segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Breve história de como o quebranto passa a intermitente Hollywood doméstico.







Penso que as doenças se deviam adequar aos diagnósticos. Já é tempo de contestar as voltas determinadas por um suposto criador que, em dia de também presumido mau-humor e com apetites de microscópio, se lembrou de inventar os vírus, a saber, proteínas embrulhadas em ADN. O criador é dado a minúcias e de vez em quando, deixa a magnitude da obra e vira-se para o quase invisível. Talentos de criador relogoeiro. Sem ofensa.







Vem isto a propósito de me ter contrariado na estabilidade da saúde e em vez do quebranto me ter presentiado com um ataque recidivado de Epstein Barr, se a ortografia não me falha, como não me falharam alguns frascos de gotejante soro, com sonolento nectár lá dentro. Plim. plim, plim. Chamemos-lhe o fastidioso vagar do alimento.


Como não sou psicanalista nem dada a outras excurções ou oráculos do inconsciente, penso que assim que se faz noite nos nossos olhos fechados acorda Hollywood dentro dos nossos contidos pensamentos.





Imagino o Tim Burton a espreguiçar-se, o Tarantino a esfregar os olhos, um certo Hitchcock a tentar levantar-se, não esquecendo alguma megalomania de Cecil B. de Mille ou com sorte, Visconti para suavizar. A lista é longa, passando por Walt Disney. Mas lá começam eles a trabalhar nestas cinzentas arquitecturas, ajudados por argumentistas, sentados em neuronais labirintos. Técnicos de efeitos especiais. Rédea solta a virar o mundo ao contrário, que aqui não há comando nem ordem que se imponha.




Quer o cercado fígado que logo se durma, sonhando no mesmo instante. Em technicolor e double stéreo. Holofotem-se as enzimas, que é tempo de guerra acesa entre milhares de figurantes atrás dos actores principais. Se o criador existir deve estar de olhos esbugalhados a seguir a trama que ele próprio inventou, esquecendo-se do final.


Rápida viagem, aquela que dobrando a Avenida Frei Miguel Contreiras, me coloca directamente na Gran Via, não percebendo que em vez da Praça de Londres ao fundo se apresente o deserto do Novo México povoado de foliãs criaturas de tempos que não conheci, mas que artistas me ajudam a inventar.







Quase ouço, aquela música tão típica dos filmes fantástico-oníricos, cheia de violinos e vozes femininas ao longe. Em coro. Mas parece-me que o maestro está lá atrás, estático a olhar-lhes para as nucas e o público, de batuta em riste, vai dirigindo.


E é num instante que me torno hóspede dos astros. Apesar de puído, o solo de Saturno é macio. Talvez lá esteja a Alice e me pergunte o que estou ali a fazer. Talvez lhe responda que ando a viajar pelo reverso da luz. Talvez ela peça para voltar para este lado do espelho. Não demorará tempo nenhum a estarmos a ler um livro sem palavras e a termos conversa entendida em linguas que não aprendemos.







Coitada, deve ter-se feito personagem e gravura, porque já sem ela, estou em frente a um mar ainda mais azul que o da ilha Terceira, algures lá para os lados do somewhere over the rainbow.


Deste sonolento lado, todo o exterior é nublado, difuso. O mundo correrá lá fora com os seus enredos, certezas e dúvidas, desmandos e preces, solidões e amores, lutas e cansaços, de rota certa no futuro que se cumpre à morte de cada micro segundo passado. O presente é condenado a já ter sido. Os tempos tendem para a matemática, para a equação de resolução exacta. Fixa e imutável.







Este lado é imune a explicações. A racionalidades. Lá terá a sua lógica sem filosofia que a explique. Ou ilustre comentador em horário nobre.






É viagem não domesticada para além dos muros da sensatez. Turismo selvagem. Quem por lá adormece é louco. Quem acorda assoma-se ao parapeito deste nosso caos ordenado, limpa os sapatos no tapete preso pela força da gravidade e diz que está melhor, muito obrigada, e venha de lá a canja nossa de todos os dias nos dai hoje, que já se faz tarde para continuar a viver.







Saio dali com final feliz mas ainda confusa: seria Saturno ou Marte? Quero lá saber!

A última coisa que me apetece é andar a perseguir sombras e ainda me apetece esperar pelo futuro.






Bom dia.

19 comentários:

Lizzie disse...

Breves esclarecimentos:

O tal vírus, que muita gente tem sem saber,não é contagioso pessoa a pessoa, apanha-se por outras formas, e embora recorrente, vai aparecendo de forma cada vez mais espaçada e atenuada;

não tenho a certeza se o senhor de colar ao pescoço e relógio na mão é o criador relogoeiro mas apeteceu-me rejuvenescê-lo. Sempre velhinho com barbas, coitado, provavelmente já teria morrido de cansaço e há pessoas que precisam dele jovem, coisa que muito respeito porque cada um sabe de si e nestas coisas, brinco mas não gozo;

a menina de rabinho para o ar não sou eu nem nunca me lembro de ter sido.

nnannarella disse...

