quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vai este, não apenas mas também, como modalidade de resposta atrasadíssima aos simpáticos comentários da Lola e do Estimado Triliti a quem, por estar entrevadinha, coxinha, parvinha para além da conta, com pouca computação ao dispor e entretida em afazeres que o tempo disponível, o estímulo da companhia que demais aleijadinhos permite para além de gozar tempo nocturno sem toque de alvorada marcado (o prédio não tem ninguém com obras em casa), não respondi com a prontidão habitual.

Dos tempos, dos baús, dos bons gigantes, da Nossa Senhora dos Infernos e do que mais fôr aparecendo.


Sem rotina fixa, tive tempo, nestes dias, para abrir alguns baús.

Abri um pequeno de madeira;

outro maior em forma de mala de viagem em couro com fechos já oxidados e recheado de alegrias, pausas, tristezas e pensamentos fechados em forma de toalhas e naperons de renda, ainda com o cheiro a alfazema das mãos que os rendaram, e que também eles me contaram histórias que por sua vez qualquer dia vos hei-de transmitir porque nem só as torneiras falam,

e um outro baú neuronal que, dentro de mim, me revelou a herança de em tudo meter o nariz, sobretudo no modo prático de fazer nascer as coisas e de as trabalhar.

Calhou, num destes dias estar a ler sobre as alquimias poéticas, se assim lhes posso chamar, que Giotto


e outros Mestres utilizavam, num tempo em que ainda não existia a separação tão separada entre a Arte dos Artífices e a Arte do Intelecto Com Nome Em Pedestal dos Ismos Pós Neos Retros Noves Fora Nada, vício classificador e espartilhado que só começou lá para as bandas do séc. XVIII.

Calhou ter vontade de fazer uma experiência com um pigmento que está na epiderme da pele de uma terra que existe, dizem, apenas em Itália, na zona de Toledo e no norte de África.
Já diz Doña Rosa que enquanto não sujo as mãos com tudo o que não seja farinha ou batatas não descanso.

Calhou ter olhado para as miniaturas muito miniaturais de uns potes e bilhas, adormecidas na tal caixa de madeira, que comprei há muitos anos na Olaria do Desterro em Lisboa e que não cheguei a oferecer à Senhora das Rendas com mãos de Alfazema porque a morte fez a maldade de a convidar para o seu reino, enquanto eu andava pelo outro lado do mundo.
Talvez , por isso, tenham o dramatismo de um gesto eternamente suspenso e me ensinem que nunca se deve dar amanhã o que se pode dar hoje, de preferência já e agora.

Calhou uma americana ter dito que conhecia uma olaria, num sítio inesperado, perto de Toledo, antiga oficina onde teriam vivido juntos vários mesteres, todos eles a segredar pigmentos.


Calhou toda a gente presente ter tido uma fome urgente de viagem para fora de clausuras corriqueiras. Calhou ser possível saciar a sede de terra aberta, pura e livre.
Calhou um brilho nos olhos dos capazes Ambrósios na antecipação de dar largueza às viaturas.


Calhou haver pretexto.

Ainda vestia eu o meu casaco de aviadora transatlântica, pegava no britãnico bastão e já me parecia que ia rolar em direcção ao centro ancestral do tempo. Aqueciam-se os motores da curiosidade.

Passada a loja de recuerdos em que ninguém estava interessado, foi fácil entrar nos órgãos vitais da tal olaria.

E tal como na do Desterro, pareceu-me que naquele mundo de silêncio, ninguém parece ter nascido em ano algum: teriam os novos sempre sido novos e os velhos personagens sem infância nem outro qualquer corrente estado datado de evolução.

Também como no Desterro, o Mestre tem o semblante mítico do bom gigante. Quase, quase a ilustração animada de um conto infantil.
Andar pesado, arrastado, de quem tem medo de deixar a terra por um milímetro ou segundo que seja mas, este, com aquela pontinha afoita de loucura quixotesca tão frequente nos espanhóis daquela zona.


É fácil o fascínio pela obediência da terra domesticada à dança dos dedos.

