terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prosa pouco virgulada acerca do inevitável casulo fugitivo.

É capaz de ser da chuva.


Do ruído dos aviões espalhado pela água.

Faz de conta que são navios a navegar num mar colocado ao contrário. Que se entorna em gotas.
A imaginação permite paisagens absurdas.

Porque é que as nuvens não hão-de ser um mar aéreo? Suspenso e nómada.


Ou talvez tenha sido por ter estado naquela casa de chá. E de chocolate quente. Rosquillas , panecillos, scones, torradas com manteiga magra de cabra. Compota de frutos silvestres.

E o inglês a dizer que lhe apetecia viver ou antes ou depois do tempo em que lhe cabe a existência.

Não lhe apetece História rápida. Mal pensada. Repetida e sem memória. Tempos mais quantitativos que qualitativos. Aborrecem-no as ideias gestoras sem rosto nem corpo. Mas talvez com mestrado e doutoramento. Devidamente credenciadas na contabilidade estratégica dos cifrões. E do medo.

Revoltam-no as escolas de impune crueldade.


Em que se vence só porque os outros foram mais vencidos.
A sublime glória do esmagamento.
Nem que seja debaixo da luz de concurso televisivo.
Suam derrotas nos olhos.

Há quem lhes chame lágrimas. Penso que são mais desilusões derretidas. Tanto faz.

Despeço-me. Tantos anos. Cumprimentos lá em Inglaterra. Descansa. Trata do jardim.
-God save the Queen.
- God Save the Queen.

Ou talvez seja por ter passado meia hora de auscultador telefónico no ouvido.
O benefício da linha verde.
Vivaldi sacrificado. Distorcido. Interrompido.
Se deseja esperar prima a tecla um. Se de deseja ser contactado prima a tecla dois.
Vivaldi.
A sua chamada é muito importante para nós.
Vivaldi.
Se deseja esperar prima a tecla um. De deseja ser contactado prima a tecla dois.
Vivaldi.
Boa tarde, em que posso ser útil?
Voz pastosa. Aposto que tem sugus de limão na boca.
Só um momento, não desligue.
Glenn Miller.


Ou talvez seja dos livros que comprei. Muitos. A um. A dois. A três euros.
Fui aspirada pelo hálito vagamente bagaceiro do gerente da livraria. Bom homem. Um eterno príncipe preso num corpo de sapo. Coitado.
Apresenta-me preciosidades libertas da escuridão do armazém. Deve ser triste para um livro não ser lido. Um mundo amordaçado.

Há de tudo. Espanhóis, americanos, ingleses, alemães, italianos.
Amor de Perdicíon de Camilo Castelo Branco.
- Simau.
- SimÃO.
- Simau.
-Coño, Si-m ÃO ÃO ÃO.
Metamorfosis de Jorge de Sena.
Bernardim Ribeiro. 15x11cm. Ilustrado. Ternurento.
Levem estes, que já li em português.


Ou talvez seja do cartaz na sala de espera do veterinário:senhora deitada a ler. Num sofá branco. Com manta igual à minha. Uma Madona com camisola de pescador. Tranquila. Sem pulgas nem carraças. Nem piolhos. Nem mosquitas.
Luz interior à Woody Allen. Lareira com luz barroca. Cão e gato aos pés. Cheios de sonhos errantes. Provavelmente.

Talvez por tudo isto, e mais que não digo em palavras mas em imagens,


faça grande esforço para sair de casa.


Apetece-me casulo.
Casular.


Devorar todos os pontos de interrogação paridos pelos livros.
E nos livros.
Ou nas superfícies brancas onde, geralmente, todos os traços futuros começam. Em cores. Ou movimentos. Ou encenações. Qualquer coisa.
Como um ovo incubado no mais benigno dos silêncios.

9 comentários:

Arábica disse...

Por tudo e talvez por nada.
Mas não és a única: ando a sentir-me minimalista, como se o ser e as palavras que o vestem, se recusassem ao transpor da porta.
Enroladas qual echarpe em pescoço esguio assim ficam, maravilhadas na solidão embrionária...

Até que voltem a dançar.

Beijos

Lizzie disse...

Arábica:

a questão é mais a falta de tempo, o desperdício de tempo, o tempo a mais com coisas cheias de nadas e que levam a coisa nenhuma.

Claro que estas coisas e estes nadas são relativos. Variam consoante cada um e cada qual.

E não lhe chamaria estado de solidão. Antes pelo contrário, é um estado em que apetece enchimento. E produção.
Conheço poucos "fazedores" ou "aprendedores" por gosto que se sintam sózinhos no sentido triste do termo, claro.
Aliás, a melhor companhia é a de quem está no mesmo estado, ou seja,a de quem trabalha, lê ou olha para o ar, sem ser interrompido. O tal silêncio benigno de que falo.
Mauzinha é a circunstância de pessoas que conheço, ai coitadas, ai que aflição, que vivem com outras "interrompentes" ou "barulhentas".
Duma já falei, salvo erro.

Resumindo, às vezes é bom não ter que dar um passo fora da porta:))

Besos

Lizzie disse...

Ah, e é por essas e por outras que eu tenho pena de ainda não ter conseguido o divórcio com o despertador:)

Ora estou em estado de profundo interior, em viagem descansada e ele não me deixa em paz. Chega àquela hora e não se cala. Nem ao murro ou bofetada:))
Que voz mais irritante!

Arábica disse...

Eu percebi à primeira. :)
Abre-me esses olhos ;) e volta a ler no comentário: "maravilhadas na solidão embrionária"

o "maravilhadas" não chega para perceber q percebi? ;))

Beijos, coño, boas férias.

Lizzie disse...

Coño, de férias completas queria eu estar...:)

Ando é de caderninho nos intervalos:))

besos

Alien8 disse...

Lizzie,

Ah, o fundamental casulo! Que seria de nós sem ele? Sorte a de quem o pode ter, inventar, criar... sorte tua, sorte minha, guilty, ok?

Talvez seja da chuva, sim. Do frio. Ou de chover cá dentro. Ou de tabtos carrinhos que parecem uma colecção de "dinky toys" :)

Gostei muito do texto, mesmo muito.
Do resto já se sabe :)

Um beijo.

Lizzie disse...

Alien:

Guilty, coño?
Absolutamente nada! Acho que casular devia ser um direito constitucional:)
E tens razão, mal de quem não o tem ou não o sabe ter. Mas isso não nos torna culpados de fugir dos dias esteriotipados, do cardume ou do rebanho, da gregariedade obrigatória.
Cada pessoa é única, cada um deveria casular à sua maneira.
Não é demissão, não senhor. É inerência de condição.
Por acaso os meus gatos casulam imenso. Quando lhes apetece e em pleno. Sorte.:))

Adoro carrinhos destes. Desde que em miúda queria ser taxista.
Pois,agora, ser road woman é uma forma de casular:))

E gosto da pintura romãntica do séc XIX (sobretudo nórdica e inglesa) porque tem imensos casulos:)) Como a literatura.

Obrigada e pois, casulemos com ou sem gente à volta:)

Beijo

Frioleiras disse...

sabe bem.......................
muitíssimo !

Lizzie disse...

Pois sabe, Frioleiras!

E é tão útil!

Cá para mim, olha, farto-me de trabalhar mas daquele trabalho que alivia e não cansa porque implica ilusíon, o tal conceito que não tem tradução numa só palavra.
Mas é bom.

Bj