De um modo arredondado, sempre vos digo que nestas bandas do hemisfério norte, América nativa e colonizada incluída, tanto quanto se sabe, Julho sempre foi o mês da dança e do sonho, do sol e da água, para além de ser conhecido como o Tempo das Cerejas.
A partir da Idade Média, inclusive, sempre se esqueceram as leis dos Deuses e dos Diabos e se soltavam os corpos das gentes em movimento e tropelias.
Se nuns sítios, de um lado, saltavam reis e senhores, rainhas e senhoras com passos ensinados pelos mestres das cortes e do outro pulavam a ritmos gritados plebeus sem normas, noutras partes, em Julho, todas as classes se juntavam na folia.
O que mais tarde se chamaria folclore recebia influências das cortes e as cortes do folclore num paganismo de calor e sol que nenhum teórico sisudo avesso às liberdades do corpo conseguia inibir.

Ficou célebre a Praga da Dança, alastrada a partir de Estrasburgo, em Julho de 1518.
Conta-se que uma mulher, Troffea de seu nome, provavelmente ouvindo a música tocada na sua alma, começou uma doida dança nas ruas.
Atrás dela seguiram-se muitos num cortejo anárquico sem regra nem parança, sem dia nem noite. Muitos sucumbiram exaustos, tombando em terreiro de feiras ou embaraçando o trânsito nas vielas.
Descreve um monge escandinavo com vocação para repórter, que se perdiam os pudores da carne e da mente e que nem novos nem velhos temiam alçar as vestes ou mesmo despi-las expondo ao sol e à lua as suas riquezas ou misérias, agitando-se sem outro ritmo fixo senão o da sua urgência e alegria em mover-se.

(Nos anos 60 e 70 do séc.XX, alguns coreógrafos e teóricos da coisa tentaram reproduzir esta Praga, com fundo musical de LSD e outros instrumentos.)
De forma mais ou menos destravada, em todos os reinos e tempos fora, Julho era tocado por esta febre.
Como curiosidade, em certas zonas de Inglaterra e Irlanda, acendiam-se fogueiras dançando o povo em volta delas.
Tais movimentos consistiam num ousado maneio da anca e dos ombros, mãos na cintura em pose de desafio. Pedia-se assim que o sol emprestasse ao corpo poder e fertilidade. Esta dança chamava-se Dança do... Fogo de Santo António.
Nesta zona e nos países nórdicos também se dançava dentro de ribeiros, lagos, tanques, com intenção de absorver a alma da água, mãe de todas as almas.
Em Espanha, os homens depois de combaterem com touros e de lhes comerem os testículos, dançavam inebriados de poder masculino para mulheres de sangue assim aquecido.
(Ainda hoje a “volta à praça”, tem uma conotação de elevado erotismo solar masculino.)

Em certas tribos índias da América do Norte, também se dançava sem parar em louvor do sol. Neste caso, os homens executavam a Dança do Castor, bebendo-lhes o sangue. Como toda a gente sabe, castores, coelhos e demais roedores raramente precisam de pedir energia emprestada a comprimidos azuis.

Do que faziam a colonizadores capturados no mês de Julho, pois nem vos digo nem vos conto que não vos quero arrepiados.
Mas continuando por estas bandas europeias e já que agitar Santos exorcistas se mostrava inútil a esta febre de liberdade pagã, as autoridades resolveram patrocinar estas folias, estabelecer-lhes espaço e datas fixas, dando-lhes assim legitimidade.
É facto histórico que quanto mais impopular ou autoritário fosse o reino, mais patrocinadas eram estas festas.
Não é, por isso, de estranhar que nas ditaduras quer de esquerda quer de direita, no séc. XX, as chamadas tradições populares sejam enaltecidas e fomentadas mesmo nos seus aspectos mais negros e contrários à evolução na sensibilidade dos tempos.
O que já é hábito,conhecido e simples não desperta o pensamento para perguntas.
Em termos de elites, Julho também era fértil em Danças. Também aqui a folia durava vários dias.
Celebravam-se bailes nos jardins e espectáculos onde se surpreendia pela inovação e habilidades.
O público farto do quer já tinha visto, queria aprender novos passos, espantar-se com o novo.
Há quem diga que se traziam bocadinhos de sol no esplendor dos fogos de artifício, por exemplo.
No Renascimento, com a entrada em cena da burguesia endinheirada, começaram os contratos para os capazes de inventar novidades. Cada casa queria surpreender mais que a outra.
Em Inglaterra e sobretudo na Germãnia contavam-se histórias, faziam-se sátiras dançando, cantando e falando.
Estão aqui os primórdios da Dança-Teatro do séc. XX-XXI de que Pina Bausch foi o mais exemplar e mediático corpo.

Com o avançar do tempo, estes espectáculos deixaram os palácios e seus jardins, para se transferirem para espaços próprios, mais abertos a quem nas cortes ou salões fechados ou floridos não tem entrada.
Mas como toda a gente que vê o boletim meteorológico sabe, o sol brilha nuns sítios e distrai-se noutros deixando que as nuvens o escondam.
Assim, esteve o céu muito nublado quando no dia 5 de Julho de 2005 foi extinta a dança que brilhava entre os dez maiores brilhos do mundo: o Ballet Gulbenkian.

E em 2010,agora, em Madrid, no dia 4 de Julho, um dos cinco sóis mais quentes e bronzeadores do Planeta, dará o seu último espectáculo de luz.

Outros sóis mais pequenos também se apagarão. E os festivais destes sóis, marcados para Julho, já foram extintos, sendo o pecúlio a eles afecto transferido para “festas populares”. Assim mandam governos.
Neste Julho, muitos despirão os trajes com que vestiram sonhos. Os seus e os dos outros.
O sol só brilhará na memória e sei lá se lhes voltará a queimar os pés no futuro próximo.

Nestas lides, só se pode andar descalço até uma certa idade. Depois sente-se o chão de uma outra maneira. Choverá mesmo para os que já andam calçados e ensinam
ou orientam os outros a andar ou lhes inventam movimentos ou os vestem ou os maquilham.

Ficarão, apenas, os corpos e as sonhos vestidos com uns farrapos, onde, olhando com atenção, talvez se veja a transparência das lágrimas do sol.
Até que um apresentador ou apresentadora, corra a mão pelo mapa e

diga que na Europa o céu amanhã estará limpo ou pouco nublado.

Porque o sol sempre foi capaz de recuperar toda a sua natural atenção.
