terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O quebranto

ou seja, penso eu, a vontade de não fazer ponta de corno. Coisa que acho da maior legitimidade, mas se alguém discordar, não pense que me vou pôr de argumentos, porque argumentar implica arrumar os pensamentos e os meus, hoje, fazem-me lembrar uma biblioteca depois de varrida por tornado. Não faz mal, eles, os livros, que são votados à sabedoria, que se arrumem sózinhos. Um bocadinho de sentido prático não lhes fará mal nenhum.
Não sei se é mau olhado se é da chuva, que convida à preguiça e ao recolhimento.





E foi com grande esforço que percebi que não tenho poderes de estancar o correr do tempo e que olhei para o relógio e acabei por estacionar. E sair. Por mim ficaria a ver as gotas, romãnticas e lãnguidas a escorrer pelo vidro, a casarem-se umas com as outras de forma, acho eu, aleatória. Nem sequer cometeria a violência furiosa de ligar as escovas. Parece-me tal coisa, mau génio de deus wagneriano, ou vingativo, ou insatisfeito com a obra. E, decididamente hoje não acordei virada para a mística especulativa.

Acordei mais virada para ouvir a música da chuva no tejadilho, aquele prodigioso som visual a lembrar ampliadas magestades.





Cada membro me pesa toneladas de esforço e a mente está solidária no pasmo. Tem o seu direito. Rejeito tudo o que seja celebração quase infantil do movimento. Hoje não me apetece coisa nenhuma que mexa





Ao telefone, a minha voz está enrolada em greve das cordas vocais. Pergunta-me estás tú cabreada, cariño? Terá que esperar que o prólogo, bocejo e seu epílogo, sem esquecer a errata, terminem para que eu explique que não, que estou com o quebranto, com inveja de quem ao longo da eternidade, fique recostada, sem ter que pensar, trabalhar e ainda seja louvada por isso.






Reclamo o direito ao egoismo.Os outros que trabalhem, que procurem a profundidade das coisas. Eu fico-me pela plana superfície. E chega muitíssimo bem.

Lá terei que explicar, a duras penas, que um conhecido alentejano, rapaz culto de trinta e tal anos, me explicou que sofria amiúde de quebranto, que é uma espécie de lazêra, curável com uma reza antiga e que ia à da tia Carmita, senhora de amplos saberes, e que fazendo três vezes o sinal da cruz com o polegar em frente da boca do afectado, enquanto soava lenga-lenga de exorcismo quase certo, o punha como se fosse possuído pelo Red-Bull-dá-te-asas.

Conhecendo-o, mantenho-me céptica. Ele que me perdoe, mas até a cortesia dá trabalho.

Fico a saber, porque guardei a memória em sítio nublado, espécie de cofre-forte da consciência, que Doña Pilar é mais confiante em dar três nós num lenço para que lo temblao fique aprisionado até descobrir a forma de sair outra vez de tal novelo. Convenhamos que é esperto e acaba sempre por sair. Nem furiosa castelhana reza lhe serve de algema. Doña Pilar tem a certeza que se trata de uma das múltiplas formas de mau-olhado. Tem dotes metódicos na classificação do oculto.

E pronto, é tempo de hercúleo esforço. De ir para casa ver qualquer filme estúpido, desde que não seja do Mister Bean. Isto se tiver ânimo para pôr a cabeça para a frente, abrir os olhos e deixar que a imagem entre dentro deles, levando-a para o cérebro. Se ele a vai processar, isso não sei. Para ser franca, também não me interessa.






Talvez amanhã, depois de uma noite de sono, me lembre, de modo mais ou menos conformado com a digna e útil existência, da direcção social e gregariamente correcta a tomar. Talvez me lembre do caminho.






Hoje não me apetece ralhar comigo. Exigo o direito de ser nada.

22 comentários:

St. J. disse...

Pena é que nem todos possam dizer, querer e fazer o mesmo...

E convenhamos que aquilo nem foi uma carga d'água... foi antes um maremoto largado de paraquedas.

Quem me dera um quebranto por cada vez que chega um vendaval. É que me vinha mesmo a calhar...
;))

Frioleiras disse...

pois... coo comentário é daqueles que costumas criticar por estarem a dar "graxa" ... mas é verdade!
gostei e soube-me bem ler este post. (eu adoro chuva, embora ontem o meu carro ficasse praticamente "entalado" num charco, em Monsanto...)

Frioleiras disse...

pois... coo comentário é daqueles que costumas criticar por estarem a dar "graxa" ... mas é verdade!
gostei e soube-me bem ler este post. (eu adoro chuva, embora ontem o meu carro ficasse praticamente "entalado" num charco, em Monsanto...)

