segunda-feira, 8 de abril de 2013


Da sensatez numérica de Galileu ao engenho matreiro do barbeiro passando pela anatomia das pausas.

Não costumo ver debates televisivos nem de emissão portuguesa nem de espanhola  porque , na maior parte das vezes, me parece que o mundo parte do sítio onde estava hoje e vai desaguar no lamaçal onde estava ontem.



 Salvo raras excepções, tudo me parece pensamento encomendado, circular e relativamente simétrico, coisas todas elas que detesto.

Mas, por acaso, liguei a televisão num canal espanhol e surgiu-me um sujeito: bem posto, de provecta idade, doutor em economia, administração, filosofia, ciência política e mais qualquer coisa que eu, ofuscada por tal grandeza de expansão neuronal, confesso que já não consegui abarcar.


O senhor, apresentando estatísticas e infindáveis números  sentenciou que a bem da produção, competividade e desenvolvimento, todas as pessoas maiores de quarenta anos deviam ser dispensadas  (vulgo despedidas) de trabalhar a soldo, quer nas empresas quer no Estado.


Um oponente, rapaz novo, perguntou-lhe como iriam tais descartáveis sobreviver, etc, etc, ao que o sábio respondeu que este mundo anda cheio de oportunidades e que os tais tomem a iniciativa de formar empresas em casa, no banco de jardim,( debaixo da ponte), em qualquer sítio porque qualquer sítio é a morada adaptável de hoje em dia.



O último apelido do senhor era Pi, coisa por mim fixada por achar coerente. Se bem me lembro do liceu, Pi = 3,14, logo um nome numérico. Premonições do destino. Suponho.

Logo me lembrei de um velho, perdão, idoso, porsupuesto mayor, que conheci há muito tempo, tendo em conta que tenho bem mais de quarenta anos. O parece que foi ontem tem já a distância do longe.



Este Jewish Old Man, que assim se intitulava sem disfarces nem cosmética, era especializado em música litúrgica da Cristandade dirigindo ainda um rigoroso grupo universitário do chamado Canto Gregoriano.


Sobretudo para as pessoas ligadas à dança que simpaticamente visitam esta casota, devo dizer que três criaturas por fascínio, de cabeça ainda mal assente, entre as quais eu me incluía,  tomaram a incumbência de entrar pelos caminhos da Dança Binária partindo da vaga ideia que tinham de tal coisa, ou seja,


 da que era praticada nos ritos cristãos no período de tempo que intervalou entre o deboche bailatório do fim do Império Romano e o rigor ascético quanto ao corpo e demais instrumentos na Idade Média.

Proponhamos ainda misturar a solenidade com as técnicas da Doris Humphrey. Ele há alembraduras que não passam pela cabeça do Demónio. Felizmente.


Depois de explicar timidamente que não havia intenção pós moderna de aliar sem vergonhas ao Sagrado ( coisa que até esteve em moda mais por isso mesmo que por convicção fundamentada ) o Old Man Stillberg, sentado na sua cadeira de rodas, bateu com as mãos nodozas nos joelhos e disponibilizou-se, penso que divertido e gozão, a orientar as fedelhas no assunto porque, o que faz girar a vida é compatibilizar a experiência dos velhos com as ousadias dos novos.


Citou até um provérbio índio que diz que um homem velho e sozinho  mais não faz que remexer as águas do passado enquanto que  um novo, mesmo acompanhado, pensa poder segurar o vento.


E como diria uma velha senhora zangada que conheci, nos olhos dos velhos está o espelho do futuro dos novos ainda que o reflexo lhes pareça ferido de uma impossibilidade crónica.



Ficámos a saber que tudo aquilo, música e dança, se baseava em ordens numéricas. Complicadíssimas.

Mas, a seu conselho, não nos poderíamos prender a tal matemática. Já Galileu, ou a sua filha, não se sabe bem que génio se escondia atrás do outro, teriam dito que tudo na natureza pode ser explicado e provado pelos números MENOS... os pensamentos, o carácter, a criatividade, os sentimentos, os sentidos, os sonhos.


E como toda a gente sabe tudo o que disse e o que escondeu foi ao Tribunal insensato dos homens que, frequentemente, por fruto de ganâncias várias se esquecem, porque perderam, tais ingredientes bastante mais fluidos que a rigidez aritmética.

E, que afinal, até naquela época dos inícios, dentro das regras numéricas, chamemos-lhes limites, existia nos Cantos, nas Danças e nos Ritos uma grande vertente de improvisação, que é como quem diz liberdade.

Dizia o Velho, que gostava de dizer por ali fora, em peroração generosa de quem parecia já ter nascido professor, que a obsessão pelos números sempre tinha estado intimamente ligado às máquinas. Ao funcionamento certo, regular, sincopado sem as naturais arritmias da alma.


