segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

(Lizzie, ou seja, eu, fala com Élis, sendo todas nós a mesma e única pessoa. Assim julgamos, claro)

Modalidade de solilóquio estremunhado de quem não tem outro remédio senão acordar, pós férias, em calendário de algarismo novo e em dolorosa experiência de, pela primeira vez, usar óculos de ver ao perto.

Valha-me Deus ou outra qualquer divindade, mulher, que face a tal cara, qualquer transcendência, por mais absurda que seja, serve!
Sempre te disseram, ainda gatinhavas como este novo ano, que tinhas nascido com espírito de contradição. Com vontade de viver ao contrário das maiorias das gentes ordeiras: ele sempre foi trocar letras, trocar horas, viver as noites com energia de alvoradas.



Desta vez esmeraste-te. Tu e os outros, que mais coisa menos coisa, andam ela por ela no rebuliço contra a correnteza.

Sais do espectáculo e, em vez de ires, em voz alta e exuberante a desafiar os julgamentos do mundo, comer churros com chocolate quente, dão-te os apetites de gambas panadas, estacionadas numa travessa, timidamente recolhida na mesa mais discreta, relegada para o canto mais escuro do bodegon. Dirão os mais aventureiros ou criticos, tratar-se da atracção pelo abismo.
Lá foste mastigando e dizendo aos três outros suicidas enfardadores de toxinas como tu, que tinham performado tão bem que o público até se tinha esquecido de tossir durante o espectáculo.

Veio um anjo da guarda, a tempo de a gula provocar mais estragos, puxar-te pelo braço, o mesmo anjo que chamaria uma espécie de Anjos da Noite a preços módicos mensais, cuja agente loira repetiria coño como um tique nervoso, face ao teu pãnico irracional e fora de idade de agulhas, enquanto te punha uma chuva lenta de soro a desaguar-te na veia.


Esse mesmo anjo ficaria a olhar para ti, de olhos atentos, míopes mas não daltónicos, à espera que a tua pele, ao fim de roeres, com gosto, apetite e voracidade a sétima cenoura consecutiva, mudasse de cor. Bem ouviste, ao telefone: Élis? Acostada en el sofá volviendose coneja. Sí Kafka estuviera aquí, a lo mejor,bueno, Metamorfosis II, no?

No dia seguinte foste, com a tua capacidade autoregenerativa, para a rua, para el jaleo de la calle, na já eufórica celebração da nochevieja.
Ao entardecer, luzes exorcizavam temores ancestrais com desejos,


indiferentes às doutas, proféticas, messiãnicas e redentoras opiniões políticas de diversos quadrantes que os agentes se esforçavam por incutir na opinião pública, num ou noutro canal de televisão.



Alguns seres sorridentes e confiantes davam a impressão, que, por horas, se vestiam de pessoas. Um dia destes tens que botar post sobre este novo movimento madrileno, quiçá também presente em todo o ocidente.



A Consuelo, ressuscitando o seu espírito enfermeiro, foi-te aconselhando dieta para gastritis, mas se convergiste na sopa, em contradição, devoras-te perigosamente três empadas de frango, e que grandes eram…, com pimento e picante incendiário, regadas com uma água gaseificada de Fuente Santa, com travo rochoso de Toledo, estagiada em garrafa de verde vidro , colheita de 2006.

E não ficaste tonta com os encontrões da multidão aos magotes. Afinal já estás habituada ao costume espanhol de andar em grupo, todos muito juntos e quem quiser que se desvie.
E foste para casa que, naquela rua e em época de festejos, não é mais que um mero canto, protegido por paredes de papel, do exterior.


E não, não vestiste roupa interior vermelha, a lembrar vagamente os putíclub se fosse tal lingerie acompanhada de cinto de ligas (lembrança e comentárioantropológicamente alarve que te custou uma admoestação desdenhosa por parte dos indigenas ),



consoante a tradição castelhana, nem traje de gala a ver a Deus, boutique ou estilista.


Foste, antes vestir uma idosíssima camisola comprada no Alaska, em dois tons escuros de azul, já puída em zonas de maior atrito. Porque te apeteceu coordenares-te com a invernia. Não por o azul ser obrigatório na passagem de ano portuguesa.

