terça-feira, 28 de setembro de 2010

Tendo a Arábica falado em tosse, e tendo eu estado numa loja de fotocópias onde os típicos funcionários me parecem sempre lívidos e onde o cheiro à transpiração do papel me irrita a garganta, fui à memória buscar estas alembraduras do que fui coleccionando.

Da palidez estética da tosse


E, assim de repente, lembro-me que no séc. XIX, a tosse a par do tom de pele, dentro da raça branca, bem entendido, a largura dos ombros, o calibre dos tornozelos e pulsos, eram factores, sobretudo na Europa, de distinção entre as humanas criaturas.

Uma tosse profunda, aquela em que o tossidor situado em cenário de Charles Dickens, parece compelido a expulsar até o esqueleto através dum sistema enferrujado e histérico de foles esquizofrénicos, sempre foi uma tosse desprezível:

obreira, indisciplinada, barulhenta, negra, com falta de graciosidade, símbolo de uma mente pouco sofisticada. Chamemos-lhe tosse de sarapinheira.

Outra espécie era a tosse subtil, discretamente expirada.
Como um suspiro vestido de lamento.
Chamemos a esta Tosse Chopin


embora também se pudesse chamar de Tosse Lizzie Siddall, Tosse Dama das Camélias, Tosse Byron, Tosse Mimi de Puccini, Tosse Modigliani já que a Tosse Gauguin era capaz de ter um som mais nativo e exótico.

O factor tosse em forma de tossicula estava, claro está, relacionado com a chamada Doença Branca, a Tuberculose, e esta com um modo de estar artístico e romântico, avesso a ciências e desenvolvimento eufórico da maquinaria.

Como se sabe, em cada revolução industrial ou tecnológica, pretende-se uma osmose entre a alma e a máquina contrária a qualquer forma individualizada de sentir.

Ter tuberculose era um sinal artístico de grande sensibilidade.

O tuberculoso era por natureza melancólico, etéreo, a quem a febre baixa dava exaltação aos sentidos e sentimentos, fonte interior de toda a criatividade.

A ruína do corpo revela ao espírito as verdades supremas da alma.

Não é por acaso que qualquer decoradora de interiores inglesa ou alemã da época, recomendava para as paredes quadros em que constavam ruínas no meio de folhagens despenteadas.

Nos salões, havia mesmo quem desse aulas da arte de bem tossir a par da colocação de voz e colocação dos talheres.

Imagino que quer o espartilho quer o colete engomado ou armadilhado de “barbas de baleia” desempenhavam papel principal na contenção do espasmo tússico.

Alguns livros de etiqueta, quer para senhoras quer para cavalheiros, ensinam mesmo em que ocasiões se deve ou não tossir.

A tosse é, indiscutivelmente, um instrumento de sedução.

Manda o recato que uma senhora não demonstre a sua perversa tendência para tossir à vista de todo e qualquer cavalheiro.
Estes, à vista de senhora ou menina delicadas, quiçá moribundas, deveriam levar o lenço bordado à boca. De cambraia, simbolo da disponibilidade para morrer de amor.

E era sinal de êxtase o público tossicar durante os concertos, sobretudo nos de instrumentos a solo, coisa que tornava Wagner ainda mais iracundo e viperino do que nele era habitual.
Numa fase tardia, talvez fosse uma das poucas coisas em que ele e Nietzsche estavam de acordo.

Não faço ideia se as famosas tosses do S. Carlos, aquelas que surgem como se estivessem armazenadas para o efeito, terão tido nesses arroubos o seu embrião.

A top model desta altura era Lizzie Siddall,


senhora que, como já disse algures, várias vezes morreu, outras tantas ressuscitou. Menos aquela em que leis naturais lhe negaram definitivamente a eternidade física.
A sua imagem e personalidade, no entanto, sempre inspiraram, sobretudo em períodos de crise financeira ou de outros valores menos práticos.


Tornou-se a face do ideal de beleza feminino.
Note-se que a maquilhagem, ao contrário do séc. XVIII, se pretendia o mais natural possível.
A carregada de cor, ficava reservada para as prostitutas, em Inglaterra chamadas, sem rodeios, de Espanholas. Imagine-se o agravo diplomático!


Para adquirirem um look pálido, esvanecido, senhoras e cavalheiros eram aconselhados a tomar pequenas doses de arsénico ou grandes de vinagre, para que a pele se tornasse pálida e os olhos diáfanos.


E para o olhar adquirir um brilho vítreo, lavavam-se com água contaminada de sumo de limão ou laranja.

Para a pele do rosto adquirir um tom ceroso,


nada como umas horas de pachos de vinagre seguida de um bife em sangue sobre a cutis, para além da naturalidade da cosmética francesa já então em pleno desenvolvimento.


Apesar do risco de cegueira, os cavalheiros deviam masturbar-se compulsivamente. A palidez e a tosse subtil ficavam, sem dúvida, asseguradas.


