sexta-feira, 20 de abril de 2012

Guia prático do silêncio ou de como as palavras perdem a ponte para a outra margem da memória…sei lá…assim respondendo ao Senhor Augusto, Único entre Mil…


Senhor,
Se bem me lembro, haveis dito lá para trás algures na correnteza comentária deste conjunto de prosas ilustradas que cada vez mais sois de acreditar em coincidências e, imaginai, que nos últimos dias tenho andado a pensar mais do que devia na memória porque a Senhora Minha Mãe tem o presente a fugir-lhe enquanto o passado se lhe aumenta tanto de extensão que um dia destes se há-de lembrar do momento em que assomou à janela e viu pela primeira vez o mundo, partindo do princípio que nasceu de cabeça e não de pés como por vezes acontece a quem já parece vir à vida de forma contrariada.


E, Senhor, tendo tanta idade, assim mais vinte e cinco anos que eu, entrou na fase em que já não se lembra de se lembrar e, por isso, nas longas viagens que tenho feito para a levar a supostos restauradores alquímicos da memória

e conversando, me parece que nela as palavras lhe andam a passear pelo cérebro mas como já têm falta de vista, caem nos buracos do caminho e desaparecem para nunca mais serem vistas: perdem-se e passam a habitar o reino difuso e nublado da História.


Se há uns meses lhe percebia os pensamentos de cócoras à procura delas, espreitando nos sulcos das rugas do cérebro, agora vejo que ficam abandonadas pelo caminho.



Mas não vos preocupeis, Senhor, que as Vossas, ainda andam agarradas e com trela curta e obedientes nas vossas mãos.

E agora lembrei-me que as minhas também já vão caindo se é que alguma vez me pertenceram completamente e sem reservas porque rotinas essas, Senhor, foram sempre insubmissas, apoiadas eufemísticamente por aquilo que os físicos sábios chamam Distracção e os severos moralistas chamam Desarrumação.


Porque, Senhor, já lá vão tantos anos que não me lembro quantos, andava eu de um lado para o outro nessa fase nómada, fui convidada a ser cobaia num estudo acerca da memória e vi-me sentada numa secretária com três criaturas de ar aplicado e vista precocemente cansada embora as pestanas não me parecessem muito chamuscadas pelos candeeiros do estudo também nocturno.



Por manha minha, ficaram convencidos que, no conjunto, eu tinha uma memória cinco vezes superior ao comum dos mortais, memória verbal incluída mas nunca lhes disse que todas as histórias de palavras (nem o mais ousado e rasteiro argumentista de telenovelas se lembraria de tais enredos) que me contaram para eu reproduzir passados dias, tinha convertido em imagens como um filme e uma delas até me lembro que se passava nas vielas do Bairro Alto, sitio europeu que os sábios nem sonhavam que consta da geografia terreste, a menos que tivessem vindo passar férias com máquina fotográfica ao pescoço.

Por isso, Senhor, me lembro primeiro dos patinhos , das circunstâncias que os rodeavam e depois das palavras importantes na altura ou depois, embora cada vez mais transforme as palavras em conceitos que é como diz, em emoções ou sensações.



Ainda ontem, Senhor me telefonaram e perguntaram qual era aquele quadro tão dançável e dançado e coreográfico de que tinha falado e logo ele me apareceu bem nítido na galeria pictórica que tenho na memória mas,


embora tivesse movido assaz violentamente a língua com palavrões poliglotas em que coño até parece seda ao pé das outras tão ásperas, o nome do pintor coreógrafo não lhe saiu debaixo.



Bateu-me à porta quando estava a cortar a alface para a salada do jantar. Ora não consta que Bronzino tivesse sofrido a peste da fome para assim aparecer de nome soletrado à beira do lava louça.



Senhor não sei quanto tempo demorarei a ficar em silêncio de palavras

 mas talvez a dirigir orquestras, solos de violoncelo, de viola da gamba, sonatas, fanfarras..., com a parafrenália de sons que fui guardando e ninguém ouve e a rir os olhos no museu que ninguém vê,
 ou a soltar movimentos num mundo que se apresentará como parado.



Não sei, mas hei-de me lembrar de ter sorrido quando vi um patinho engraçado, destacado num fundo preto de ecrã e da estima que então senti pelo autor.

Ainda que as letras do seu nome repousem no fundo de uma mina que não suspeito que existe.


Os meus agradecidos e ternos respeitos sem prazo para o esquecimento.



8 comentários:

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

depois de vos ler, comovido, encantado e obrigado, esperei até hoje tentando encontrar as palavras que traduzam o que sinto e que vós mereceis.

em vão.

tudo o que possa escrever ficará sempre aquém do que dizeis e mostrais nesta vossa casa.

na verdade, as idosas palavras e ideias que me habitam parecem ter séria dificuldade em sair da modorra em que mergulham.

até as certezas no escrever por vezes já o não são:
qual a forma mais correcta: "palavras que me habitam parecem ter" ou "palavras que me habitam parece terem" ?

não sei mas também não será importante...

sem mais saber dizer-vos deixo-vos, Senhora, a minha respeitosa amizade.

bettips disse...