Lizzie disse...

E deu o quebranto nesta coisa, que agora que vi que faltava uma palavra, também vi que faltava uma parte do texto. Agora já está completo.



Xantinho, dizer todos podem, fazer é que nem eu sempre que me dá a realissíma gana. Era bom que o quebranto fosse institucionalizado doença com direito a atestado:
- Z não está?
- não Sr. Dr., está de baixa com quebranto!
- ai coitado...
- pois, acontece a qualquer um...ninguém está livre.

E tem razão, tal dilúvio veio de paraquedas, para não se magoar.
Vamos ver, agora, quantas comissões vão ser nomeadas para estudar o problema. E legislar.
Lá irá a ASAE multar o S.Pedro por não ter respeitado as quotas.




Duplicada Frioleiras:
(estou a brincar).
Ele há graxas e graxas. Como ainda estou com o quebranto, não me lembro quais critico. Critiquei as deste género? Parece-me que não.
Também gosto de chuva, quando ela dá duche fresco à terra que anda tão sujinha. Não fiquei entalada, fiquei demorada em fila, chegando ao destino sem perceber a razão evidente de tal espera.Quando consegui mudar de rota parecia domingo. Tudo vazio. À vontade.

Graça Brites disse...

Seja lá do que for, Lizzie, tenho a certeza que é legítima. A tal vontade de não fazer ponta e todas as outras espiritualidades associadas. :-)

Beijinho

Cici

Haddock disse...

subscrevemos as frioleias!!
tomai, também de nós, lizzie, em jeito graxístico (porque não?), os sinceros parabéns pelo "quebranto".
até ouvimos a chuva...
o problema é que depois de vos lermos só nos apetece ceder à indolência... e isso não se faz aos fregueses!!
providenciais um cafezinho, por obséquio??


vénia...

Emma Larbos disse...

Parece que a chuvada foi de noite. Não dei por nada, estava a dormir. De manhã, quando saí havia uma chuvinha molha-tolos nas pedras da calçada até ao metro. Quando cheguei ao meu estabelecimento ouvi umas conversas sobre chuva e cheias muito surpreendentes. Como é que não dei por nada? Com as saudades que eu tenho das cheias no Ribatejo! Aquela lezíria toda transformada em mar... Tudo isso nas ruas de Lisboa e eu não dei por nada?! Vou apresentar uma reclamação à Câmara que se esqueceu de entupir as saídas de água do meu bairro! Nem chegou para me dar um quebranto.
Felizmente que o teu post, Lizzie, me permitiu partilhar um pouco da nostalgia da chuva!

casa de passe disse...

chuva não muito obrigado, afasta-me os clientes cá da casa.


joão

nnannarella disse...

Pois meu Arcanjo, antes de mergulhar no teu quebranto, deixa-me dizer à Emma que a Hidra me disse que sim, que daqui do alto se via enxurrada lamacenta na via (estava ausente e perdi o caudal), que quase escondia os pneus das viaturas e obrigava os transeuntes a gestos heróicos ou desistentes. Seriam umas nove matinas. Emminha, como moras lá mais para cima, perdeste o reviver do passado... ; e como ainda devias ir ensonada, nem ouviste a buzinação...:)

Sara França disse...

Ai, tia carinõ, há dias assim, em que não se devia sair de casa. Eu acho que o Marco Aurélio já disse isto de certeza...Gosto dele mas foi bom vir aqui ler-te. Não és mesmo, mesmo, nada menos do que ele.
Um grande beijinho, a cheirar a dicionários em quebranto.

nnannarella disse...

Meu Arcanquebranto, espero que este te vá encontrar menos alquebrada. O quebranto é uma palavra linda e também provoca estas belas artes tuas de casar palavras e frases, de forma tão poeticamente melancólica e romântica, com um cheirinho, porém, a bom humor. E a propósito de cheirinhos, anda sempre com um pezinho de arruda contigo. Dizem que faz milagres contra o quebranto. As beringelas (deixei-te lá uma respostinha)têm milhares de virtudes terapêuticas, mas nada contra o quebranto. Stammi bene, cara mia. Arrudas e arrudas!:)

pardal de telhado disse...

hoje as minhas penas estiverma quietas,

doce chuva,
doces chocolates,
doce música

(alpistra da melhor)

Lizzie disse...

Pois que é legítima a vontade de bem preguiçar a toda a sela ( em pensamento, porque o trote é aventureiro e agitado), minha Cici. É legítima a oferta de tempos de inocência da civilidade. Quebrantemo-nos pois.

Beijinhos

Lizzie disse...

