terça-feira, 14 de setembro de 2010

Este vai, sobretudo, em resposta aos simpáticos comentários do anterior

Do comboio que plantou carris no mar enquanto ouvia flamenco

Ainda agora desci da suada montada, entreguei as rédeas ao garboso moço de estrebaria para que a cubra com manta que até tal maternal e cuidada tarefa me parece esforço hercúleo.

Chego ainda com a preguiça diluída no sangue, na proporção de oitenta para vinte senão chegar mesmo à de noventa e nove para um.

Ai, que ainda tenho na pele a cor dos dias anárquicos e a lua na luz dos olhos.
Quão confusas andam as pálpebras sem saber se devem ou não obedecer à ordem de subida…

Porque, Alien, em qualquer dos ibéricos quartos brancos não fechei a porta ao sono.

E dormi tão profundamente as sestas que acordando de tão subterrânea ou universal ausência e em posição de crucificada horizontal, muitas vezes me perguntei, com espanto, se não havia eu caído do tecto.


Magnífica osmose aquela em que dois seres, a cama e eu, somos fibra do mesmo corpo.

Oh, poderosa lei da gravidade. Igualzinha na Lusa Costa Oeste e na buliciosa Madrid…

E, antes ou depois, dar longos passeios pela praia longa, longuíssima, sem as euforias estivais e populosas. Sem risos obrigatórios nem diversões forçadas.

Só a olhar a pureza do mar, aquela vida líquida que não se cansa e onde soa o ritmo, às vezes incerto, de um coração eterno.

Por isso, sei lá, Estimado e Saudoso Triliti, se sou do contra ou se tenho o vício de pôr os pensamentos a fazer o pino.

Não que eles sejam particularmente atléticos, acrobáticos ou dotados de superior agilidade. É apenas uma questão de tentar ver o contrário do lado comum das coisas.
É que ver o inverso das coisas, Estimado, lhes muda a essência e a forma.

Para o bem e para o mal.

É assim uma espécie de Quarto Independente, daqueles que embora pertencendo à casa geral permitem a entrada e a saída por porta que dá para o patamar.

Cá para mim e suspeito que para nós, devia constar na Declaração Universal dos Direitos do Homem artigo onde se decretasse a posse de um tal quarto onde todos os Segredos são contrários ao rotineiro molde da perspectiva euclidiana, tão monótona, rectilínea e ordenada na posição dos exactos pontos de fuga.

E saibam que até no meio de petiscos, com matéria prima quase sempre vendida por um pescador do Oeste com expressão intermédia entre um robalo clandestino e uma figura de Franz Hals, se pode apanhar um comboio com destino desconhecido.

A estação de partida pode ser o enredo das várias telenovelas emitidas pelos serviços de telejornais portugueses, ou telediários espanhóis, escritas por argumentistas de cordel.

Pode a seguinte ser a especulação sobre a biografia da senhora tão calada que se senta sozinha a olhar o mar e que me fascina por ter ar de anjo à procura de quem proteger porque, talvez, talvez, talvez, quem protegia lhe fugiu do conforto das asas.

Como toda a gente que perde, olha ao longe como se esperasse um qualquer possível regresso. Lá das bandas da terra da morte ou de um território silencioso ainda mais profundo.

E na seguinte paragem, invento a História Trágico Marítima da Pedra Divorciada.

Pareceu-me, recolhendo-a da areia, que tais são as arestas talhadas a golpe bruto, que terá dado à costa por rebeldia contra a violência doméstica por parte do mar.

E a estação da tagarelice da cigana que me vendeu as botas Van Gogh,

38 a precisar de palmilhas, ai Bettips:
"amori, quersias pró jardim? Ai qui iliganti!"
Muito!

Mas soam tão bem no cascalho como os pneus do carro de quem gosta de madrugar e traz pão de côdea estaladiça, peixe fresco e fruta com identidade de sabor intenso e próprio.
Pêssegos refugiados em pomar caseiro são orgulhosamente pêssegos.

Foi tão longa a viagem, nos dias e nas noites, em terras lusas e espanholas, que já nem me lembro da maior parte da paisagem. Não tenho agendas para actos espontãneos. Vou-me lembrando.


(Claro, Alien, que guardo sempre as vistas sobre a versatilidade das gambas e do pão de Valência comprado a meio da noite na padaria de Madrid em nada superior ao de Mafra.)
Lembro-me, sim, que algumas estações e apeadeiros cheiravam a expressão e a palco e que os demais viajantes e eu , tínhamos o aroma de gestos roubados às senhoras que esperam, às pedras martirizadas e à prova de suplício que esta árvore deixou no solo depois de cortada:


Quer seja em forma de performance, dança, desenho ou palavra, talvez estes elementos, embarcados na Estação de Sta. Inspiração, não se enganem no terminal onde devem sair. Ou talvez se percam. Logo se verá...


