quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Tive esta conversa, porque me deu para aí e porque gosto de disfarçar a necessária autoridade às vezes delegada e requerida, com uma certa dose de ternura, como é próprio de quem já se sente avó, credo, de umas crianças de vinte e tal anos. Em consequência, não me custou nada imaginar uma sala pausada, com lareira em vez de tapas, vinho moderado, vozes altas e demais circunstâncias castelhanas, alheias ao som intimodo meu instrumento preferido: o violoncelo.

A sonata do carpinteiro

O destino de Pablo Casals, ou Pau Casals como gostava de ser conhecido, sempre esteve ligado a metáforas de carpinteiros e marceneiros, profissões também da minha devoção e esporádica prática, por cheirarem a produto arbóreo e estarem ligadas a muitas lendas britânicas e nórdicas de encantar.

O pai de Pablo era organista e maestro de coro de igreja. Conta-se que, como muitos outros e dadas as condições da época, era dado a crises existenciais: para que serve a música? Como é que as notas modificam comportamentos ou matam misérias?


Queria, então, que o filho fosse carpinteiro.

A exemplo da música, tal ocupação tinha um carácter de ofício intemporal e abrangente, no sentido mais antigo do termo: começa-se como humilde aprendiz, trabalhar-se para chegar a artífice, acabar como um digno mestre, dono de (quase) todos os segredos.

Para além disto, a profissão de carpinteiro tem uma aureola santificada, como todos sabem.


A mãe de Pablo, senhora ligada às artes, e com intuição de mãe, sempre defendeu, para o filho, a música.

Tinha a senhora razão óbvia: o petiz, já aos quatro anos tocava piano e aos onze, imediatamente depois de assistir a um quarteto de câmara, e em apresentação de dotes em festa na freguesia, lembrou-se de colocar o violino, que também tocava, entre os joelhos, tocando-o na vertical.

Se alguns se riram, outros chegaram à comoção com a força que jorrava da sua alma.

Conseguiu o seu primeiro violoncelo, em vigésima quarta mão, e um professor disse-lhe a frase que nunca haveria de esquecer: um violoncelista deve tratar o seu violoncelo com o rigor com que um carpinteiro cuida os seus martelos.


Mais tarde, um outro mestre, dando-lhe um instrumento novo e pago pela Rainha Maria Cristina, haveria de lhe explicar que a madeira do violoncelo é como a de uma porta ou um móvel:

só com o tempo adquire a forma certa de ser o que definitivamente será.

No caso daquele são as vibrações contínuas que ajeitam a madeira ao som, até lhe definir a personalidade própria. Nenhum instrumento nasce adulto.

Encurtando mais ou menos a prosa, vamos ao centro da conversa, ou melhor, a uma certa moral da história, se me permitem tal presunção.

Um dia Pablo, numa loja, encontrou num canto recôndito, as pautas das Seis Suites para Violoncelo de Bach.


Tais pautas eram consideradas, na altura, uns meros exercícios tão importantes como os rabiscos que hoje fazemos enquanto falamos ao telefone. Por exemplo.

Como era muito crente, achou que tinha sido Deus que lhe tinha guiado o olhar e induzido o fascínio imediato por aquela música tão simples: escalas baseadas em tempos e modos de danças.
O logista ofereceu-lhas e Pablo levou o seu pedaço de madeira mais precioso.

Viria a descobrir que aquele pedaço de arbusto abandonado continha em si a essência de todas as árvores.

À medida que ia estudando as suites, ia vendo a complexidade misteriosa, a que sempre chamou divina, dos veios.

Como um carpinteiro ou marceneiro, sabia que um corte, a aplicação de um prego, a geometria de um golpe de formão ou a subtileza curva de uma goiva, a pressão numa plaina ou num guilherme, dependiam deles.

Passou dias à volta das notas, como general em pensamento estratégico sobre um mapa.

E confirmou o que já sabia, remotamente, desde o tempo de aprendiz:

a mão esquerda, a que toca as cordas, é mera técnica.


É na direita, a que maneja o arco, que está a Arte. A interpretação pessoal está na forma como as notas são ou não prolongadas, aliviadas ou pressionadas. É no arco que está a entoação da voz. O trabalho do veio.

Descobriu que o germânico Bach, naquelas suites, não era só matemática conceptual, ao alcance de qualquer aprendiz.

Aspirou ser mestre para saber dar expressão àquela série de notas ascendentes e descendentes, para lhes encontrar a dinâmica e para lhes dar expressão. Com suavidade, flexibilidade e rigor.

Ao contrário dos seus mestres, Pablo rejeitava a rigidez interpretativa tão em moda nos finais do séc. XIX. Gostava de se considerar um clássico. Mas com modernidade nas mãos.