Capitão:
muito brilhantes ficámos com a vossa graxa. Vêde que até parece que vamos pró baile de tão reluzentes. Os nossos agradecimentos.
E deixai que a vossa freguesia se sirva sózinha com a ajuda do Alcides.Mostrai a vossa indolência encostando-vos ao balcão. Ponde cara de sonhador e todos vos julgarão saudosos de outras terras.Ides ver como aumentarão os clientes e como aparecereis no guia Michelin, como estabelecimento de referência tendo como dono estátua viva.
Experimentai este marketing.

Continência.

Lizzie disse...

Mi Emma, como tendes o sono pesado...
O meu, como me enganei no meu diagnóstico também o foi, mas disso darei notícia.
Se quiseres, peço aos funcionários da camãra da minha morada para ir entupir. Fartas vezes já os vi em tal função, ou seja, parados à beira dos escoadouros da estrada a beber cerveja cujas vazias latas vão engrossar o entulho.
No meu sítio, que é alto, só nos rebentou uma pequena nascente que irá alimentar o poço e o Tejo, além de dar banho de lama às minhas meninas e áquele outro animal de estimação que tu tanto gostas. Que sedoso lhes fica o pelo.

Lizzie disse...

Casa de Passe
ou especificando João:

acho que devia mudar de profissão, ainda por cima sendo dado a ordinarices como já tivémos ocasião de ver. Humor só com elegãncia, que é valor que por aqui se preza, como já verificou por quem aqui costuma vir.

Vocês até podiam ser interessantes. Mas francamente, o chulo,como todos aliás,e quanto a mim, estraga tudo. É uma espécie de Benny Hill lusitano. Dispenso.

Lizzie disse...

Ay Mi Sobrina tan rica, Díos mio.
Yo de Marco Aurélio? Igualita?
Vaya...
Que buena tu visita.

Pois volta lá para os dicionários, que são livros sábios e arrumadinhos. Sabes que a esta tua tia de pouco servem. Até sou para eles um insulto: eles a ensinarem-me a ortografia e eu a esquecê-la.
Valha-me o consolo da tua madrinha, que lá vai dizendo que os copistas eram iguais ou piores.

Bom trabalho e besos, besos y besos em las mejillas tuyas.

Lizzie disse...

Meu Anjo visionário de frases e poemas:
andarei de arrudas, sim, desde que não sejam de vinhos. Pelos tempos mais próximos, andarei de almoços e jantares acompanhados de água ou bebida hepáticamente inóquoa. Oh que Baco me virou (temporariamente) as costas, condenando-me a hipericão do teu Gerez.


Oh má fortuna.

néctares e néctares em sábados e fora deles.

Lizzie disse...

Pardal:
e eu a pensar que os pardalinhos não tinham quebranto. Na minha morada, poisam-me, afoitos, no beiral da janela. Acordo com eles a saltitar e em pequenos voos até ao limoeiro que tenho em frente à dita. Acho-lhes muita graça e até já salvei um pequeno.
Mas tem todo direito de ter quietude nas asas quando lhe aprouver. Ainda por cima com boa alpista e música...é quase um conto infantil com direito a desenho animado.

Art&Tal disse...

Há muitas espécies de monstros, alguns bem reais. Gentinhas de aparência "normal" , ou talvez nem tanto; podres de chiques, podres de boas intenções, de falinhas mansas e tan podres de chorosas das desgraças do mundo ... mas, literalmente, bem podres por dentro, sobretudo na cabeça que, de tão putrefacta, já está quase oca. Aparecem sem aviso. Esguardae e atentae, que elas andam aí.


II

Pois que são gente de vida pequena, e tecem as dos outros como tricot apesar de não lhes conhecerem tamanho nem formato.Temem as felicidades alheias porque são o espelho da pequenez do seu mundo, aquele mundo estreito onde não cabe a imensidão de dar, ou a capacidade de receber . Já lhes caiu a máscara e não percebem que têm cara exposta já carcomida de tanta invenção, de tanta hipocrisia, tanta intriga. Andam por aí...pois andam, vestidos de agrura, A OLHAR AQUELES QUE VIVEM. DEVE SER TRISTE ESTAR MORTO E NAO SE DAR POR ISSO."

sim sim

bem apanhado

Emma Larbos disse...

Ainda bem que as meninas se divertiram com a chuva. Eu estava esperançada de que este fim de semana ela voltasse, como prometiam os meteorologistas, mas afinal foi tudo mentira. Até tive de ir passear ao Parque das Nações, tais as saudades que eu tinha de ver o Tejo em volumoso estado, como uma promessa de mar.

nnannarella disse...

Esperando que para o próximo não haja enxurrada.

Pelo sim pelo não, já estou a fazer barquinhos de papel...:)

Enxurradas e enxurradas deles. Bom dia!