terça-feira, 8 de julho de 2008

Por onde andará o António?


O António nasceu no princípio do século XX, na mulher do meio entre os três casamentos de seu pai, militar de carreira, músico amador e virado à admiração e estudo do Império Romano. Assim baptizou este de António Adriano, outro de Marco António, mais outro de César Augusto e por aí fora nos sete rapazes e nas quatro raparigas todas elas com laivo de imperial nomenclatura.

Esta mãe do meio era espanhola e talvez por isso, conjuntamente com o irmão, meu avô, nasceu trigueiro e precocemente careca assumido, refilando com a progenitura por não lhe ter, a ele, pigmentado os olhos de verde. Toda a vida culpou os desaires amorosos pela falta de tal felina cor.



Casou aos vinte com moça de dezasseis, Milena, logo alcunhada de Senhorinha tal era a pose compenetrada do seu dever. Teve gravidez curta, pois ao fim de cinco meses nasceu varão de nome Cláudio Augusto. António, até morrer, e mesmo depois de a mulher ter mudado de casa, sempre a chamou de Minha Santa.

Abandonou para desgosto do pai, a carreira militar para se dedicar à música. E aos amores. Já eu tinha existência adolescente, quando me presenteou com uma das suas palestras em defesa da beleza de todas as mulheres: por mais feias que fossem havia sempre um sorriso, um olhar, um trejeito, uma voz, uma forma de andar…enfim um esteta já idosíssimo, com torcicolos constantes pela postura das contemplações.




Bom, mas passado pouco tempo depois de ter casado, conheceu uma americana e foi atrás dela para New Orleans




nunca deixando de escrever longas cartas disléxicas à sua Santa e ao filho. Prática que manteve ao longo de toda a sua existência.

Voltou em perseguição de uma mulher escura e bela, com outra das suas grandes paixões: o Jazz.

Depois de ter andado, clandestino, a transportar víveres e medicamentos para as sacrificadas e guerreiras terras de Espanha, trazendo de volta fugitivos para a porta de salvação para o lado de lá chamada Ericeira, dedicou-se a fundar uma orquestra de difusão da nova música.



Também como fugitivo, mas da ira dos pais, meteu-se a ele e à orquestra em cruzeiros de luxo. Giro pelo mundo em bailes marítimos. Voltava, como se tivesse partido no dia anterior. Sempre carregado de exóticos presentes.

Uma das vezes, deslocou-se a Granada, para tocar trompete até à exaustão, à beira da sepultura da mãe. Não sabia chorar as várias ausências de outra maneira.




Foi para o Brasil sem aviso prévio, como sempre fazia. Lá fundou escolas de música algumas delas ainda hoje mantendo o seu nome. Sempre acreditou na língua universal do solfejo. E na mobilidade das paixões. Súbitas como um ataque que lhe paralisasse qualquer razão. Ou qualquer afecto preso no tempo.

Depois voltava, com estadas cada vez mais prolongadas. Do salão da casa perto do Areeiro fez tertúlia. Quase diária. Sentia-se morrer se não tivesse ninguém à volta.

A sua Santa dava-lhe conselhos maternais, mas do exterior da balbúrdia.

Juntou fadistas, gente do Jazz, do flamenco e o que mais aparecesse. E conheceu Carmen Amaya, numa das suas visitas particulares a Lisboa, a tal que, acompanhada da família e dos guitarristas, lhe deu enxurrada de duende e saltou com taconeo selvagem para cima do piano.

António esbugalhou os olhos do coração e apaixonou-se até ao desespero. Ficou o polimento do instrumento riscado como relíquia. Face à indiferença, ficava horas a olhar os riscos. Ameaçou matar-se de amor, mas antes que fosse morto pela honra da dama, apaixonou-se por uma outra: voz de cristal, cheia de pranto, olhos fechados pelo trinado do sentimento.

Saltando uns bons anos, já me lembro dele, de calças sulistas onde caberiam cinco, sempre de instrumento debaixo do braço. Ou no carro. Onde quer que fosse.