Também não bateste tampas de panela, nem comeste os doze bagos, não passas, de uva, nem ficaste toda a noite a pé, reprimida face à ditadura da celebração.

Ficaste antes, a perorar, extasiada, sobre o filho de vinte anos de mulher que não encontravas há anos e que ia de compras com a mãe e que agora está em estágio como violoncelista numa grande orquestra de Madrid e que tem umas mãos lindas em formato e gesto, e um ar sereno e perverso como o Tadzio da Morte em Veneza e um ar de romantismo vago, literariamente vintage, vê lá tu o que ele cresceu e



-nuestra Élis además de portuguesa e coneja se vuelve pedófila!

E se cedo te deitaste também relativamente cedo te levantaste, para fazer viagem de regresso, não percebendo se, cidade e estrada fora, era dia de ano novo ou teria havido um ataque nuclear, tal era o vazio, tirando um ou outro sobrevivente, de gentes em circulação.



E para fechar, não vais pôr aqui nenhuma valsa de Strauss, nem polka efusiva. Os novos que acreditem que a mudança num número, muda os passos do mundo.



Apetece-te antes, valsa sim, mas de Schostakovitch, aquele que, consta, durante a vida poucos anos teve a que se pudesse, normalmente, chamar de felizes.

E se te está a doer a cabeça, tira as gafas, ai credo, mulher, em português diz-se óculos. Que coisa...




valse nº2 - schostakovitch

16 comentários:

Arábica disse...

Da metamorfose da gamba assassina ao azul puído do tempo, da gaivota (e eu que também hoje aportei ave?) em repouso proibido ao pouco aconselhável abismo em vésperas de festejo, levas-nos atrás dos dias, sem óculos contra a vertigem do tempo que nos teima em trazer de volta :))

Na terra das alfarrobas as cuecas e fios dentais azuis se esgotaram em vésperas da efeméride
(e ouvindo hoje as noticias futebolisticas cá do burgo, ainda pensei que a façanha de ontem deveria estar intimamente ligada ao uso e abuso de tal cor ) ao que nas lojas se começou a aconselhar o vermelhito de paixão :) que não há melhor forma de se iniciar mais um ano prometido a preto e branco, ou, a ver por ti, de dieta;)) a pão e água ;))


Fora de todas estas brincadeiras, Lizzie :)) bom é ler-te e admirar as fotos sempre originais que nos ofereces!

Pena ser só 30 segundos de música, mas para uma vida breve em felicidade, que mais se poderia pedir? :))

Besos

Arábica disse...

Correcção: levas-nos atrás NOS dias...

Emma Larbos disse...

Pues, mujer, benvida ao clube dos que vêem o mundo com mais do que um par de olhos! Eu só à minha conta tenho três pares!
Em breve vais descobrir o charme do olhar por cima das gafas e o encanto de andar sempre à procura deles porque se esqueceu o lugar do último poiso. Espero que resistas à tentação de comprar um daqueles fios de pendurar ao pescoço para os pendurar. Já há, nos bons oculistas, umas versões fashion dos ditos mas mesmo assim fazem-te parecer aquelas senhoras de mise de cheia de laca e gola branca bordada que nos atendiam nos correios antes de os CTT terem inventado a farda vermelho-creme.
Espero também que tenhas resistido a escolher um modelo azul-cobalto ou vermelho, de armações grossas. Não gostas daqueles que se podem dobrar todos e nunca se partem?

Estou mortinha por te ver com eles!

Alien8 disse...

Impagável Lizzie,

Então não suspeitaste, ou a Élis, de que as gambas estavam mais ou menos "retiradas" por qualquer razão?

Então foste assim tão lesta ter com o abismo?

E desafias as consequências curando a mordedura do cão com pelo do mesmo cão (ou semelhante, vá lá...)?

E consegues fazer da experiência dolorosa um relato de quase morrer a rir? Se eu tivesse lata para tanto, dir-te-ia que até valeu a pena a gâmbica intoxicação... mas não tenho, e não digo.

O que te digo é que pouco acrescentarei ao que a Emma Larbos já esclareceu acerca dos óculos.