Meu Arcanjo, o vírus deixou-te assim como numa Ressaca ?...


A violência fresca do vírus
os sulcos da ressaca; o silvo matinal do pastor, mais propício à arte
que toda a música das esferas;
este orgulho de ter no coração
o leite entornado das estrelas.


___________________________
Poema de Eugénio de Andrade, sendo que na edição original não está vírus, mas vinho.:)
Orgulhos e orgulhos, delírios e delírios!

Lizzie disse...

Meu Anjo, seria eu lá capaz de tal Eugénio...e vinho é melhor que vírus, credo


mas fizeste-me lembrar uma copla (não sei como se diz em português)que ouço de vez em quando, em que um amante cigano andarilho está condenado à bebida por desgosto e um dia vai ver, ao longe, o casamento da amada com fidalgo e na volta, "mui enfermizo de amor", ouve as estrelas perguntarem-lhe donde vem e ele lá vai respondendo em refrão:

Vengo yo, vengo yo
de enterrar mi corazón.

Ressuscitações e ressuscitações mais alecrins aos molhos.

nnannarella disse...

Apoiado, meu Arcanjo bandarilheiro dos vírus! Qual enterrar o coração qual carapuça!E lá ressuscita o amante cigano andarilho...


Vamos, ressuscitados, colher flores!
Flores de giesta e tojo, oiro sem preço...
Vamos àquele cabeço
Engrinaldar a esperança!
Temos a primavera na lembrança;
Temos calor no corpo entorpecido;
Vamos! Depressa!
A vida recomeça!
A seiva acorda, nada está perdido!


(Miguel Torga, Diário IX)

_____________
E ascensões e ascensões aos céus, mais frésias, magnólias e camélias!

St. J. disse...

Acontece, cara Eli. Mesmo sem criadores relojoeiros, nem inventores do puro amor, ou sequer ascetas diletantes.

Mesmo sem virus, sem relojoeiros, sem ressacas, sem leites entornados de estrelas, sem ciganos, nem Mephistos, nem Goethe's, nem Faustos, acontece quando a vida corre mais que a força humana e o torvelinho do mundo turva tudo, de forma brutal, impiedosa e desumana. Mesmo muito lúcidos, passamos a ver tudo através de um vidro fosco.

Sei que não foi o caso...

Mas acontece. Por motivos tão diversos.

Abraço Sincero,
J.

Lizzie disse...

Xantinho:

existem, para toda a gente, com ou sem culpa do deus relojoeiro. Momentos em que o caos torna tudo nublado. São os momentos em que não se percebe o porquê do que acontece ou foi acontecido: o sentimento de impotência, da pequenez do que somos aqui na Terra aterrados desde o momento em que fomos concebidos.Quer o óvulo quer o espermatozóide já têm muito destino dentro.

Uns ficam a olhar para a vidraça fosca,resignados; outros tentam ver se está suja, e tentam limpá-la, outros partem-na mesmo sabendo que podem ficar feridos.
Mas só quem está morto não faz perguntas à espera de respostas com sentido. Uma história que tenha princípio, meio e fim.
Se eu conhecesse Deus, pedia-lhe para me explicar tudo como se eu tivesse 5 anos. Mas nem o conheço nem tenho essa idade.
Acontece, acontece a toda a gente.
E Xantinho está vivo!

Lizzie disse...

Meu Anjo,lembro-me de em Filadélfia,olhar para uma montra e ver um livro de capa simples e branca. Era um dos diários do Torga e em português.
É estranha a sensação de num mundo tão diferente e grande, encontrar um ponto de referência de outro mundo que nos soa a berço guardado no sotão. É quase um segredo contado ao ouvido.


E já levei responso que se escreve MUY e não mui. Deve ter sido o 123,897,433. No mínimo.

Olha bandos e bandos de pombos a dançarem, no céu, coreografia ensaiada da valsa triste de Sibelius( como vi hoje de manhã, lindo) mais um raminho de cheirosa hortelã, deles.

Graça Brites disse...

Querida Lizzie

Soubera eu que o quebranto dava direito a tanto e tinha apanhado boleia contigo e com o Epstein Barr. Não sabia que a camioneta dele fazia viagens pelo reverso da luz e tenho um sonho antigo de chegar à fala com a Alice por causa de coisas do diabo.
A ver se estou mais atenta e não me deixo confundir tentando resolver equações exactas enunciadas nas folhas acinzentadas dos dias.
Que viagem a tua! Rara e exótica!

E, já agora…deixo beijos e um “Bom dia” confiante. Tudo embrulhado em papel de fantasia:

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...


Miguel Torga

Haddock disse...

ahh, alucinação!!!
ficámos a olhar para o palácio...
bendita wikipédia que nos tirou dúvidas sobre se figuravas o estilo da prosa, lizzie...
compreendeis que esse vosso surrealismo induzido nos deixou à nora a princípio, mas agora muito interessados.
haveis conseguido receita para o curar o caos?? dizei-nos se sim, desde que não envolva pós de texugo...

vénia...