E eu sublimada fico, de prosa tão transparente, em que alhos fazem chorar olhos e bugalhos fazem rir memórias "de patinhos". Ciente das estradas e do seu nevoeiro que vais engolindo, pertinaz??? digo eu, com as fotografias através dos tempos, tiradas pela máquina da tua imaginação.
A propósito, há 2 dias que só me sobra "a ideia de": estou com uma tendinite grave no ombro direito e pareço o tal patinho, pata aqui, dedo acolá.
Bjinho da bettips

Lizzie disse...

Senhor e Bettips (assim pela ordem de chegada):

Estava a pensar responder-vos agora mas esqueci-me que tenho uma reunião daquelas de fato e gravata e Chanel nº5 (conforme o género) recheadas de palavras acrobáticas mas de pouca dança assim como chineses a dançarem o Lago dos Cisnes e afins (perdoem-me a comparação mas segundas feiras sofro de neura crónica acentuando-se-me a viperina língua.

Posto isto, vou ensaiar um ar digno e respeitável e só tenho dez minutos até ao espectáculo de forçada pantomima.

Assim sendo, até amanhã (se não fôr fuzilada)

Lizzie disse...

Senhor,

embora tocada de grande agradecimento,sempre vos digo que não deveis, pelo menos aqui, curvar-vos em esforço para encontrar palavras que teimam em esconder-se ou ficar sentadas e feridas de inércia.

Como sou de outras artes, parece-me uma má coisa as pessoas ficarem escravizadas por elas.

Não lhes ligueis demasiado ao peso.
Deixai apenas e tão só que se mostrem as que, sem procura atilada, venham ter convosco.

Acabarão estas, embora possam parecer meias doidas, por vencer a ditadura do fazer sentido porque muitos sentidos existem para além dos morfologicamente correctos (se é que a morfologia é palavra aqui bem empregue).

E, Senhor, como sabeis as minhas palavras já nasceram idosas: esquecem-se dos acentos e dos lugares das letras nelas e sei lá de que concordâncias...

nem à lei da cópia (tantas) e da reguada (menos)ingeriram o elixir da juventude.

Daqui vos envio os meus imensos e assentes (ou acentes) respeitos.

Lizzie disse...

Bettips,

às vezes, mais por necessidade que por gana, sou mesmo uma espécie de road woman.

Também assim me sinto, e como comandante do destino e da distância, quando em estrada larga e ampla no horizonte e montada a condizer, me embebédo de velocidade. Uma das minhas paixões e uma excelente maneira de tirar fotografias mais às ideias que aos pensamentos. Ou o contrário, não sei.

Infelizmente (porque tenho a preocupação de não pôr em risco ninguém) a polícia e os radares não me deixam engolir tais doses de ar.

Quanto a tendinites, espero que prisão dolorosa como facada, vá pregar para a freguesia da inexistência.

Por acaso ando em crise da minha "bursite trocantérica".
Quando me apresentaram tal nomenclatura, em português, pensei não sei porquê que era mal de ovelha ou de vaca. O espanhol "bursitis" não me soa tanto a pastorícia.

Quando exprimi isto ao ortopedista ele disse-me que as vacas não dançam e eu respondi-lhe que isso é o que ele pensa.
Desenvolveu-se tal prosa que não percebo porque é que ninguém chamou o psiquiatra.

A vantagem que têm os ataques é que fico em repouso a galgar livros, filmes e afins. Quando, em casa, alguém, me diz para fazer alguma coisa digo logo que não posso porque estou com a bursite.
Poupo-me assim a arrumos e outras domesticidades.

Na última crise, fui obrigada a sentar-me no sofá, ao pé de visitas, com o relatório médico, preso ao peito com um alfinete.
Mas nem assim me livrei de ir fazer tostas mistas.

Beijinhos e obrigada.

augusto, um entre mil disse...

Senhora,

palavras sensatas, justas e de sabedoria foram por vós deixadas em minha "casa".

a vossa,logo, assim que me for possível virei ver com tempo, ...

deixo, com a minha admiração, as minhas saudações cada vez mais respeitosas.

Lizzie disse...

Senhor,

sereis sempre recebido com as respeitosas honras que mereceis.
Entrai pois, quando vos apetecer, pisando a passadeira vermelha.

Se tivesse tempo, que sabeis que me é tão escasso, contar-vos-ia a Vós e aos demais visitantes, como há muitos anos foi-me dada a descobrir uma coisa matemática ou da geometria ou sei lá do quê, que sempre me leva a olhar para as coisas de diversos ãngulos

ou seja,

não me ficar só por uma face imediata do mundo.

Talvez as palavras que vos deixei e de que agradeço os Vossos simpáticos elogios, venham daí,de tentar,Senhor, de tentar olhar a luz que se enconde em cada sombra e a sombra que sempre mora em qualquer luz.

Como sempre, os meus agradecidos respeitos esperando que vos encontreis o melhor possível.

augusto, um entre mil disse...

obrigado, Senhora.



e, encantado (com preguiça de encontrar termo que exprima ainda mais).