Antes de entrar numa sala, devia-se também beliscar as maças do rosto para que surgisse aquele rubor tão habitual em qualquer sanatório.

Ou beber um cálice de Oporto Wine, reservando-se o gim para o povo.
Também convinha o próprio, ou terceiro, mordiscar os lábios de forma a inflamá-los.

Lord Byron, intimo de qualquer espelho que encontrasse, morreu com a certeza de a sua palidez, quando no caixão, ser ainda capaz de provocar tosses e devaneios nas senhoras que o velassem.


Às bailarinas de Ballet erudito, era contudo permitido o uso exaustivo de maquilhagem, sobretudo o eye liner escuro e as chamadas bases, de forma a acentuar o dramatismo dos enredos dançantes.

Conta-se que uma russa, em Moscovo, tinha por hábito desmaiar de fraqueza, depois das performances, à saída do camarim, de forma a ser carregada em braços pelos admiradores que por sua vez se matavam pelo privilégio do carrego.



Dizia um critico que a divina artista até a tossir parecia voar em direcção ao Olimpo.
Lamento, mas de momento não me lembro do seu nome. Devia ser uma TussiOva Desmaiovitch qualquer. Suponho.

Note-se que tal languidez em palco e fora dele, provocaram fartos ataques de mau génio nas inovadoras damas americanas da dança moderna a quem pulmões e orgulho muscular não faltavam.


E por aqui me fico, ainda com tosse mal educada de carvoaria, relembrando o enjoativo xarope à base de cenoura,

os milagres em forma rebuçado
e o relaxante vapor de água, tudo da infância, não sendo já do tempo das papas de linhaça nem do alimentício e paliativo fígado cru envolto em açúcar.

Sejam quais forem os hábitos do mundo, qualquer tosse, teatral ou não, talvez se cure com um fim de tarde em que a brisa de Outono conta histórias à flor de uma qualquer memória que ainda hoje deixa rasto pelo Tempo.


10 comentários:

frioleiras disse...

chopin.... dos meus ...
para sempre e como sempre............

(regresso, com os fulvos do outono... ao prazera de revisitar ... sítios

com

sensibilidade................)

Lizzie disse...

Magnólia:

Se calhar a sensibilidade, porque ligada aos sentidos e sentimentos, é o que fica, e nunca morre, para além de todas as friezas de todas as épocas.

E, no Outono, apetece-me entrar dentro de um desenho a sépia de Caspar David Friedrich, sentar-me lá a ouvir Chopin e a ler Thomas Mann ou Kate Chopin, brincar com a luz, saltar para o sofá, ou mesa de trabalho e ver anoitecer em Madrid enquanto bebo chá e me lembro das cores de New England, ir lá pisá-las enquanto passeio com Henry James com os sinos de Arvo Part ampliados pela noite e que traduzem a expressão dos que vão beber cacau quente como se vivessem num casulo estacionado numa terra de ninguém...and so on and on:))

Obrigada!

Frioleiras disse...

a tosse................

como haveria Wagner de a suportar?

A tosse e todos os estigmas de boudoir .. não seriam mais da burguesia?

Penso que sim.............

Relembro a «catedral» de Wagner em Bayreuth............

As portas de acesso à sala (dos concertos) eram fechadas à chave logo que o público se sentava e começava a opera........:-)

Ele era o dono e senhor da sua «catedral» (provavelmente com excepção de Ludwig, penso eu...)

Como poderia ele suportar as «tosses»... E não consigo imaginar as sras da Bavieira com esses requebros de etiqueta
afrancesados "à la Dame aux Camélias‎"....

Lizzie disse...

Frioleiras:

Não vou contar porquê, que é coisa longa, mas lembro-me que numa carta de Wagner para Liszt, aquele já considerava as tosses pálidas simbolo da decadência social burguesa e judaica e pouco digna do (já) contagiado espírito germãnico.

De facto, numa determinada altura, os alemães tossiam imenso embora não tanto como os ingleses e muito menos que franceses e russos (estes com uma forma de tossir mais...peculiar).

É por isso natural que não se "tossisse" na "Catedral":)

Nem estou a imaginar tosses protocolares afrancesadas nas tertúlias de Cosima:))
nem no delirante Hitler, com a sua obsessão doentia por Wagner.

E penso que a catedral (também no sentido simbólico) era exclusivamente de Wagner na medida em que, durante esse período, até a alma de Ludwig lhe pertencia.

Não se considerava ele, e era chamado, o (Rei) Cisne,,a propósito do Lohengrin?

(aqui já entra um bocadinho da complicada história dos arredores da Dança)

Acho que sim, que a tosse era uma coisa burguesa embora com as voltas que o mundo dá, o movimento Dandy ,sobretudo em Inglaterra, a tivesse adoptado como forma de desprezo para com as poses da burguesia.

É engraçado que os descendentes ainda tossem.

