quinta-feira, 26 de janeiro de 2012



Aliencito mío:


Hoje, vê lá tu, apareceu-me uma gaivota inesperada. Estava eu parada no parvo do semáforo. Na cor que impede a marcha.


Depois começou a voar.
Pareceu-me que nas linhas do voo estavam escritos todos os verbos do mundo. Todos. De todas as línguas.

Escritos com a voz negra de um Daniel, com o sorriso de um Goraz a ironizar a força das ondas.


As nuvens fizeram coro nas palavras e vestiram-se com os cabelos desgrenhados da Janis Joplin, despenteados pela ventania trágica da Lola Flores.

Mas disse à gaivota, em português, em inglês, em castelhano que há um verbo proíbido, aquele feio e de mau som que tem o desplante de ser esvaziar.


Se por acaso, amanhã, quando eu fôr no ar, à hora em que o teu corpo terá a vocação para ser nada e vir o estuporado do tal verbo obsceno a flutuar no céu, não te preocupes: apago-o.
Em nome de toda a gente que te conheceu. Com a espada da ternura que tens no sorriso, nos olhos, na tolerância que te cresce mesmo do silêncio.



Hoje, à noite ir-te-ei visitar.
Levo um anel que fui buscar hoje a uma caixa. Só o ponho quando tenho punhais espetados na parte mais dorida da alma. Ou quando tenho medo.



Aquele medo de que te falei ao telefone e que me disseste para não ter, com voz doce, leve. E começámos a rir.



Quase que te fiz uma promessa. Se a cumprir, se fôr capaz, chegarei ao pé da tua Lola,

pego-lhe nas mãos e ali a depositarei. Ficamos assim combinados.


No sábado, vou subir ao palco, à pressa, sem tempo para ensaio. nem sequer estava à espera.



Não penses que vais estar na plateia. Não. 
Vais estar ao meu lado, vais encontrar alguns que já conheces. Entras para o grupo que me ampara, que me aspira o medo.


Que me empurra para sítios que nem eu própria conheço. Que me acompanha para todo o lado quando as mãos me tremem e os pés perdem o chão.



Quando eu descair os ombros, tombar a cabeça para o lado esquerdo e tentar fazer a cara mais idiota que fôr capaz ao som de um grito violento de Beethoven, não chores como homem grande que és senão eu choro também. E não posso chorar.


Depois vou olhar para a memória sólida que tenho de ti e vou-lhe dizer só

Agrandaté niño, Verdito!

Porque ao pé dos teus, todos os meus verbos são patéticos. Por isso...


Hasta luego, coño!!!!!!


.....







15 comentários:

augusto, um entre mil disse...

os meus respeitos, Senhora.

Lizzie disse...

Senhor,

os meus respeitosos agradecimentos aos vossos respeitos pois já sabeis, de conversas na vossa casa que, em paragem ou movimento, é sempre


good to know you´ve got a friend


porque deve ser a amizade a fonte de maior bem.

Lizzie disse...

...e mais vos digo a propósito, que não se importaria o Mário Alien que aqui dissesse, que por duas vezes ou mais me empurrou no sentido de voltar ao palco, mesmo assim já aviada de 50.

Eu, nem pensar, credo!
E vai daí, Senhor, por outra amizade e justamente agora e quase de improviso, lá vou eu.

E ele...mas irá.

augusto, um entre mil disse...

sentindo-me um quase intruso venho desejar, Senhora, que tudo esteja bem convosco neste vosso regresso

e que o "trabalho" do fim de semana vos tenha feito sentir bem...

Lizzie disse...

Senhor,

embora compreenda o vosso sentimento de quase intrusão, longe de mim querer que assim seja.
É sempre com agrado que vos recebo e muito desejo que seja grande o vosso conforto.

E Senhor também vos digo que os tais "trabalhos" correram de feição, segundo me disseram, que em tais assados os próprios não andam com espelhos nem para eles têm tempo nem concentração para olhar.

Mais me foi dito que a minha melhor qualidade abafou o meu maior defeito. Válha-me isso.

Senhor, será sempre um mistério como ao subir as escadas se sente todo o corpo em terramoto e a mente explosivamente esmagada e depois, num segundo, tudo muda como se outra a pessoa fosse.
Estranha, repetida e supersónica metamorfose.

Mais custa, já que tal obra é neta, ainda por cima de traços muito parecidos, da Pina Bausch, parentesco que também, na altura esqueci e ainda bem para não lhe imaginar a figura austera de dedo apontado a cada expressão ou movimento. Perguntaria ela, logo ali, que faria aquela figura anã e irreverente em tal terreno.

Agora, por estes dias, anda por lá um homem, frágil de figura mas vasto em vontade e depois voltarei eu.

O susto que apanhei e preguei depois, foi curado com um bom cacau quente e uma boa noite de sono em que não me lembro sequer de existir.
Fiquei assim preparada para mais um enfrentamento daquela massa escura que parece reunir todos os juízes do mundo mais um que sou eu.

Mais uma vez agradada pela vossa visita daqui vos envio os meus respeitos em forma de vénia.

Arábica disse...

...poucos minutos antes das 5 saí porque a impotência de não encontrar um verbo de valia naquela hora para a nossa verdita me fez perceber que andava lá dentro perdida...

saí por minutos, um cigarro, um palavrão que fosse que me inspirasse. Sobre a igreja um bando de dezenas de gaivotas voavam e vociferavam em unissono contigo e comigo. Era língua de loucos, talvez fosse, lembrei-me de meredith monk, da expressão corporal que salva os corpos do silêncio e da rigidez dos musculos e as gaivotas em circulos largos e cruzados vociferavam alto todos os palavrões do seu vocabulário marinho e celestial...percebi depois que diziam que não conheciam verbo esvaziar - que não permitiam tal verbo - para eu te dizer - que não havia em lugar nenhum do mundo - importante para constar dos seus mapas e dos nossos cenários- tal verbo.