Mas quando, no terraço, mudei uma planta para um vaso lá comprado, revi com clareza a mulher grávida de fogo que lá conheci.
A que o ateia, a que o mantém engavetado nos fornos.
Baptizei-a logo ali: a Nossa Senhora dos Infernos.
Figura sisuda, sem palavra que se ouvisse mas com muita linguagem na forma como limpava as mãos ao avental, peça de vestuário que parecia tão intima como uma extensão anatómica do corpo.

E a religiosidade silenciosa, sem Deus definido, como dobrava os ombros. Com toda a alma guardada num cofre.
Entre ela e tudo e mais a luz, Millet acordou.
Como um monumento.

O bom gigante entregou-me um saco da tal epiderme sangrenta da terra e em cinco minutos ficámos a saber os rudimentos essenciais da forma como o preparar.

Não sei se El Greco, lá no seu tempo, também terá aquela ouvido aquela lição. Não faço ideia. Talvez sim, talvez não.


Enquanto eu, na cozinha, esmagava os pedaços num gral, na categoria de aspirante a aprendiz,
Doña Rosa trágica e convertida à tisana de gengibre que lhe ensinei, advertiu a gata para o perigo, convenhamos que não absurdo, de eu confundir em momento inoportuno, a mistura com pasta de tomate ou pimentão.

Eu ri-me do eventual gaspacho pictórico.
Doña Rosa abanou a cabeça.
Levantei-me, inventei um avental, curvei as costas, fechei a cara.
-Tiene usted más dolores?
-No, qué va Doña Rosa...soy Nuestra Señora de los Infiernos!
-Ay, Madre mía...que tonterías dice! Ay que tenemos teatro, Pepa.

A gata Pepa Imaculada bocejou, enrolou-se e adormeceu.
E a vida, como sempre, continuou.

2 comentários:

Alien8 disse...

Sí, que tenemos teatro!

Realmente, tenho que (pelo que vou lendo...) dar razão à Doña Rosa: Enquanto não sujares as mãos com tudo o que não seja farinha ou batatas...

Imagino a gata Pepa a observar atentamente a alquimia dos pigmentos ou até dos pimentos, isto enquanto não lhe desse para bocejar, já desinteressada.

Há males que não vêm por bem, mas trazem oportunidades como estas de abrir caixas, baús e olarias e ainda outras coisas que nem se sonham mas se praticam.

Lembro-me da olaria que me fascinava em miúdo, algures no Alentejo, não muito longe do poço de onde se tirava a água e onde se punham os pirolitos e as gasosas a refrescar. Também me lembro de quando, no jardim-escola, me pediram para fazer um barquito de barro. Coitado, aquilo saíu torto e afundaria num instante, mas soube-me bem. E deixou-me um recado: Nunca mais tentar essa arte. É pena, pois é. Paciência. Haja quem a cultive e descreva.

Abraço, Lizzie.

Lizzie disse...

Alien:

Quem diria que duas inimigas iniciais como Doña Pilar e eu nos haveríamos de tornar tão cúmplices...!

Quase me adivinha as intenções: vendo-me olhar para o copo misturador onde torturava, com expressão digna e severa, os legumes constituintes de saboroso gaspacho madrileno, disse-me logo que nem tal coisa me passasse pela cabeça, que o gral antigo me fazia muito bem:))

Mas desta vez fez queixa de mim. Não é bonito ir dizer que roubei azeite para juntar à mistela pigmentosa e que andei pela casa toda a limpar as mãos a um avental que não tinha e, muito mais grave, meti "porquerías" no micro ondas, onde é que já se viu, e que me ralhou e não respondi e só olhei de lado e com cabeça baixa como uma cabresta ensimesmada.

Convenhamos que a única que tem juízo inteiro é a gata embora os bocejos de tédio crónico tenham qualquer coisa de teatro declamado e durem tanto tempo como uma pose fotográfica.

Pois que, em tempos de folga, frequentei uma olaria e aprendi muitas coisas. Mais tarde,sem dar por isso, utilizei uma série de gestos "finos". Noutro contexto e quando me vi, reconheci-os.
Tudo se faz de tudo.

E adoro barro,mexer no barro. Quem diz barro diz terracota. E madeira. São frutos sensuais, generosos, paridos directamente da terra. Com a tua licença e não desfazendo, têm muito de feminino.

A pedra é mais teimosa e carrancuda, o que não significa que sejam atributos masculinos, claro:))

Abraço