terça-feira, 26 de março de 2013



Conversa salteada com mais memória que rumo, enfim...

...ainda está frio, chove, faz vento e esta poderia ser mais uma conversa de lareira.


 Daquelas que surgem a propósito de tudo ou de aparentemente coisa nenhuma. E se baralham sem sequência lógica do depois se seguir ao antes.

Ou talvez por ter estado, a propósito de danças e sem qualquer intuito de morais de histórias, às voltas com várias representações das lutas entre o enfezado David e o típico homem rugidor que dobra ferros nas feiras oitocentistas, Golias.


Enquanto ouço, e sorrio, umas coplas que ,setenta anos depois, entrarão pela arte contemporãnea dentro servidas pelo fantasma da extraordinária voz de Conchita Piquer,


 mulher sofrida por amores próprios  e alheios, pétala de rosa esmagada pelas paixões desta vida porque, Senhores esta coisa de aliar a tristeza ao riso, ou a ironia ao literal é quase sempre uma forma de luto.

Mas ia eu dizer, voltando ao David e ao Golias, que não sei exactamente que idade tinha mas andava ainda pelo corpo liso, pernas muito altas, tanto que havia o geral prognóstico de que viria a ser tão ou mais alta que a minha mãe. Toda a gente se enganou.

 Apesar de uma das minhas avós me acusar de sofrer de sindrome de espirito de contradição, juro a pés juntos que a minha vontade não interferiu na minha definitiva estatura mediana  .


Mas adiante.

Naquela época as crianças iam, como qualquer animal jovem, treinar a vida em brincadeiras. Para a rua.

Marcávamos encontro no enclave entre as traseiras do então Estádio da Federação Nacional de ou para a Alegria no Trabalho e a parte de esguelha do Liceu Nacional da Rainha Dona Leonor, bairro de Alvalade. A freguesia, imaginem, não me lembro se seria S. João de Brito, S. João de Deus ou S. Miguel.


As mães ficavam sossegadas e nem sei se chegaram a saber que volta e meia aparecia um homem muito grande e gordo, com um fato de macaco azul com nódoas e que abria o fecho e mostrava uma espécie de Pinóquio muito estranho e ficava muito cansado, a arfar, como se corresse, coitadinho, mas sem sair do mesmo sítio.


 A Irene, que era do grupo, dizia que o homem sofria do coração porque o bisavô dela também ficava assim o dia todo e por isso o médico ia a casa dar-lhe injecções e pôr-lhe uma máscara nas trombas (sic, bem entendido).

E logo a seguir aparecia a porteira de um prédio que era uma mulher atarracada, muito sólida, só com um braço e viúva, a quem todos os grandes tinham respeito por ser uma mulher de armas.



 Nunca lhe vimos pistola ou espingarda de cowboy mas devia ter porque assim que ela aparecia e lhe gritava, o homem desatava a fugir com o rabo aos saltos como se levasse tiros nos pés pela pradaria fora.


Todos nos ríamos muito menos uma que andava já a treinar para choro contínuo , quando, talvez por vocação trágica ou desperdício de lucidez, casou com um conhecido político português, hoje muito em voga, saído de fornada a que nenhum deus  deu atenção, indo parar ao caixote do lixo dos diabos. Se é que os diabos têm paciência, claro.


Era coisa que também íamos aprendendo sem saber, isso de   existirem pessoas que são tão feias de fora para dentro como de dentro para fora:
o homem era todo feio, a porteira tinha a coragem justiceira do John Wayne.

Mas a propósito e atalhando na prosa, às vezes aparecia um rapaz vizinho, mais velho e mais forte que eu, chamado Paulo Jorge como tantos nascidos no ano dele. Um dia bateu-me e chamou-me nomes embora não me lembre exactamente quais mas que não deviam ser mote de elogio ou apelo à vaidade. De certeza que não.

E cheguei a casa e fui direita à sala de estar.

( A partir daqui já me ajuda a memória da minha mãe que a minha só me fornece um ecrã onde aparecem imagens fortes e precisas mas soltas, umas vezes com som outras vezes em forma de cinema mudo mas com banda sonora.)