E tinha aprendido o valor da comunicação versátil do violoncelo, quando acompanhou, em emprego precário, os filmes mudos, num cinema de Barcelona:
notas agudas para os gritos das donzelas vitimas e desmaiadas. Notas graves, em longo vibrato, para cenas de suspense.


Diz-se, talvez seja lenda, que a infeliz rainha Vitória Eugénia,


consorte de Afonso XIII de Espanha, mitigava as saudades da sua, enfim…pouco barulhenta Inglaterra, ao ouvi-lo interpretar adágios de Saint-Saens, Respigli e Tchaikovky .

E que a atmosfera do violoncelo trabalhado de Pablo, lhe fazia lembrar a calma das oficinas dos marceneiros, que costumava visitar, na sua infância.

Imaginava o som de martelos e maços em cadências de metrónomos.

Pablo já artífice para uns, mestre e mestríssimo para outros, criou uma rotina diária como pessoa metódica que sempre foi: passeava de manhã, admirava a manifestação do seu Deus no mar e nas árvores, ia para casa, tocava piano, e a seguir rezava com as suites de Bach, filho maior da divindade.


Deus, a natureza e a música, foram sempre a sua Santíssima Trindade.

Considerou-se aprendiz intensivo das Suites durante doze anos. Só ao fim desse tempo, as tocou em público.

E só depois de sentir o seu trabalho assim exposto, quase como se fosse uma devassidão ao seu interior mais profundo, concordou em gravar delas um disco. Em 1940.



Tocou Bach, todos os dias. Mesmo só para si, como em intimidade mais recatada ou oração, quase até ao fim da vida. Em 1973. Longe de Espanha.


longe de qualquer espécie de ditadura.

As suites, foram-lhe consolo para os desgostos.



Ilustraram-lhe as alegrias.



E mostraram-lhe, sobretudo, que se pode encher uma vida, com o labor de um artífice, mesmo quando não se tem a certeza se algum dia se chegou, ou chegará, à plenipotência e à sabedoria completa de um Mestre.


Há sempre segredos que qualquer madeira tem o direito de guardar para si.

7 comentários:

Arábica disse...

Lindissima esta tua variante de sonata, acredito que também nascida de um veio especial de árvore.
O meu avô paterno -falecido antes do m/nascimento- era carpinteiro.
Naval, de técnica e especialização. Aliás, o irmão da minha avó -artesão de lustres- trabalhava as madeiras como hobby, também. Tive em pequena, mobilias em miniatura talhadas e tratadas pelas suas mãos habilidosas.

Uma boa semana para ti.
Um beijo

Lizzie disse...

Arábica:

pois que me parece que vou buscar tudo às árvores, ao mar e à música. Entre outras coisas, claro.
Nisso, salvaguardando as devidas distãncias em grandeza,sou parecida com Pablo Casals.

Já em miúda carpinteirava. Tomava-me de amores por cadeiras, bancos estragados e arranjáva-os. Ou modificava-os. Umas vezes bem, outras mal.À medida da idade e da experiência. Muita martelada levaram os meus dedinhos. E choques elécticos.:)

A madeira tem uma paz que sussurra a quem a ouve. Como o violoncelo, mesmo quando parece zangado.

Estou à espera que páre de chover para dar nova vida à figueira que caiu com o tornado. E lá irá formão e demais apetrechos. Ai vai...:)

Boa semana.

Arábica disse...

:))

Alien8 disse...

Fascinante, Lizzie, sobretudo na comparação entre ofícios e ferramentas!

Não posso, apesar disso, deixar de dizer que a mão esquerda foi, quiçá, minimizada. Pau e tu que me perdoem, mas não é só técnica, é também arte. Pois não é com ela que se fazem coisas como hammer-on, pull-off, bending (formas de legato), trills, vibrato, abafamento de notas... já para não falar das harmónicas?

Deixo-te este bocadinho de texto, à laia de ilustração :)

"Hammer-ons and pull-offs are also known as slurs. They help to create a smoother sound between notes. It is the equivalent of a saxophone player playing a group of notes with one breath, and not tonguing each note. Or a violin player playing some notes with one bow stroke."

Um beijo.

Lizzie disse...

Alien:

obrigada pelo texto.