Contente fico pela promessa cumprida - pela continuação da vida - pelo movimento que nada pode travar - na marcha dos verbos construtivos que nos aproximaram:

SER PARTIR AMAR ESCREVER PARTILHAR OLHAR SENTIR FALAR DAR QUERER LIBERTAR CRIAR PROTEGER GERAR TER MULTIPLICAR GOSTAR ESTAR NASCER SONHAR VER NAVEGAR VIVER CAMINHAR FAZER UNIR O DESPERTAR DOS VERBOS CHORAR MOVER ENCONTRAR DEFENDER SORRIR ENTRAR COMPREENDER PEDIR VOLTAR ALCANÇAR CANTAR RIR AJUDAR IR DIZER DESATAR BROTAR REFLECTIR JOGAR CAIR DESPERTAR PREPARAR CATIVAR TRAZER RECORDAR USAR IMAGINAR GRAVAR ALIMENTAR LEMBRAR DEITAR REVELAR DEFENDER MOVER DANÇAR CONTINUAR MISTURAR ANOITECER OUVIR AVANÇAR LEMBRAR LEVANTAR DESATAR CHEGAR AMANHECER REVOLTAR.

E aqui estou de pé, saudando-te saudando-vos, ao teu lado. Dá-me lume que perdi a porra do isqueiro. Abraço-te.

Lizzie disse...

Vanda,

antes de mais, não foi esta a promessa que QUASE fiz ao Mário Alien.
Foi outra e disso falarei um dia só com a Lola que, para mal dos meus pecados,se calhar concordará que eu a cumpra e sem o QUASE.

De qualquer forma, com ou sem quase, é uma honra para mim ser digna de tal empurrão.
Já em miúda alguém disse que eu haveria de ser vitíma de tal empurrão.

As gaivotas, em certas zonas de Inglaterra e seus derivados, são os seres que comunicam entre o céu e a terra e, portanto, são uma espécie da alma, ou de transporte dela, que vive para além da fisicalidade óbvia do corpo.
(Isto a modos que muito resumido que é história longa)

Alguns índios chamam gaivota à memória (a palavra é a mesma) que é coisa que se guarda sem se ver nem palpar e que por isso surge ao lado dos movimentos e, os vai segredando mesmo quando outro som lhes abafa o mote.

Às vezes, só quando uma pessoa se vê, depois,é que percebe quantas gaivotas andaram em torno da dança. Quantas estiveram lá mesmo com voz imperceptível.

Desta vez movimentei os dedos das mãos como nunca tinha feito, ou seja, tornando-os como que autónomos.

Saiu-me mas acho que foi conversa entre uma gaivota antiga e uma muito recente que, se eu olhasse lá do futuro para o passado e juntasse tudo no presente, ia achar que se não fossem gaivotas, mas ainda pessoas, se iam adorar.

O esvaziar é péssimo, deixa feridas e depois as cicatrizes delas mas neste contexto, claro.
Noutros pode ser alívio.
E aí as gaivotas podem gritá-lo, dançá-lo e escrevê-lo numa cartografia eterna.

Toma lá o meu isqueiro castelhano, tamanho familiar e à prova de esquecimento.

Bjs

Arábica disse...

Como memória que s~~ao- as gaivotas deverão ser fiéis a si mesmas, por isso num contexto são assim de verbos e movimentos e noutros serão de outros.

Cada história tem a sua memória.

Pois então se não era esta a promessa - que a outra se realize, com vida própria nos dedos da força do empurrão e da convicção.


Obrigada, demoraste tanto tempo que tive de acender o cigarro no fogão, coño, mas obrigada. Acendo outro. Beijinhos

bettips disse...

Daqui só consigo dizer que se esfrangalha o peito e o vidro, quando está escrito nas paredes e em todos os lados
- que os bons se vão deixando um vazio enorme.
É a fonte de maior bem, a amizade. E é inesgotável.
Bj

Lizzie disse...

Vanda:

...acho que é mais cada memória ter a sua história.

Não me dês mau olhado, feitiço e assim com os isqueiros que ainda hoje me esqueci (ai como eu ando) do matacão castelhano e tive que ir comprar outro.

A boa notícia é que despejei o cinzeiro do tal carro que é um dos meus grandes amores na vida.

Vou-me embora outra vez.

bjs

Lizzie disse...

Bettips:

é mesmo o que sinto em termos de sensação física: vazio como se as perdas fossem um cutelo que rouba o que passou a ser nosso.

E os amigos só são sentidos como nossos quando os incorporamos no corpo da alma.

bjs

wind disse...

Desculpa lá, mas ninguém me responde, que se passou?

Lizzie disse...

Wind,

o que se passou foi que o nosso Alien, aliás Mário Domingos como assumiu após a publicação do seu livro de poesia O Despertar dos Verbos, do blogue Título qualquer serve, morreu subitamente, ou seja, sem que ninguém estivesse preparado para isso.

Não tens que pedir desculpa, obviamente.

wind disse...

Obrigada Lizzie.
Olha, estou chocada e triste:(
Muito triste.
Se falares com a Lola diz-lhe que sinto muito, por favor.
Beijos

Lizzie disse...

Wind,

de nada.


Pois, foi um grande choque.

Se falar com a Lola, claro que transmitirei a tua mensagem.

Bjs