Disse ao meu pai que o Paulo Jorge me tinha batido mas fui diminuindo a descrição e os pormenores porque, como sempre  que ficava irritado, o meu progenitor não desviava os verdíssimos olhos do que fazia, não se percebendo se estava neste mundo ou noutro que só ele habitava.

 Neste caso, lembro-me que estava a petiscar e a olhar para a televisão.

Também me lembro da minha tia, uma das irmãs dele, sentada numa pequena mesa com tampo de veludo verde e estacionada num canto, a fazer paciências com um baralho de cartas, de cigarro ao canto da boca, tirado de um maço de Português Suave sem filtro, que guardava sempre no bolso como se fosse vício não sei se privado se clandestino.




Na altura não devo ter percebido porque começou a cantarolar a Llorona, canção lacrimosa que saía do seu repertório habitual de Edith Piaf mais outras francesas de erres serrados na garganta, quase caricaturais.

Não me lembro de ter reparado no sorriso do seu precário marido porque era pessoa que sempre se sentava com os cotovelos apoiados nos joelhos e dedos entrelaçados, assim todo curvado para a frente, de olhos fechados ou fixos no chão de tal forma que poderia ser um adereço esquecido num teatro abandonado.  Tinha o nariz tão adunco que parecia uma águia depenada mas com bigode.

Eu não gostava dele porque era caçador, detestava a nossa cadela e o nosso gato,


 comia os bifes em sangue, nunca olhava para ninguém de frente, dizia mal de todas as pessoas das cidades em geral e de  Lisboa em particular, de todos os ingleses e quando lia o jornal ficava a ver durante muito tempo as páginas que tinham umas cruzes pretas, às vezes com fotografias de pessoas com aspecto de que nunca se tinham mexido como se estivessem  estado sempre eternamente presas naqueles quadrados e rectãngulos.

Enfim, se fosse hoje, diria que era uma espécie de parteiro da morte. Mais ou menos. É assim que me lembro dele. E de ninguém gostar dos seus sorrisos escondidos atrás do bigode. O meu pai chamáva-lhe filho da puta bufo, informador e interesseiro.



A minha prima, mais velha que a minha mãe e que trabalhava em leis e estava sempre a partir e a chegar de algum sítio estrangeiro e nunca casou porque os maridos tiram asas, disse-me para dar nos cornos ao Paulo Jorge.


 A mãe dela que gostava  tanto de ópera( alías recitava frases da M. Butterfly ao melhor estilo da sua amiga Natália Correia) como do fado vadio na Mouraria, do faisão au Port como do molho dos bifes da Portugália, de cognac velho como do vinho da pipa da tasca da Rua Marquesa de Alorna passando pelos caracóis do Convento de Odivelas, perguntou-lhe que merde de linguagem era aquela dos cornos. E eu que usasse a cabeça.

 A minha avó do espírito de contradição chamou-me queixinhas, piegas, indigna do apelido paterno e outros epítetos atentatórios da autoestima porque na altura ainda a psicologia protectora e com olhos na análise retroactiva do comportamento futuro,  estava pouco desenvolvida.


Resumindo, o meu pai, finalmente olhou para mim, acabou de mastigar,  engoliu, agarrou-me no braço, estremeceu-me mais a alma que o corpo, provavelmente, proíbiu-me de deitar uma lágrima que fosse, não viesse por ali torrente que se assemelhasse a birra, e disse-me que era a última vez que fazia queixas de alguém e que resolvesse eu o problema que nem  ele nem ninguém tinham nada a ver com a questão,  que fosse falar com a cadela e com o gato que ele tinha mais que fazer que deixar de ouvir o Alfredo Marceneiro e a tia  Teresa de Noronha que iam cantar a seguir.

Rematou com um ANDOR que sempre soava àquele martelo sem recurso com que os juízes batem na mesa quando os filmes passam pelos tribunais e para bem ou mal, os arguidos suspendem a respiração.