Estou neste momento com os meus fiéis óculos de leitura, os únicos que uso, postos em modo de écrã de computador (há também o modo de livro e o modo de espreitar por cima, pois...). Fica com este testemunho e, por amor da Santa, não me empanturres de imagens deliciosas, que ainda me dá alguma coisinha ruim :)

Logo a mim, que ainda ontem voltei a ver o "Volver"... "it's an injustice... yes, it is".

Um grande beijo.

Arábica disse...

Lizzie,


Falando de óculos, eu perdi os meus legitimos ao fim de uma semana de os usar (desconfio sériamente do lama destemido e comilão que todas as manhãs de sábado me perseguia perigosamente na hora de mudar o feno) e desde aí, já experimentei todos os azuis cobaltos e vermelhos de que a Emma fala :)) são vendidos em modo de pronto a usar :) e são também eximios, na arte do pronto a perder :))

Não sou nada sem eles, qualquer sms fora do seu alcance transforma-se sempre em algo parecido com a realidade, por pura coincidência :)) e quanto aos encantos...com a criatividade que tens, decerto descobrirás outros tantos, que por aqui ainda não constam :)

Beijos muitos!

Lizzie disse...

Amanhã vos responderei.

Hoje só vos venho dizer que, tal como prometi em terras de Espanha, só ontem à meia-noite abri os presentes que de lá trouxe e...


JÁ TENHO UM PATO BRANCO!

Por acaso acompanhado de umas cenouras verdadeiras com rama:))

Arábica disse...

Lizzie,


Apenas para te dizer :)) que nas imagens transmitidas pela tvi, de Madrid,ontem à noite, apareceu uma familia inteira de patos brancos, lindissimos, os quais com ar soberbo integravam tb o corso :))


E aqui vai uma beijoca :) hoje sim, de Dia de Reis :))

Emma Larbos disse...

Esperem lá... alguma coisa aqui me escapa...

Mas os patos comem cenouras ? E com ramas e tudo ? Então não são os coelhos? e os patos não é mais milho e pão? Ou não?

Emma Larbos disse...

Olha, detectei-me ali umas gralhas (benvida?!) mas não me apetece fazer a lista toda. Quem as encontrar paciência!

Alien8 disse...

Lizzie,

Com bico laranja? :)

Espero que sim!

De qualquer modo, PARABÉNS!

Beijos.

Lizzie disse...

Ai Arábica, o que eu dietei...:) e ia tendo uma recaída, lá contarei na resposta ao Alien.

Valha-me la Stª Eufrázia acompanhada de Stº Isidrio mais do Mago Baltazar,
que nos visitantes da casa ninguém é "folclorico" a ponto de cobrir as vergonhas de vermelho. Ainda houve suspeitas mas o presumivel culpado lá mostrou as boxers cinzentas e não vislumbrámos tiras de cinto de ligas.

Quanto a óculos, pois que até agora só usei para mandar sms e ler aos bocadinhos. Computador nem pensar:vira écran de cinema psicadélico. Na!

E não posso comprar os já feitos. As estuporadas das lentes, pelo menos uma, tem que ser feita em rigoroso e caríssimo exclusivo. Assim me explicou o rapaz que me atendeu, lindíssimo, com o ar aventureiro e selvagem do Lawrence da Árabia, madeixa loira na pele tisnada, alto e com garbo no porte. Enfim...


E RECEBI OUTRO PATO BRANCO POR MAIL. Giríssimo. Agora tenho um onde pego e outro virtual:))

Ay, que lástima que aquí me he quedado trabajando en la festividad de Reys en Madrid. J.....que é assim como Juan:escreve-se com J mas pronuncia-se como R vindo da traqueia.

Besos míos

Lizzie disse...

Emma:
Posarei para ti. De quatro olhos pousados, com recato, num livro ou num bastidor em silencioso labor de bordado.
E se tal for o teu desejo, riparei o cabelo ou meterei os dedos na tomada eléctrica para, assim, lhe dar mais volume. A laca é que a minha romântica asma não permite. E se tal te aprouver, botarei no rosto uma expressão de tísica terminal. Compôe-se o quadro.

