terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

este vem a propósito de, a semana passada, ter visto o poderoso filme The Reader que, por diversas razões, me pincelou a alma de diversos sentimentos, e, por, através dele, me ter lembrado de como é importante saber decifrar aqueles símbolos gráficos abstractos chamados letras.

Baú avulso que veio ver a luz à janela




A banalização de actos ou circunstâncias encobre-lhes a relevância. Quase remetemos o automatismo para a viela do desprezo. Ninguém pensa que respira até ter dispneia. Ninguém nota que saber ler e escrever é uma forma de enfrentar, compreender e alargar o mundo até se deparar com símbolos escritos estranhos que o tornam perdido, indefeso e dependente, da boa ou da má vontade de quem neles com à vontade se movimenta.

Acredito que somos tudo aquilo que guardamos na memória, mesmo na arrumada em caixas com forma invisível de resíduo. A memória é uma defesa e um poder e, no caso do que me lembrei, pelo menos da forma como lembro, um acto de ternura. Recíproca.


Lembro-me da Lálá, uma senhora diminuta, com os ossos a tentar sair da pele, olhos fundos e imensos, carrapito grisalho e bata às florinhas para os arrumos da casa que, em tardes de estio alentejano, me punha pão e sumo em cima da comprida mesa de mármore da cozinha.

Sei que havia um dia na semana em que trazia uns rectângulos de papel e esferográfica Bic Cristal. E eu lia:


-Benfica-Académica…
-ganha o Benfica
-então é 1!
-Sporting- Belenenses?
-ficam os dois iguais!
-o Sporting é melhor, ganha sempre, mas pronto, é X!

E os olhos ficavam atentos no meu desenhar mágico dos símbolos, com uma atenção quase ritualizada, como se ali se interviesse no imponderável do destino. Eu, naquele momento, tinha para ela, talvez, a envergadura de uma célula do seu Deus.

Mais tarde, a cidade era gigante, com muitas línguas faladas num só edifício, com gente de todo o lado, algumas já com a suspeita, que viriam a ser de lado nenhum. E cada um, quando falava alto para si, para exorcizar desditas, voltava à sua língua primitiva e era identificado na origem.

Sobretudo as mulheres, esperavam que saíssemos daquele mundo louco, depravado, fora da ordem natural das coisas




para elas tão estranho como a vida na lua, arranjavam coragem, chegavam ao pé de nós, baixavam os olhos e tiravam do bolso das fardas as cartas.


Se me puder fazer o favor de ler… explicavam-nos que se as dessem a ler no bairro todas iriam comentar e espalhar os segredos. Sempre assim foi...toda a gente se conhece...


Connosco tinham mais confiança: queríamos lá nós saber, tão distantes, tão leitores, tão sábios, tão novos, havíamos lá nós de dar importância áqueles enredos, àqueles sonhos, àquelas ansiedades , àquelas verdades, àquelas mentiras, àquelas notícias.

Lembro-me, enquanto ia lendo, das sobrancelhas levantadas, dos risos sempre com a mão à frente da boca, dos alisares das fardas com as mãos resolutas com cheiro a lixívia , como quem se empatiza para entrar num combate, das lágrimas contidas nas barragens dos olhos, das suspeitas denunciadas pelo morder do lábio inferior, do flamejar vindo do semi-cerrar das pálpebras no júbilo da vingança,


do cair da face e do acentuar dos vincos nela quando a desilusão caía como uma pedra a sepultar os já míseros dez reis de esperança.



E depois o olhar para aqueles símbolos desenhados, quase sempre com letra infantil, antes de voltar a meter a folha no sobrescrito, o Deus lhe pague, o le doy yo las gracias a usted, o andar mais seguro ou mais cabisbaixo. Conforme.

Às vezes traziam as fotografias dos do outro lado da letra, como se nos quisessem fazer prova da sua existência. Dizíamos sempre que eram bonitos, se havia aparência de felicidade,



ou um despachado vê-se logo que nunca deve ter sido grande coisa se nas letras vinha desgosto.



Também me lembro de estar sentada à beira de uma cama de hospital a ler e a traduzir, numa voz em atrapalhamento disléxico, uma critica num jornal e de um corpo deitado a olhar para a neve que se ia amontoando no beiral. Lembro-me de ter conhecido a figura da ausência inteira, vestida de indiferença, quando na leitura de um paragrafo, a veia na zona temporal direita, continuou a latejar ao mesmo exacto ritmo.

Posso-me lá esquecer daquela vez…as gargalhadas… a surpresa...também chovia a cântaros, não chovia?

E, enquanto se limpam os olhos, corre a ficha técnica, lentamente, no ecrã de fundo negro. Corre até ao fim. Até se esgotarem os flocos das letras brancas penduradas na música.



- Como é que se chamava aquele velhote das Canárias, jardineiro, salvo erro, que te pedia para escreveres as cartas para o irmão, aquele que lhe dizia que já tinha um barco e dois carros e estava a pensar casar com a governanta do…





- Jasmin, creo que Jasmin. Por qué esso?