Mais tarde ouvi o meu pai tocar piano, instrumento utilizado quando estava triste ou de pragmatismo arrependido,


 ao contrário do clarinete, sobretudo com obras  de Buddy de Franco, quando estava excepcionalmente bem disposto, ou da guitarra quando estava com tédio, ou do saxofone, em homenagem a Don Byas,  quando estava nostálgico ou do contrabaixo quando estava pensativo, ou do acordeão quando saía com um amigo de longa data, ou seja, quando lhe fugia o pé para o chinelo, na versão da minha avó, a tal do espírito de contradição.

O que é certo é que voltei à rua e enfrentei o dito Paulo Jorge com a arma de que ele nunca dispôs no seu arsenal bélico: a agilidade com primor no movimento rápido.

Ai Senhores, que tão bem me lembro de, perante a assistência, me chegar ao pé dele, de lhe sentir o hálito a pastilha elástica Gorila, dele estender a mão sapudinha e eu já ser uma sombra que não se alcança, de me esgueirar, qual contorcionista, pelo buraco que havia na vedação do estádio supra e de, já no outro lado, dançar para ele o que hoje me parece uma galharda mal sucedida e com erros, coreograficamente falando, primários.

O Paulo Jorge nunca mais me  bateu.



 Nem ao Sérgio que era muito fraco e comia sandes de pão integral e passado pouco tempo  também apareceu na coluna dos que estão cativos na fotografia do jornal debaixo da cruz preta.


 Nem à Sofia que usava botas grossas com ferros a subirem-lhe pelas pernas acima e que não podia correr e andava como se o peso pantanoso do Mundo lhe vivesse agarrado aos pés  e que sonhava ser bonita e esbelta como as já grandes e altivas que andavam no liceu e saíam do Vá-Vá ou da Suprema, bica tomada e cigarro fumado, montadas no alarido do tubo de escape das motas Hondas 50 dos namorados. Av. de Roma fora.

O que é certo é que o Paulo Jorge desceu da colina. Consta que foi brincar aos grandes para o vale que faz a Av. Gago Coutinho. Outras vezes para Entrecampos. Lá em baixo. Como se a topografia tivesse metáforas.


E não sei se foi por isso que a porteira de um só braço, arma invisível e sorriso esburacado me passou a chamar lagartixa. Até muito depois de eu ter deixado de ter o corpo liso. Já com o tronco proporcional às pernas.

Ou se num dia, o meu pai tocou clarinete. O que o tio António trouxe de New Orleans e que ainda guardo no estojo como se fosse uma paz solidificada. Saiu Glenn Miller em acerto melódico com tantas curvas desenhadas no espaço que mal se conseguia seguir.

 E a minha mãe me deixou pôr olhos e narizes e bocas com as passas de uva que enfeitavam os scones, espécie de gárgulas absurdas saídas do forno.

Não sei.

Mas é bom pensar que aprendi que sim!

Seja qual for a idade em que me recorde.

4 comentários:

bettips disse...

O colar da infância e onde encontramos respostas - e perguntas -, das gentes miúdas e as malandragens que se nos cruzaram
... e no fim acredito que sim, que o som do clarinete se ouviu, New Orleans devia ser assim, uma febre súbita, um ardor amaciando a mão e o som pelo dourado das curvas
e ficaste "lagartixa" fugidia (cresce-lhes sempre o que lhe tiram)
(bom que a "tal" não o saiba eh eh eh, iria julgar que era pejorativo, dispensa por ter o sangue frio...)
Beijinho

Lizzie disse...

Bettips,

e quando ia nas férias grandes engordar, fortalecer, encharcar-me de disparates, para o Alentejo chamavam-me arvela ou arvoela. Nunca consegui perceber o que era tal coisa. Talvez um pássaro ou uma espécie de outro bicho vagamente parecido com a Pipi das Meias Altas.

Fosse o que fosse, não era pejorativo. Aliás, o logo considerado pejorativo é típico das pessoas falhas de afecto e parcas no entendimento geral dos vários mundos.
Os afectos transformam o sentido literal das coisas. Muitas vezes.