Hoje zanguei-me com o clarinete, sabes onde mora aquela senhora de vestido vermelho? fiz as pazes com o saxofone tenor, deve ter uns quarenta anos, tem a beleza da maturidade, finalmente o oboé obedeceu-me, a elegância do virar da cabeça…, não sei o que tem a trompete, digna do altar mais dourado…





Ia trocar notas com o meu pai, músico amador.
A minha mãe desesperava com as pautas espalhadas pelo chão,
eu fugia de tanto si bemol e fá sustenido,
a minha avó, cunhada dele, embora dizendo-se sem vista, clamava: olhem, parecem os ceguinhos da Rua do Alecrim,
a minha tia, mais científica, temos aqui AVC, tais eram os trejeitos à reprodução do Glenn Miller ,
outra tia: graças a Deus que não há baterista.

Saltando mais ainda, estava eu em Madrid, desmaquilhando-me e vieram dizer-me que estava lá fora um velhinho com um ramo de flores. E lá estava aquele ser curvado, pequenino, escondido atrás de um ramo de rosas.

Saiu queixa sobre a traição filial. Podia lá ele estar de bem com o filho quando lhe queria roubar a namorada, rapariga brasileira com porte de gazela, o filho quase com setenta anos e...

ele com oitenta e oito…a merecer respeito.


Parou!

Foi juntar-se ao irmão, esperou pelo sobrinho e aposto que os deuses, ou os demónios, fugiram para outro Universo.

Já a transcendência não pode ouvir o estudo dos acordes de Woody Herman, ao som do riso triste de Louis Armstrong.




Oh when the saints go marching in...

18 comentários:

Alien8 disse...

Lizzie,

A história deste seu tio-avô superou as minhas expectativas, quer pelo conteúdo, quer pela forma como a contou e ilustrou.

"Ainda bem que não há baterista!" - Os comentários da família são do melhor. Como o da tia que se dizia ceguinha.

Mas aquela vida, aquelas vidas... a música, os instrumentos, as paixões, o polimento do piano riscado, as viagens, as tertúlias, as pautas espalhadas, a devoção à sua Santa, a Orquestra Blue Jazz, a ajuda aos refugiados da Guerra Civil, o solo de trompete à beira da sepultura, o ramo de rosas, o desgosto pela falta do verde nos olhos, culpa dos desaires amorosos, a "traição filial" aos 88... são coisas que jamais sairão da memória, agora até da minha :)

"Viver para contá-la", como escreveu Garcia Márquez. E saber contá-la, como é o seu caso.

nnannarella disse...

Diz um provérbio italiano que più calvo è il gentiluomo, più grande la sua albagia (quanto mais calvo é um cavalheiro, maior é a sua arrogância), talvez porque seja o modo de tentar minorizar o despautério da natureza e dissimular complexos de capilaridade. Não me parece o caso do avô António Adriano das sete partidas, mesmo com tal imperial baptismo. Quiçá por causa da costela lusa e seu mito dos brandos costumes... quiçá porque entabulou um bom convívio com a sua particularidade. Nem isso interessa tanto quanto a saga que nos ofereceste, de um cavalheiro como já não deve haver muitos, também, presumo, porque não há tempo para se ser assim e as gentes crescem aprisionadas à mania de variadas seguranças, em que a ideia de aventura é temerária e só acontece nos filmes. Nostálgico e comovente memorial este, meu Arcanjo, outro insuperável guião.
Clarinetes e clarinetes!:)

Lizzie disse...

Alien
obrigada!

Diz bem, "aquelas vidas". Todos aqueles irmãos tiveram uma vida interessante e sem peneiras de espécie alguma. Sobretudo uma das irmãs que chegou aos 40 e nunca mais falou com palavras. Fiquei com a imagem dela encrustada na memória.