Ora também acho, embora não toque violoncelo (sou só fanática ouvinte e dele dançante) que a mão esquerda tem arte. Oh se tem...
O Pau é que achava que era no arco que estava a Expressão mais individual da coisa.
De facto, até ele, parece que o ensino se baseava na esquerda, justamente na perícia dos vibratos tão caros ao barroco,ao pré-clássico, clássico, e início dos pré romãnticos.Mesmo na voz humana. E na dança:)

Por acaso já falei nisso a uma violoncelista que, apesar das devidas actualizações, concorda com Pablo: diz que a esquerda se aprende, se trabalha mas é na direita que está a "entoação" e o "sublinhado".

Quando ouço estou sempre com atenção às duas mãos e admiro-as.
Se nuns casos a esquerda fala muito e é um prazer ouvir-lhe a conversa, noutros a direita comove.É como se o arco fosse autónomo e íntimo na poesia das notas.

Claro que é pessoal, mas em dança, a tendência é para seguir mais o arco. É mais próximo do corpo.
Qualquer dia explico melhor isto.
E falo do arco no meu querido Fauré.

Já agora, para mim, e que me desculpe o Pau, a interpretação dele não é nada dançável:))

Tenho montes de interpretações das Suites e cá para nós, acabo sempre por me apaixonar ou rejeitar por causa da modulação do arco.
Tenho uma que é uma gravação de um exame final em Paris. Quando dei por mim estava a chorar. Fui ver e era a de uma rapariga de 25 aninhos. Desconhecida. É a que mais ouço e sinto.

Adoro carpintaria, e outros ofícios:))

Beijo

Alien8 disse...

Lizzie,

Pronto, se queres o arco, tudo bem, "traz a bola e vem brincar,
traz o arco e vem correr..." :)))

Conheço melhor a guitarra, há cá por casa quem a toque, e digo-te que a mão direita tem muito que aprender. A princípio, a esquerda é que é o problema. Como fazer aqueles acordes, como mudar rapidamente de uns para outros, etc.. Às tantas a esquerda já tem uma certa capacidade, e é aí que se descobre que a direita está a falhar. O ritmo, as batidas, o dedilhado, o rasgado, sei lá que mais... vão ter que ser aprendidas.

Para mim, o conjunto das duas mãos é indissociável, e não dou mais importância a uma do que à outra. Porque o segredo acaba por estar na coordenação entre ambas. Depois, além das técnicas usadas nas cordas pela mão direita, além do tempo e do ritmo, temos ainda o "toque", aquela coisa por vezes quase indiscernível, mais doce ou mais rude, mais leve ou mais pesada... será aqui que entra o arco do violoncelo? Numa coisa o teu amigo violoncelista tem razão: a esquerda aprende-se e trabalha-se. Na guitarra, isso também é válido para a direita. No violoncelo, de que sou muito menos conhecedor, acredito que seja necessário também aprender a técnica do arco. Mas percebo a ideia da "entoação" e do "sublinhado". Percebo. Apenas creio que, sem a técnica e a arte da esquerda, essa entoação e esse sublinhado vão à vida. Enfim, realmente é-me muito difícil dissociar as mãos uma da outra. O que me é fácil e agradável é conversar contigo sobre artes & ofícios. E música & instrumentos.

Pois, se aceitas ou rejeitas interpretações das "suites" por causa do arco, lá terás as tuas razões. Talvez arte também na esquerda, e "aquela coisa sem nome na direita"? Vai-se conversando a aprendendo :)

Um beijo.

Lizzie disse...

Alien:

também tenho prazer em conversar contigo sobre estas coisas. E muito.

Sobre guitarras sei pouco, embora também tivesse levado sovas delas:))

Claro que a coordenação é indispensável e há quem diga que, neurológicamente, músicos e bailarinos têm umas particularidades. No caso dos bailarinos deve ser a quatro membros:))

E também penso que tudo necessita de aprendizagem e treino. Mas continuo a achar que o Arco dá a alma. Há quem aprenda violoncelo (e outras cordas arcadas) e não consiga mais que um "som" frio, não individualizado.Correcto mas "banal".

Como uma redacção sobre a chuva, por exemplo: podes ter milhares a escreverem muito bem sobre ela mas...haverá uma ou outra que dirás ter sido escrita por A ou B, que te comove ou te gera outros sentimentos que não só a imagem comum da chuva.
(Partindo do princípio que as notas são as gotas de água:))

Por gostar muito, enfim, treinei-me. E "ouvindo" o arco, modela-se melhor o corpo numa unidade expressiva, interrompe-se ou alonga-se um movimento. É como um guia, um encontro, uma empatia.
Acaba-se por sentir o arco nos músculos.:)) e cada músculo tem os seus sentimentos. Daí que seja necessário encontrar um interprete compatível, que se sinta.

Eu cá, tinha empatia com a Jacqueline du Pré, por exemplo:))

Abraço e obrigada por esta troca de impressões tão agradável.