Quanto a essa do charme de olhar por cima, Emma, já nas minhas costas uns niños dizem que o meu olhar mete medo. Imagina então o que dirão quando, em Junho, for uns dias, na qualidade de chefe, note-se, para Madrid, olhando-os por cima da armação...

Imagina que a menina do oculista me pôs à frente uma panóplia de arco iris. Alguns eram verde alface, disse ela que era uma questão de coerência. Imagina que me dá outra fúria herbívora: como-os.

E, olha, quem me ofereceu o pato, que não é de plástico mas sim de loiça tosca, assustou-se de tal forma ao ver-me ruminar cenouras que ficou com medo que me desse um sindrome de abstinência. Por acaso, ontem comi uma das verdadeiras porque no meio vinham umas artificiais. Essas resisti a comer.

Lizzie disse...

Alien:
essa do modo de computador ainda me hás-de explicar, se fizeres o favor.

Quanto ao resto, deve-se respeitar as vontades do organismo.Acordei a pensar nas empadas.

Mas...no regresso

desviei-me eu da rota principal porque me apeteceu uma pizza quatro estações.
Entro e aparece-me um italiano bamboleante a tentar falar espanhol:
- eco,nuestra pizza será divinale,cosita da meílióri aceite di Tóscana. Alóra, riquixíma.

E veio. E meti um pedaço na boca. E chegou qual trapo encharcado em gasolina ao estomâgo. Se eu tivesse comido mais uma garfada, seria o fósforo.
- ma sinhora no manja piú, más?
Lá apontei pra o estomago e vai ele muito sorridente

-entendió! il vino di Año nuovo, verdad?
-sí,sí
e ia eu pensando no novo milagre: a transformação do chá de cidreira em vinho e da água em champanhe.

Fiquei a saber que na Toscana, segundo ele disse, depois de sair do forno, a pizza leva um banho de azeite da região.Ácido. Horroroso.À meia noite ainda tinha tal gosto na boca e no nariz.

Mas o pior é que fiquei com um impulso irresistível de imitar o desgraçado do toscano a falar. Espero que me passe...:))

Ah, Alien, haverá alguma actriz no mundo capaz de ter aquela variedade de expressões, como a Carmen Maura no Volver?
La Penelope, só consigo ver como espanhola. Em filmes de outras línguas, desculpa lá, parece-me uma extra-terreste em fase de adaptação ao clima.
E acho a miúda péssima.

Um abraço

audrey disse...

na verdade, é um prazer
solto
passar por aqui.

Bem hajas, Lizzie !

E Bom Ano!

(também o passei, como tem sido há muito habitual, por terras de Espanha.........)

Alien8 disse...

Lizzie,

Dissertação acerca das virtualidades e potencialidades dos óculos de ver ao perto, das correctas formas de os utilizar em proveito próprio e até alheio, incluindo algum aclaramento daquelas pequeníssimas coisas que não se vêem, mas que se topam, por Acrílico Compacto Branco, Mestre em Tudo:

Primo: O modo tradicional é o de leitura, correspondente à inclinação da cabeça para baixo, mui útil para a correcta decifração de caracteres, com excepção(1) daqueles que vulgarmente se designam por "letras pequeninas" e que são, em muitos documentos, os mais importantes.

Secundo: O modo de computador consiste, dada a colocação mais elevada do monitor e a maior distância dos olhos em relação ao alvo, no afastamento, não muito pronunciado, da cabeça, e portanto dos olhos, e portanto dos óculos, em relação ao alvo-monitor, que é olhado ligeiramente de cima.

Tertio: O modo der espreitar por cima carece de comentários, sobretudo atendendo à destinatária deste tratado. Digamos apenas que, inter alia, permite a visão periférica e longínqua dos circunstantes, assaz útil na captação dos seus tiques e gestos característicos, tudo em complemento da função auditiva que lhes regista as vozes, para memória futura e inelutável diversão.

Dixit.

(1) Os óculos de ver ao perto não são milagrosos, ao contrário do que vêm defendendo supostos multi-entendidos.

Alien8 disse...

Errata, como é de bom tom em qualquer tratado que se preze:

"O modo de espreitar por cima NÃO carece de comentários..."