Aquele clarinete tem o carisma de ter vindo de um útero autêntico.Foi construído no início dos anos 20 e prendeu de paixão longa e sem o cansaço da perda de ilusões por cada pessoa que o tocou. Foi sendo transmitido ao longo de gerações escolhendo quem melhor o cuidasse.

Tem qualquer coisa de ser vivo. Parece que do som falam células que contam histórias. Parece que vai aos labirintos da alma.

Um dos desgostos do meu pai quando perdeu a audição, por volta dos 50 anos, foi não o poder ouvir.

Desde pequena que aprendi a tratar da manutenção de clarinetes (e instrumentos de corda). Era uma das minhas funções. Na altura ficava furiosa. Farta de jazz até à exaustão. Agora sinto-me uma extensão no tempo. Com um ponto final mas não necessariamente parágrafo.

Comecei pelos outros, que também guardo, como treino para este.
Faço-lhe o tratamento com uma receita praticada em New Orleans. É trabalho meticuloso.

Tens razão: é um SOM DOURADO, macio,quente.
E por mais curvas que dê, é maduro. Seja qual for o estilo que sirva.

Beijinhos, ou como se diz em New Orleans: mam, see you early at the next sooooong.


bettips disse...

Ora bem, perfeitamente adequado ao que dizes (ser)ter sido: arvéola, lavandisca ou boieira, nomes populares.
São muito comuns nos campos.
Alvéola: está na wiki e na verdade, deve ser parecida com uma miúda impaciente, ágil, cabeça erguida e atenta, de pernita alta...
Bjs
soon we meet singing (in the rain), ducky!

Lizzie disse...

Bettips

:))))obrigada. É preciso vir uma mulher do norte para decifrar a nomenclatura alentejana, carago!

Na realidade o que me chamavam era "alvéola sem cu" por observação directa da anatomia, penso eu.

Também me chamavam " gaiata rabeta" por ser refilona e pouco dócil para menina.

Ora ficava furiosa quando ouvia as pessoas dizerem que eu era muito fraquinha, "coitadinha". Que os alentejanos me perdoem mas, naquela zona, a influência do melodramatismo árabe é muito presente.

Tendo eu já dois irmãos enterrados, era uma atitude de simpatia para com os familiares ver-me já anjinho em caixão branco ainda mais amarelinha do que já era ao chegar de Lisboa.

(Naquele tempo criança que não fosse de bochecha vermelha e obesa só podia estar à beira da morte com sangue ou pulmões fracos.)

Ora consta que um dia me moeram o juízo com tal prognóstico e eu comecei a refilar e quando os adultos deram por isso já eu estava no topo de uma árvore aos berros a chamar os cavalos e, como sempre gostei de paisagens amplas, Granny, there´s a river out there.

Lá vieram os bombeiros mais a escada. E como senão chegasse houve performance de exibição dos bícepes.

O castigo já não me lembro qual foi mas deve ter sido lavar a loiça subida num banco. Era o costume.

Roubar batón e ir pintar os beiços de uma vaca também não foi considerado muito pouco sensato e menos ainda dizer que estava parecida com a X (uma empregada de que não me lembro o nome) quando vai para a missa. Aí, seguiu-se um pedido de desculpas formal à visada com a admissão da minha estupidez e má educação. A culpa era do vento suão, que em Lisboa era mais comedida na consideração das parecenças.

Quando estava tudo muito solene a representar o seu papel e fui mandada para o quarto de castigo, pedi para primeiro ir falar com a vaca. Lá ficou a solenidade estragada.

Ainda hoje tenho uma relação especial com vacas leiteiras. Nunca nenhuma me fez mal e agradeço a paciência que tiveram para me aturar. Mesmo quando lhes trepava para o dorso. Devia estar de presépio, sei lá...

O que é certo é que voltava morenhinha, com boas cores e sem ser preciso injecções bebíveis para abrir o apetite.

E caixas brancas de anjinho, só as de sapatos para guardar pedras e paus que pareciam formas de coisas ou bichos.

A menos que seja assombração, esta que aqui te responde ainda está viva e noctívaga, pelos vistos.

Beijinhos