9 comentários:

Arábica disse...

Lizzie Zizzie

e perguntava-te eu se? :)

já nem sei, voou-me da memória.

Mas dizes tu e bem que a memória é um poder e uma defesa...

Através dela crescemos, nos revoltamos ou apaziguamos, através dela sabemos que as nossas escolhas são feitas, quiçá, por ela, memória, as nossas escolhas nasçam já condicionadas...


É esse o poder da memória.

Quase tão forte como o do amor.


Um beijo

Alien8 disse...

Lizzie,

Com a memória e o que significa, de pleno acordo.

Com a vitória do Benfica sobre a "minha" Académica, jamais! :)

Costumava frequentar um cinema onde às vezes ia um grupo de ciganos. Sentavam-se na mesma fila, ocupando-a quase toda, e o que ficava ao lado da coxia lia as legendas em voz alta para os outros todos.

Ora, isto não tem talvez a ternura e o dramatismo das tuas vivências que, por palavras e fotos, conseguiste também fazer um bocadito minhas. Na verdade, dava para rir à grande, a cena dos ciganos. Mas...

Em África passei algumas cenas semelhantes às que contas. E sempre que passei por um país cuja língua desconhecia senti-me a modos que desasado. Incompleto.

É mesmo como dizes: só quando se tem dispneia é que se percebe que se respira - e como isso é fundamental :)

Um beijo.

Maria Trindade Goes disse...

Arábica:
conheço muita gente (já que falas em amor) que contraria o Pavlov, ou seja,esquece-se e não deixa que a memória lhe salve a vida a troco de uma ilusão de felicidade. Face a um estímulo não se quer lembrar da inevitável consequência.

Agora estou-me mesmissímamente a lembrar de uma mulher mal tratada por toda a gente, por ser demasiado fraca em auto estima e carente, que nunca se lembrava das humilhações. Dáva-se assim bem com deus e com o diabo. Bastava um sorriso para lhe iludir a alma e lhe apagar a memória.
Claro que, com a crueldade inata humana, aos sorrisos se seguiam sempre penas.

Talvez o amor já estabilizado deixe a memória ir entrando, a convide a sentar-se e a tomar notas do que de bom e mau vai acontecendo. Com o correr do tempo logo se verá o saldo e a forma como é gerido.
Quando é francamente positivo, é um regalo ver a memória e o amor a passearem de braço dado:))

As paixões assolapadas é que têm a mania de dar com a porta na cara da memória. Talvez por isso sejam, em algumas pessoas tão passageiras em tempo e quantidade.

Lembro-me de, de uma forma e caligrafia simples, ter sentido estas versões nas cartas que li. As partes não ditas, estavam muitas vezes nos gestos, tiques e expressões de quem ouvia.


Beijo

Lizzie disse...

Alien:

Pra já estamos iguais: NÃO SOMOS, com o devido respeito para quem é, DO BENFICA. Só que eu sou do Sporting, não faço ideia porquê mas sou. E acho graça ao Paulo Bento e a sua entoação espanhola. Eu não falo assim (só não me apetecer),está descansado.

Claro que não me lembro exactamente do totobola, mas o que me chega é mais ou menos assim.

Essa dos ciganos, imagino..., nunca apanhei.Mas quando era pequena, às vezes ia a uma casa muito grande de um senhor que casou, talvez em oitavas núpcias, com uma senhora que não conseguia ler as legendas dos filmes que passavam na televisão. Ele lia em voz alta, os outros miúdos e eu desatávamos a rir e ia tudo de castigo para a cozinha se se tratava de um drama porque, se fosse comédia e com sorte, o castigo era ir esfolar joelhos para um parque infantil lisboeta muito verde que, por mero acaso, ainda existe.

E conheço a sensação aterradora de chegar a um sítio e não entender nada do que está escrito, com caligrafia diferente. É um desamparo total. Uma perfeita desorientação.

E, já agora, para fixar melhor na memória, quando o filme estrear cá, se é que ainda não estreou, vou ver outra vez: que prazer, além do mais, ver os pormenores, o cuidado na interpretação daquela gente. Ai, ai

e mais não digo.

Abraço

Teresa Durães disse...

A memória pode ser uma defesa ou um ataque que nem reconhecemos

(ultrapasso o parágrafo do totoloto!)

Ah! As minhas cartas manuscritas ninguém as percebe devido à (má) qualidade da letra. Os receptores devem mesmo pensar que estão a ver desenhos sem nexo!

Lizzie disse...

Teresa:
este "totobola" traz-me uma memória aconchegante, de infãncia solta com aprendizagem do respeito: olhar mais para aquilo que as pessoas valem do que pela importãncia, chamemos-lhe social, que podem ter.

Quanto a letras nem me fales: a minha é a chamada de médico. O esforço que eu faço, às vezes para a arredondar e civilizar...o que vale é que algumas pessoas já se habituaram à decifração:)

Alien8 disse...

