram todos eles virtuosos filhos de Hoboken.

Quanto aos fados, tanto as flores de Georgia, quanto os milhões de Dorothy, nunca terão produzido suficiente emoção no fotógrafo, ao que consta. Terá navegado entre vagas de ciúmes femininos. Mútuos, conhecidos e anónimos. E também pouca dúvida haverá, entre as letras portuguesas, quanto ao efeito devastador da "triste Doroteia", numa altura em que não poupou igualmente os arrebatados corações americanos que se dedicavam ao San Firmin e à Festa Brava. Mas de quem a Doroteia gostava era do fotógrafo do Torso.

Paixões devastadoras e prolongadas que conseguiram contagiar continentes e se infiltram nas relações episódicas que com elas conviveram...

E que ficou disso? Haverá, entre nós, poemas inspirados por esses olhos? Ou livros escritos por causa dessas pronúncias? Ou telas cheias das cores que a fotografia não gostava de captar, teimosa no preto e branco?

Onde choveram as núvens incógnitas, destino de percursos longos, mas plenos de vida...

bj

J.

Lizzie disse...

Frioleiras:
é de se ficar doida,não é? Sabes que sempre admirei a grandiosidade daquela escadaria sem tempo? E a variedade do tipo de pessoas que frequentam os museus americanos. Dão-lhes vida.
Ainda bem que gostaste de Filadélfia. Aprendi a senti-la mais depois de uma viagem obrigatória a Las Vegas. Que pavor de sítio.
Lá irei à Georgia.

Lizzie disse...

Era o que faltava, Passarinho, cobrar-te palavras.Serve-te quando quiseres, sem cerimónia, à vontade. É uma honra ternurenta.
Andei à procura de uma que tu tens, Giselle em azul, lindíssima, aquela do cartaz, mas não encontrei. Era essa que eu queria utilizar, é mais Desartiana do que esta. Mas acho que não faz mal.

Um enorme abraço também para ti.

Lizzie disse...

Capitão:
Pois está claro que deviam andar modas de Freud à mistura, tanto mais que o bigodes era tanto mais amado quanto mais velho e mais autoritário.
As máximas trocadas entre ele e o cabeça sangrenta são um autêntico manual de como raspado o verniz da igualização das mulheres, vem ao de cimo, um institucional modo viril no pensamento.
E felizmente, não temos regra autárquica que nos impeça de mudar o nome à morada.
Continência

Lizzie disse...

Meu Anjo, lá lá irei às flores,
entretanto

ramos e ramos

Lizzie disse...

Xantinho:
além das freudices, estávamos numa época de ruptura com todos os valores anteriores. Um tempo de crescimento, de revolução, de descoberta. O Stieglitz tinha a nova profissão de dealer das artes. Tinha poder na nova indústria das artes. Como ainda hoje qualquer dealer tem.
Não sei se haveriam muitos ciúmes entre elas: aceitavam-no assim, naquela voracidade de viver que se vivia. Era mais considerado pai, que amante. Houve uma que lhe meteu respeito: Martha Graham. E com o tempo, a Georgia. A "Doroteia", para o final da vida dele, enfim, foi coisa óbviamente mais platónico-financeira.
Não me parece que nem ele nem o Hemimngway se comovessem com o fado. Eram mais da ilusão de la sangre viva. Toureiros a provarem que afinal, também, lá muito ao fundo, são gente. Daquela normal que tem coragem de enfrentar cada dia que surge.

abraço

St. J. disse...

Cara Eli,

É por uma boa causa... ;)

Vide:
http://romanvassiliev.blogspot.com

Abraço,

J.

St. J. disse...

E parece-me que a 'passarinho' vai mandar fotos da Giselle pelo correio rápido...