E que tal História tinha começado ( ou sido confirmada), com um barbeiro tornado inventor de sucesso. Do nome não me lembro mas dele existiram e  existirão, com certeza, muitas estátuas robustas pela geografia fora.

Tal criatura, no séc. XVII,I inventou uma máquina de fiação, de alta produtividade, em que as pessoas, principalmente crianças eram treinadas para lhe acompanhar o ritmo frenético.

Em tal geringonça morriam de exaustão, de doença, mas logo eram substituídos pelo capataz mecãnico de forma a que o número necessário fosse restabelecido sem que o engenho parasse.  Foi o início do conceito que a pessoa faz parte da máquina, é uma peça dela. Serve-a mais do que é servida.

O Senhor Pi=3,14 chamar-lhe-ia, penso eu,  o cumprimento de objectivos de Gestão anteriormente definidos pelas Administrações.


Soube mais tarde que existe a tese que Charlin Chaplin gritou sem voz, ironizou, pantomizou,  o sistema maquinal do tal específico barbeiro no filme Tempos Modernos. E não será muito difícil lembrar-me de outros.



Por acaso, alguns coreógrafos e bailarinos, adeptos do futurismo, logo da magnificência da máquina, tentaram espartilhar os movimentos em linhas rectas. Convenhamos que as máquinas não têm plasticidade. Não serão nem fisicamente filósofas da leveza.

Mas ainda bem que outros na mesma época, por antítese, libertaram o corpo: Isadora Duncan, Martha Graham, Doris Humphrey, Loie Fuller e cá deste lado do mar, Mary Wigman, Kurt Joos, etc, etc que é longa a lista.

Mas enfim, foram horas clandestinas (sob orientação para desprezar o supérfulo ), porque fora das obrigações fixas da jorna, passadas na imensa biblioteca pública, foram os corpos a beber os Cantos, a deixar percorrer as vozes como sangue que se vai transferindo.


Quem tinha Deus, reconheceu-O. Quem não tinha, como eu, ficou-se pela descoberta dos pormenores  nos corredores escondidos da Beleza.



Também aprendemos, porque nos foi subtilmente revelado pelo Old Man nessa nossa idade de todas as pressas e através daqueles Cantos, o valor das pausas.


 De como a luz de um som ou de um movimento e mais sei lá de quê, lhes iluminam a sombra. E vice-versa.


Pelo seu lado, dizia-nos o Old Man, que nunca tinha trabalhado directamente com bailarinos nem nos bastidores trabalhosos e experimentais dos ensaios, que nunca tinha percebido a necessidade de também a música se adaptar ao corpo, às pausas respiratórias, à linguagem muscular.


Pousava a mão antiga na região do meu diafragma e gracejava: nestes trabalhos conjuntos um músico tornava-se num melhor bailarino e um bailarino num melhor músico.


Por tudo isto, Debussy tornou-se para nós uma metáfora pela vida fora com o seu dito de que a música é o silêncio entre as notas.

Resumindo, fomos tendo a maior aprendizagem de todas: a de que uma descoberta é sempre o princípio de tudo o que ainda se desconhece.



Também percebemos que atrás do perfeccionismo está o medo. O respeito.



Não faço, não fazemos ideia de quantas parcelas resultou o número, que não conhecemos do que aprendemos. Nem o que a partir daí multiplicámos. Ou dividimos.

Ainda hoje,  vejo o Old Man no lado de dentro da memória.


 No gabinete forrado de livros. O cheiro a tempo. As mãos suspensas depois do casaco de lã a demonstrar as pausas, os dedos nas pautas sem lhes tocar, não fosse manchar os testemunhos do tempo. Pareciam pássaros magros, esfomeados, à procura de sementes.


 E a voz grave na arte de ensinar a fazer perguntas.

E o brilho nos olhos quando tudo resumido e cúmplice na estreia, lhe depositámos um ramo de orquídeas no colo.

Como se reunisse nele todos os entusiasmos e sabedorias que se recusam a morrer. Sem deixar rasto.

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e, já agora, a propósito de novos e velhos e concorde-se ou não

José Luis Sampedro
1917-2013


Porque até como economista, defendeu as excepções numéricas de Galileu. Talvez por isso, aos 62 anos, se tenha tornado escritor.
Talvez por isso se tenha tornado, aos 95, o ideólogo sem alardes próprios, para velhos e sobretudo para novos, do 15M, movimento mais de cidadãos activos e indignados que de bandeiras partidárias.
Talvez por isso tenha usado tantas vezes e com maiúsculas a palavra dignidade. Contra todas as chantagens e pressões mesmo traduzidas em máscaras de marionetas.

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