Lizzie,

Não falas como o Paulo Bento... falas "com tranquilidade" :)
Mas se quiseres falar como ele, enfim, acho que consegues...

Sporting, pois... tudo bem, desde que não seja contra a Briosa.

Vou contar-te uma cosita: há bastantes anos, visitei a então URSS (apanhando a altura das "noites brancas", por sorte minha! Foram quatro dias sem noites que passei na então Leninegrado, por sinal uma cidade espantosa, acho eu).

Também andei pela Bielorússia (Minsk) e pela Lituânia (Vilnius).

Agora, alguém falou em Totobola?
1X2? Quando ia a um restaurante, olhava para a ementa com ar estúpido (imagino!). Conhecia alguns caracteres cirílicos que me permitiam identificar sopas como borscht e solianka, e pouco mais. Uma vez, todo contente, identifiquei algo como "Kotelete". É desta que vou comer uma boa costeleta, pensei. E pedi. Saíu-me uma espécie de cordon bleu de frango! Por acaso não era mau, mas sabe-se lá o que me podia ter calhado...

Mas o pior foi mesmo quando entrei sem querer num self-service. Paciência, pensei... Vou dar uma olhadela aos pratos e escolho. Pois. Muuuuito antes dos recipientes com a comida, havia uma ementa afixada, da qual não percebi nadinha mesmo. Mas tinha que escolher e pagar, e só depois iria buscar a correspondente comida, se por acaso adivinhasse qual era. Não sei se estás a ver a cena :))) Lá furei a fila toda, fui até à comidinha, apontei, fiz a senhora que lá estava chegar à caixa para explicar o que eu queria, paguei e pronto. É triste, muito triste, realmente...

A tua cena da TV, pelo contrário, é de antologia, daquelas de humor, claro :)

Um abraço para ti - e que estejas a 100%!!!

Lizzie disse...

Alien:
quanto a estar 100%, bom, amanhã vou ter que estar a 199% mas com "tranquilidade" vou ver se fujo de qualquer gamba panada que se me depare que aos domingos os supermercados estão fechados todo o dia e não há onde comprar cenouras...:)

Coitadinho do Paulo Bento, ele só importou uma palavra que se diz milhares de vezes por dia em Espanha. Qualquer dia ainda lhe sai um

"pois estou tranquilito pois que o Esportingue vai-se a ganhar o partido com tranquilidá..."

A minha passagem por S. Petersburgo, ai Alien, que foi só passar fome que aquilo me parecia tudo cru e nunca fiz tanta mímica na vida para que um bife viesse bem passado (para mim é a modos que carbonizado).

E mais um corredor muito comprido com muitas portas, com umas coisas escritas nenhuma delas parecida na forma com W.C. A pontaria foi tanta que trocámos o género.

E uma senhora com ouro no pescoço, nas mãos e nos dentes, talvez por isso tivesse um sorriso contínuo, que dizia olé a tudo. Durante uns tempos e noutro cenário, brincávamos:
queres água? Olé!
vais para casa? Olé!
está frio lá fora? Olé!
estás com cara de parva. Olé!

E um homem enorme, enorme, gigante que fez um discurso de talvez uns vinte minutos, sempre de sobronho franzido, em russo, acabando a palestra com um violento murro na mesa. Viemos a saber que tinhamos sido expressivos e encantadores. Vá lá:) Olé!!

Tens razão, é uma cidade lindíssima e lá vi, numa igreja, um concerto de canto ortodoxo do séc. XIX absolutamente inesquecível.

Noites brancas e confusas também apanhei mas em Port Hope. Lindo.

Abraço e bom fim de semana.

Alien8 disse...

Lizzie,

Pois que amanhã, quero dizer, hoje, estejas mesmo a 200%, e à prova de gambas panadas. E tranquilita! :)

Não estou a ver daqui a mímica adequada a mandar vir um bife bem passado, mas espero um dia observar essa cena!!!

A troca de WC também não está mal... mas compreende-se. E o mesmo digo do discurso do tal homem, acabado a murro, porque corresponde à ideia com que fiquei da forma que eles usam para se exprimirem, mesmo para altíssimos elogios. Aliás, quanto mais forte o murro, maior o elogio! Faz-me lembrar a maneira de falar dos japoneses: Parece que estão a dizer: "Eu dou-te cabo do canastro, e é já!" e afinal dizem realmente: "É uma enorme honra para mim que se digne entrar na minha humilde casa." :)

Olha, por quase coincidência, assisti em Vilnius a uma missa ortodoxa, mas daquelas muito grandes, porque se comemorava o dia de um Santo (não me lembro qual) cuja mão estava guardada como relíquia na igreja, e era sempre exposta aos fiéis naquele dia do ano. Estive lá mais de 2 horas, ouvi cantos espectaculares, a encenação era incrível, enfim, vim-me embora antes de acabar porque não tinha mesmo mais tempo...

E com esta me vou, que é como quem diz: "Olé!".

Um abraço e boa sorte para amanhã...