terça-feira, 4 de novembro de 2008

Alien e demais augustos visitantes, cá segue o retrato da

guerreira que se cansou da morte

la Consuelo

história contada juntando peças de puzzle, dispersas por conversas rápidas ao longo de vários anos e tendo cautela e tento na tecla pelos motivos que se irão percebendo.



E começando pelo princípio, sei que nasceu no Pais Basco, terra de mulheres duras cujos rostos e corpos parecem rochas talhadas por séculos de intempéries, orgulhando-se de não haver família em que uma ou duas não tivesse passado, ao longo da história, por prisões, sempre no cumprimento de pena por insubmissão.



São consideradas masculinas e rústicas. É o que dizem os castelhanos. Para mí las bascas son igual de guapas qué las demás tías (peço desculpa pelo espanhol, mas convém evitar mal entendidos pela retratada).

Pelo que da infância conta, é fácil imaginá-la, mais coisa menos coisa, assim:


E com muito treino, dada a missão interiorizada de proteger os irmãos e irmãs nas ofensas e zaragatas, coisa mais didáctica que brincar com as inactivas e plácidas bonecas.

Veio para Madrid ainda a cronologia da adolescência lhe era moça, mas já de corpo avantajado e punho sempre pronto a ser disparado a quem com ela se metesse. Não demorou muito tempo para fazer perceber às “vaidosas” madrilenas que não é impunemente que se apelida uma basca de gorda.

Estudou. Pagou o seu próprio curso como ajudante de cozinha em variados restaurantes, e por tradição familiar, fez-se enfermeira com especialização em citostáticos, mais conhecidos por quimioterapia. E sempre a transpirar noite que, diz ela, nunca foi mulher solar.

Ao fim de alguns anos, cansou-se de olhar para o brilho vitorioso da morte nos olhos baços dos doentes.


Zangou-se com Deus, com o Diabo e com todas as comitivas dos dois.

Num arroubo filosófico, interrogou-se sobre os maus exemplos vindos da justiça da transcendência e abriu uma pequena tasca, de uma só divisão, onde cozinhava para os passeantes da noite. Passou a alimentar todos os modos de vida.

Quando já não cabiam nem freguesia nem elogios, mudou-se para uma antiga fábrica urbana de doçaria numa das zonas nobres de Madrid. Gosta de contar que trabalhou dia e noite para pagar o investimento.

Quis a sorte que lá começassem a entrar figuras conhecidas da televisão, do cinema, da moda, da dança e demais artes que chamaram outras gentes com desejo de ter companhia para dois dedos sossegados de conversa.
Tornou-se tal sítio num refúgio quase incógnito.


Mal olfactava paparazzis, Consuelo impunha a sua vontade de discrição e com amplitude física varria quaisquer olhos indiscretos que fossem impedir conhecidos de serem gente comum de todos os dias. Em exuberantes berros, mandava qualquer um coscuvilhar ... bom, digamos que tínhamos ali a síntese do solto palavreado espanhol com a rudeza basca.



Havendo resistência e com aviso prévio, não raro as máquinas fotográficas se tornaram projécteis a aterrar em estilhaços na rua. Aprenderam tais caçadores da intimidade alheia a desistirem das presas, dos seus hipotéticos casamentos e divórcios, divórcios e casamentos.

No dia 11 de Março de 2004 recuperou a memória da enfermagem e foi combater, como voluntária, a morte, o sofrimento vivo e moribundo, para o terreno do ataque terrorista.

Ainda teve tempo para ser uma das activistas do pásalo, movimento que através de sms, encheu as ruas de todas as cidades de Espanha de gente a exigir a verdade sobre a autoria do terror, numa manifestação de maturidade do povo espanhol: embora o governo afirmasse que tinha sido obra da ETA, o povo sabia que os terroristas caseiros nunca matam assim, com aquele tão grande número de incógnitos inocentes. Nem sem aviso.


Com o tempo, Consuelo tal como nós, lá vai tentando empurrar tal memória para um canto escuro. Onde, pelo menos, adormeça.

Entra, todos os dias ao pôr do sol no seu estabelecimento para dele sair quando se faz dia, provando e orientando petiscos e refeições agora já cozinhados por outros. A recomendar pratos do dia seguinte, mesmo quando sabe que não iremos lá. A aceitar o estranho mundo dos artistas com obra executada ou na forja dos sonhos, e de todos os não encartados que lêem e traduzem o mundo com lentes próprias, por mais estranhas e bizarras que possam parecer.



Consuelo não liga a estatutos mas os seus cinquenta e tal anos ensinaram-lhe a radiografar a autenticidade dos corações. Habituou-se a brandir espada contra quem tem pressa em rir ou soltar juízo sobre as várias fragilidades dos outros. Não gosta de mentes infectadas.


Um general vela sempre e por vocação pelo seu exército.

Agora com estatuto de não residente, continuo a preparar as costas e o equilíbrio para a palmada de mão aberta e gigante de boas vindas.