Talvez cada Tempo, arranje as suas próprias formas de tossir e respirar:)
Como tudo, é uma forma de linguagem, acho eu...

Lizzie disse...

...e, já agora, Frioleiras, há tosses que passam com as cores dançadas de Monteverdi, com Outonos nocturnos, com cacaus magros e sem açucar, com a visão estimulante das luzes acesas nas casas das cidades que, adormecidas, se recusam a morrer:))

o Reverso disse...

Senhora,

pois eu classificaria de chata este minha tosse que não me larga há já três semanas e de noite não me deixa dormir.

pálido não ando, mas uma calvície incipiente começa a preocupar-me, calvície que julgo nada ter a ver com o meu problema gargantal mas que começo a achar muito chatinha também.

o Reverso disse...

ps- um comentário bastante idiota mas o que hei-de fazer!

Lizzie disse...

Estimado:

não me parece que a sua calvíce tenha a ver com a tosse.
Recuso imaginar que cada vez que tosse, com a ventania balistica que sai do seu peito torturado,o vosso cabelo seja arrancado e fuja para não mais voltar.

Vivi sempre rodeada de homens com falta de cabelo. Uns descabelados outros não. O meu próprio pai, aos trinta anos, já era mais careca que o tradicional Stº António.

Espero que não lhe dê para fazer aquilo que muito me fazia rir quando era miúda: havia um personagem que saía do Vá-Vá sempre a favor do vento para que este não desfalcasse a já pouca abundância capilar nem lhe desmanchasse o arrumo estratégico do pouco que tinha.

Estou absolutamente solidária consigo em relação à tosse. Com conhecimento de causa.
Vi muitos filmes, sem pó nem western, noite dentro, enquanto esperava pelos três dias e noites que os comprimidos levam a começar a educar as formigas que se passeiam pela garganta e brônquios.
Quase me apetece chamar-lhes "Espanholas".

Sempre imagino que seria bom meter os dedos por entre as costelas e coçar directamente tal prurido.

Às vezes tento concentração para me convencer que estou a coçar os interiores com uma mãozinha daquelas que se vendem nas feiras para chegar às costas.
Depressa percebo que a concentração ocidental e pouco mistica é nula para o efeito.

E não, Estimado, não acho o seu comentário, que agradeço, nada idiota.

As suas melhoras e os meus, sempre respeitos

Alien8 disse...

Tosseova Desmaiovich, exactamente, é esse o nome, tens uma memória de elefante, Lizzie! :-)

Cof cof!

Saia um xarope de cenoura (deram-me a tragar poções bem mais desagradáveis...)

Cof cof cof!

Cough!

A tosse é também a forma tradicional de aplauso nas serenatas de Coimbra, em substituição das palmas, rigorosamente proibidas.

Digo isto por te saber intimamente ligada à canção coimbrã, desde pequenita, e apreciadora incondicional do género. Cof cof!

A tosse é burguesa? Era? Sim, mas só alguns dos tipos de tosse, a tosse "fina", cultivada, digamos. Porque o catarro dos mineiros e carvoeiros e adjacentes era claramente proletário!

Donde virá a expressão popular "eu tiro-te a tosse"? Cof cof!

Recomendo os rebuçados Dr. Bayard, e mais não digo. Por causa das tosses :-)

Beijos de ambos.

Lizzie disse...

Alien:

Qualquer dia ainda faço um post sobre as bailarinas russas e os seus admiradores. Histórias de pasmar que parecem da mais doida ficção:))

Quanto a xaropes, ai que nem me fales...o de cenoura com hortelã era o mais caseiro e suportável.
Ai tantos que provei,ai que tanto tossia, maldita farmacopeia:))

Olha que não sabia isso das tosses como aplauso.
Embora tenha tido ligação com pessoas daquele fado,sobretudo com uma, esses pormenores nunca me chegaram.

Continuo, sim senhor, a divulgar a estrangeiros vozes ligadas ao fado de Coimbra. Até para mostrar que há fado para além de Lisboa. Uma questão de justiça.

Ainda a semana passada recomendei, a casal americano, um cd do José Afonso, outro do Adriano Correia de Oliveira e outro do Luiz Goes.
São os que conheço melhor.

Quanto a tosses, por incrível que pareça (até acho um bocado falta de respeito) há um sector burguês, hoje, que tenta imitar o catarro proletário como forma de demonstrar muito fumo, muito alcool, muita noite mal dormida e etc e tal:))
Enfim muita vida...

A imitação da tosse tuberculosa foi mesmo um fenómeno burguês.
A aristocracia, tuberculosa ou não, não tem tendência, nem hoje, para imitações. Normalmente é o que é.
O povo-povo, não tem outro remédio senão tossir a tosse que a natureza lhe dá.

Essa do "tirar a tosse", ou "já te dou a tosse" e "por causa das tosses", também não faço ideia.:))

Há tantos anos que não como Dr.Bayard:))

Beijinhos