De qualquer forma, não se chega a lado nenhum sem uma viagem a que lá se seja levado.

Dos temores que me atormentaram na primeira semana e que por enquanto, dada a sua inevitabilidade no ciclo natural entre vida e morte, foram adiados, não vos falarei. Apetecem-me tanto como o calor. Sei lá onde deixei a mala onde trazia o fresco das noites marítimas...

O mais importante, é que mesmo aqui sentada, ou sentados vós, toda a gente viaje pela estrada que melhor lhe receba os passos.

Os meus Abraços e Respeitos!

9 comentários:

bettips disse...

Lizzie:
que tenho umas botas coño
achadas-perdidas num degrau-
caminhante de Santiago - e quando as vi pensei nos andarilhos todos que se cruzam na etérea-mente.
Hei-de mandar-tas, vou pô-las num outro lugar (o clickit que está ligado a outra conta... que diabo, também já te vi botar fala noutro lugar mais "interno"... ah que a memória já não é o que era! Mas irei descobrir, um dia destes)
Abraço dançante, vou para os montes dourados em Setembro, alto Tejo, da Extremadura ... quererei espreitar Mérida e se calhar Las Hurdes da Terra sem Pão...eu sei lá do que sou capaz e me alembro fora de mim!

Lizzie disse...

Bettips:

ai o que eu dava para calçar as minhas botas de sete léguas e ir por aí fora a gozar a luz de Setembro...e, por luz, também não me fazia mal nenhum se as botas caminhassem sobre as águas que ainda tenho pernas para atravessar um oceano inteiro. Aí juntava luz e cor em passo de gigante.

Mas em vez de tal jaleo, coño, estou atafulhada em obrigações, em vida sustentada e a modos que suspensa.
Até parece que o trabalho estava com saudades minhas.

Por acaso, ainda este mês, me voy yo a Mérida de braço dado com Wagner, Mahler, Beethoven e Nyman.
Quando se viaja com três fantasmas e um vivo, é grande a probabilidade de tormenta.

Quanto a lugares mais internos, pois junta dois nomes (já expliquei lá a questão) e...pronto.

Entonces, boas andanças e abraço, porsupuesto!

clickit disse...

Deixo (arrasada de símbolos e procuras) as botas e os votos nesta morada. Até breve, Lizzie, que os músicos, escritores, pintores, poetas... e todos os outros, os bons e os belos, te acompanhem.
Bjs

Alien8 disse...

Lizzie,

A pressa é tal que escrevi no post anterior o que devia ter escrito aqui! Nada de especial. Aqui deixo-te outro abraço.

Lizzie disse...

Clickit:

embora a trote,já as fui ver. E já vi que estão bem acompanhadas.

Lá voltarei em passo de peregrinação, mais lento.

Mal de quem não se faz acompanhar de criadores, sejam lá eles de que terreno ou tempo forem...mal de quem não tenta ouvir os pássaros que têm na alma, mal de quem não gosta de porteiros para várias visões do universo.

(Como neste exacto momento, estou rodeada de pensamentos normalizados envolvidos em cérebro, sinto-me clandestina...como os robalos e os pêssegos fora dos calibres exigidos:))

Então até breve e um abraço com palmilhas por via da descoberta dos caminhos:)

Lizzie disse...

Ai Alien, que também ando numa espiral de dead-lines!

Ainda por cima não concordo nada com a conversa tradicional da cigarra e da formiga nem com a outra da costureirinha aplicada, coitadinha, que, não sabe mas morrerá muito morta e em crise, com os olhos tortos e corcunda por deformação profissional para além das agulhas espetadas nos dedos e em caixão de rendas mal alinhavadas:)

Ai que sesta que eu dormiria agora...depois trabalhava o dobro, assim pela fresca já com sonhos sonhados.

Obrigada, ó também trovador (cá para mim) por teres passado por aqui.

Abraço x 2, pues claro!

o Reverso disse...

faz hoje um ano era dia 21 de setembro.

hoje é dia 21 de setembro,


salvé o dia 21 de setembro.

Arábica disse...

Pois que nem sei de botas, nem de grandes montes ou montadas, mas sabia que havia de cá chegar em dia certo de luz...
Pois que Setembro é assim e faz as escuridões mais suaves e as luzes fortes de estio, mais suaves também...
Faz hoje um ano, coño, tu tossias e eu não. Espero que este ano, seja eu apenas a tossir. :)

Parabéns, Zizzie, dia muito feliz! :) Beijos

Arábica disse...

Deixei encomenda na gare ferroviária do costume antigo. :)