Se Consuelo ler isto, finalmente ficará a saber, que àquela brutalidade com laivos tão usualmente viris, por ela assumidos, chamamos confiança.


Ali, ao virar da esquina...




erbarme dich - johann s. bach

22 comentários:

Lizzie disse...

Pequeno esclarecimento:

botei esta ária da Paixão segundo S. Mateus de Bach - espero que vá além dos 30 segundos - porque, quando para o aniversário do 11 de Março em 2005, me pediram (entre muitos outros), para escolher uma música,foi a primeiríssima que me veio à cabeça Coisa quase instintiva que ficou logo decidida.

Neste contexto, é o contraponto da musicalidade energética da Consuelo. E daí, se calhar, não.

Alien8 disse...

Lizzie,

Antes de mais, obrigado pela referência:)

Depois, sim, o Bach passa dos 30 segundos.

Felizmente!

Continuo apaixonado pelas tuas ilustrações.

A história da Consuelo ultrapassou as minhas expectativas, com isso de ser basca e mulher de armas e correr com os papparazzi e aconselhar pratos para o dia seguinte e defender causas e pessoas e demonstrar firmeza e carinho e saber receber, acolher e consolar e, ainda por cima, alimentar... e o mais que tão bem soubeste contar.

Estou cada vez mais cliente desse refúgio. Um dia hei-de lá ir. Para a semana não será, mas hei-de lá ir!

Um abraço!

Anónimo disse...

Tu até irritas ! :D

Lembro-te a olhar ao longe

e

de repente

Nimred !!!!!!!!

Como com BAch !!!


Tão certo !

Tudo tão certo !!!


Mil beijos


P.

Miguel Batista disse...

pergunto-me por vezes se as tuas historias sao reais ou ficçionada!!!

dark kisses

Lizzie disse...

Alien:
tenho impressão que vais voltar a ser referenciado.:)

Ainda bem que gostas das ilustrações. Já sabes que as vou buscar ao banco da memória, como faço com as músicas e com tudo.

A última imagem fez parte de um desfile de moda contra a homofobia. O Delfín, de que já falei lá em baixo, faz sempre desfiles temáticos.

O carisma da Consuelo é tão grande que serviu de inspiração a partes de uma personagem do Almodovar. Misturou-a com a aparência da Sofia Loren. Um furacão de armas com venetas de "mala leche" (mau génio).
É criatura que se admira ou se detesta. Basca dos cinco costados até no cabelo.Como já disse alguém, é grande nas qualidades e nos defeitos.

Se lá fores e simpatizar contigo...cuidado com as costas:) Qualquer mortal fica com ressonância nos pulmões por meia hora:) No mínimo.

E pronto, já percebi que esta editora é generosa:)e o Bach não se deve importar.

Grande abraço e bom fim de semana.

Lizzie disse...

Pezita de mi corazón, guapa:

a modos que irrito porquê?:)

Já me conheces para saber que, por vezes e nestas questões irritantes, não penso. Deixo o instinto vir ao cima que é a melhor forma de expressar o verdadeiro sentimento.Sem arestas limadas.

Tenho pena que não tenhas visto a Pilar ao vivo e a cores: tão expressiva no Bach como no NimrOd -nem sempre sou disléxica e este O sei-:) uma bailarina de 39 anos já tem o perfil e a maturidade mais que definidos sem precisar de audições.

(está-me a dar um ataque de Consuelismo:)

Mil beijos também para ti.

Lizzie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lizzie disse...

Angellus:

O grande Jean Vigo disse uma vez que para que uma história banal se transforme numa aventura basta que alguém a conte.

Todas as pessoas que conheço têm riqueza "histórica", basta olhar e ter atenção.

Este é aliás, como pessoa ligada às artes saberás, um princípio orientador nas criações a partir dos meados do séc XIX.
Então na dança contemporãnea nem se fala.

Aqui, por óbvio respeito (não tenho a mínima vocação para paparazzi) não disse tudo: então é que ias dizer que é ficção. Mas não é.

Sob este ponto de vista, se eu fosse retratar toda a gente "interessante" que conheço ou já conheci, ai Angellus, faria vários posts por dia.:)

Assim, olha, vão aparecendo as que vêm a propósito.

dark kiss também e bom fim de semana.

Miguel Batista disse...

sempre tive essa sensaçao!!!
pela coerencia das historias sempre pensei que no minimo elas eram baseadas em factos reais!!!

Lizzie disse...

Angellus:

ainda estou a quente e com vontade de ataque de Consuelismo:

que coerência há em estar a explicar a uns rapazinhos onde é determinado sítio e roubarem-me o telemóvel do bolso do casaco? E só dei por isso neste instante porque precisei dele.
Agora é que me lembro que a alguns passos um deles acenou a rir-se,simpáticamente, um adeus com um telemóvel igual ao meu. Era o MEU! INTERNACIONAL! PESSOAL e de TRABALHO!

Tomara que isto fosse ficção mas não é. É a história real de uma pessoa que é roubada, gozada e está com um ataque de fúria a responder a um comentário.