Emma Larbos disse...

Ah, Lizzie, que bom que era poder ficar assim a dormir durante dois dias, sem ser obrigada a pensar nos deveres da existência! Deus nosso senhor relojoeiro me perdoe mas um viruzito assim vinha a calhar! Se for a única forma de ficar irresponsável durante dois dias...
Espero que já estejas boa, senão posso ir ao moleskine do Duarte ver se há lá alguma coisa que se ajeite ao caso...

nnannarella disse...

E eu posso sempre consultar o moleskine de São Cipriano...:)

Lizzie disse...

Oh Cici, embarca mas sem vírus. Credo que coisa mais chata e incómoda.

A Alice, se bem me lembro, não é grande coisa. Está sempre a copiar pela imaginação do Lewis Carroll.
Por nesta altura já devia estar habilitada a escrever as suas próprias aventuras.O raio da miúda não envelhece,não tem rugas. Deve ser bom ser personagem,já viste? Além disso parece o James Bond:mesmo no reverso da luz e por mais que lhe aconteça mantém o vestido branco Tide com as alvas camisas do espião.
Obrigada pelo Torga.
E beijinhos.

Lizzie disse...

Capitão:
a receita para tal mal será pois do vosso agrado: muito SONO, muito sonho, muito repouso. Tereis é que subtituir o líquido que tendes no copo, senão o relogoeiro bota-vos ferrugem no vosso mecanismo, perdão, organismo e não haverá manifestação, perdão, poção que vos salve.
E não nos parece que nos tenha sido dado pó de texugo, pois que não nos cresceram pelos nas orelhas. Foi mais receituário calmante estomacal,emigrado para o cérebro.
E vêde, logo a mim que nem aprecio surrealistas. A sorte que tive de não encontrar o Breton no Novo México mais conhecido por Praça de Londres.

Continência

Lizzie disse...

Mi Emma
boa do bicho já estou. Agora preparo-me para morrer da cura, que já não posso ver dieta à frente. Que aliás já estou a aliviar. Ainda ontem ao jantar fui desviada para o pecado.Há lá duas ou três ameijoas à Bulhão Pato que façam mal a alguém...a água é que era light e sem alcóol.

E olha que tal sonolento estado fora da vida corrente, passou sem que desse por ela. Foi uma espécie de interrupção. Entre sonhos e pesadelos não dá muito gozo.
Em vez do vírus, era melhor que o Deus relojoeiro virasse perdulário da sua fortuna e te cedesse o Euromilhões. Sem agonias, cefaleias ou enfermeiras a tomarem conta de ti (para não caíres) enquanto embirras que não é o bicho que te faz perder a necessidade da higiene diária.

Lizzie disse...

SOCORRO QUE TEMOS BRUXA.



Ai, ai,ai, patas de coelho e trevos de quatro folhas deles


ai
ai


FUJAM que vem de livro e vassoura.

Sara França disse...

Tia Lizzie... a cena de Hollywood está fantástica, sem desprimor para as outras. Tudo aliás me faz lembrar aquele filme do Hitchcock, com alucinações do Dali.Quanto à cura para o vírus Epsteinum Barrum, eu posso fazer como os ainda mais antigos que D. Duarte e abrir os estômagos dos passarinhos e ver o que as vísceras me dizem...!
Beijinhos!

nnann arella musashi disse...

Audaz Senhora de Lizzie-san,

que visões notáveis, que movimentações épicas!, Senhora, que jamais meus sakés mais aguerridos mas concederam.
Tenho pena, porém, que Epstein Barr-san não Vos tenha dirigido aos Mestres Mizogushi e Kurosawa.
Não sei se hei-de dizer "fica para a próxima" ou se será melhor calá-lo...

Com profunda admiração por Vosso sobrenatural espadeirar,

Vossa.

Lizzie disse...

Querida Sobrinha,
por quem és, não me fales em estomagum ainda por cima abertum credo cruzes canhotum. Coitadus dus passarinhus.
Vendu benis fazeu lembrarum a "casa encantada" do Hitchcokum.
Savé Sobrinha pelo idearium.

Ainda de Marcus Aurélius?

Pestanalis queimadus?

Beijos que não in vino veritas.

Lizzie disse...

Senhora Musashi,

com toda a reverência vos digo que, embora goste de Mestre Kurosawa, iria ele acrescentar incómodo corte da jugular a este meu corpo em leito adormecido e repousado.
Como sabeis há falta de pessoal pelo que seria preciso pagar horas extraordinárias a quem tivesse o labor de limpar tal fluxo hemorrágico da cama, paredes e chão do sonho. Não sei se o pessoal teve acções de formação na limpeza de sonhos. Suponho que terá regras próprias sob pena de se tornarem pesadelos.

Os meus agradecimentos, gentil Senhora.

(não sei se está a ver que me retiro polidamente de marcha atrás)

com a Vossa licença

respeitosamente