Dava uma história? Descrevendo-lhes o ar perdido? O sítio para onde queriam ir, coitadinhos? Dava!

Vou beber um chá de cidreira ou de tília.

Dark kisses outra vez.

Miguel Batista disse...

nem imagino o k eu faria se foce roubado!!! tenho sempre um medo imenso quando saio a rua com a minha maquina fotografica. nao é propriamente uma maquina que dê para por no bolso ou que nao de nas vistas, mas como me custou tanto a consegui-la, ando sempre receoso de que ela desapareça por artes magicas.

Anónimo disse...

Tentei telefonar!

Tentei! Tentei!


Não consegui!



Lamento!


Dão outro?



Beijos com saudades!!!





P.

Alien8 disse...

Lizzie,

Um beijo solidário pelo telemóvel roubado. Já me assaltaram no metro, com um miúdo numa mão, sacos de compras no outro e a carteira cheia de documentos e, contra o costume, de dinheiro recém-levantado do banco. Foi há muitos anos, mas nunca me esqueci da sensação.

Bom fim de semana, apesar disso.

Alien8 disse...

Errata: "...na outra", e não "... no outro"!

Lizzie disse...

Angellus:

o melhor é teres muito cuidado e estar prevenido e atento. Quando dão puxões vai tudo.

dark kisses.

Lizzie disse...

P.

Pois! Assim que deu pela falta mandei logo bloquear. segundo me disse a segurança, eles costumam deitar logo o cartão fora, querem é o aparelho. Sei agora que me telefonaram mais ou menos àquela hora e "eu" não atendi.

Comprei o outro, já sabes, mais simples.

Quanto a dar outro, têm que dar, mas talvez só lá para quinta-feira e depois é a saga para conseguir que programem. Como o outro.

Beijinhos

Lizzie disse...

Alien:
Obrigada.
Também já me limparam a carteira. Agora voltei à sensação.
Na sexta-feira foi uma razia. Até mandaram com duas velhotas meias deficientes ao chão. Estragaram várias fechaduras de carros e, claro, algumas carteiras e vários telemóveis.
O mais novo não devia ter mais que uns onze ou doze anos. Imagina o que não farão quando forem adultos.

O que me chateia é que preciso daquele para trabalhar, para além de ter sete números para ele encaminhados nomeadamente um espanhol. Agora só me vão dar o correspondente à parte de trabalho, ou seja o cartão profissionalmente informatizado. Se dão o aparelho ou não, vamos lá ver, embora em caso de roubo devessem dar. Foi o que uma chefia escreveu, exigindo, na sexta-feira.

Com isto vim a descobrir que os eventuais descontos a que tinha direito por usar aquela rede nas chamadas pessoais, nunca foram aplicados. E que ainda estava a pagar uma taxa de roaming.

Fomos todos seduzidos a utilizar exclusivamente aquela operadora, a romper com as anteriores, mas afinal...foi só sedução. Uma certa forma de roubo...

Agora vou dividir os roamings por duas aldeias. e não me venham falar em exclusividades enganosas:)


Beijos e boa semana.

Cadinho RoCo disse...

E confiança é algo raro e por isso valioso.
Cadinho RoCo

Vanda disse...

Lizzie,

é destas mulheres, de espada (ou punho) pronta para a defesa, de mão cheia para a cozinha, de peito aberto para a lealdade, de tempo vago para as emergências da vida e da noite, de olho atento para a envergadura da obra, que precisamos.


Mesmo que nenhuma lente nos persiga fora de horas.

Apenas porque, com a sua presença, o mundo lá fora, fica menos só...


Consegui dar a volta à net.

De vez em quando até parece que percebo disto :)mas não percebo.

É apenas por acaso.


Beijo

Lizzie disse...

Cidinho Roco:

bem valiosíssimo, no centro de muitos outros.

Lizzie disse...

Vanda:
tens toda a razão.

A Consuelo é pão-pão-queijo-queijo num arregaçar das mangas genuíno e prático.

Um temperamento já nascido para a lealdade e para discrição.
Não é mulher de sedução fácil. Liga os seus radares, tem até um tique que a denuncia, e afasta os vários perigos. Às vezes chamamos-lhe La gran Madre. E ao bar, o útero:)) e ela fica feliz.

Tem uma brutalidade acolhedora.
Muito acolhedora e com uma certa doçura no fundo dos olhos negros.

Espero que a net não te fira os dedos:))

Beijos

Haddock disse...

qual esquina, perguntamos nós, com pesaroso atraso...??
é que também gostamos de passar discretos enquanto degustamos umas tapas e só olhamos de fugaz esguelha para as figuras públicas para garantir que não as intimidamos mais com nossas frondosas sobrancelhas nem sequer estamos para cumprimentos autografais...
e se a senhora guadalupe é, digamos, portentosa, pois nada opomos a isso. são assim normalmente as boas cozinheiras e eram assim também as enfermeiras da nossa saudosa memória. as magras eram estranhamente mais abrutalhadas e só queriam despachar a fila de miúdos piolhosos que iam levar já nem sei que vacina...

subimos...

até jazz!!