Também me ficou a ternura que o tio António tinha pela sua Santa. Aliás reciproca.
Viviam separados há uma eternidade, ela viveu com um outro e teve mais uma filha, e um dia encontrei-o, de manhã, numa florista da Av.de Roma, já velho, a encomendar flores para a "minha Santa". À tarde o meu pai mandou-me lá a casa levar uns papéis e lá estava ele, de avental, na cozinha,a preparar o jantar. Tinha-a convidado e ele, e só ele, sabia os temperos ao pleno gosto dela. Quando os via juntos, pareciam duas crinças felizes. Ela ralhava-lhe muito e acabavam a rir à gargalhada.
Curiosamente ela sobreviveu-lhe cinco dias. Sendo velhota com saúde de ferro, pareceu ter pressa de reencontro.

Abraço

Lizzie disse...

Oh Meu Anjo, de arrogante é que não tinha nada.
Talvez por terem vivido várias guerras, alguns por dentro,ou pelos amores e viagens, eram muito dados, simples e tolerantes. A loucura que tinham só os prejudicava a eles próprios e...um bocadinho aos filhos, claro. Talvez por reacção na geração que veio a seguir infiltraram-se um machismo e um conservadorismo que chegavam a ser patéticos. Mais papistas que o Papa, e com focos estratégicos de autoridade.

Gostava que as cartas para a Santa, e outros documentos, tivessem publicação. Apesar da dislexia, são relatos minuciosos que fazem história. Mas a iniciativa teria que partir dos netos.

Diários e diários

Lola disse...

lizzie,

Encantada (literalmente) e emocionada com este maravilhoso memorial de vidas cheias de amor e aventuras.

E o amor também de quem escreve.

Os comentários e as respostas aos ditos são ainda a continuação do encantamento.

Eu, que sou pequenina, e não sei dizer coisas bonitas, agradeço e dou beijinhos.

Lizzie disse...

Lola,
obrigada.

Quando o velhote ficava, lá em casa, horas de sopros na boca e pautas nos olhos, não lhe achava muita graça. Não consigo descrever as caras de parvos dele, do meu avô e do meu pai. Um deles levantava tanto as sobrancelhas que eu as imaginava a subir pela calvice fora até se alojarem na nuca.
E, sem querer(pedindo desculpa pelo calão) alcunhei-o. Disse para o meu primo "bora pá rua que vem aí o caga na calçona (isto por causa da habitual largura das calças dele). O meu pai estava atrás, eu não vi, apanhei.

Mas era o único que não me ralhava por eu andar à pancada. Era de opinião que as mulheres têm de aprender a defender-se, para grande escandalo da nossa tia-Tia.

(E, já agora, os tais meus gatinhos já abriram os olhos, enormes, e caminham a passos largos para a obesidade infantil.
Um deles já anuncia potente voz de ópera, por enquanto e para mal dos meus pecados, chinesa. Com o tempo pode ser que mude para Verdi. Ou Bizet.)

abraço e bom fim de semana

pardal de telhado disse...

eu conheço um baterista muito bom~~
~~~~~
~~
o
~~
Bruno Pedroso
~~~~~~~~

Emma Larbos disse...

Lizzie, estou roída de inveja!!!
Eu queria ter inventado uma personagem assim para escrever um romance e afinal já existe!
Quanto às cartas, por favor não deixes os herdeiros perderem-nas! Não perdem por esperar.

Madame Maigret disse...

Ma chère amie, votres memoires sont comme des fleuves qui ont des parts plus douces e autres moins amènes...:-)))
Liens humides d' émotions, qui ne fatiguent jamais et que jamais nous donnent la sensation du dejá lu!Bonne semaine, bisous!

pentelho real disse...

senhora lizzie,
além de me encantar com os vossos posts, e, este é mais um, encanta-me a capacidade que eles, vós lizzie tendes, para fazê-los continuar aqui nos comentários. na verdade nestas preciosas conversas as "histórias/estórias" continuam quase sempre vivas.
e comovi-me mais uma vez (isto deve andar muito mal, tenho que ir ao psiq), e comovi-me mais uma vez, não só no post mas também na resposta dada à Lola. as caganitas chegaram-me aos olhos.

senti a vida dele e vi-a como se estivese a olhar um ecran. todas as pessoas passavam vivas à minha frente.

foi lindo.

um beijo grande

nnannarella disse...

oHá muita gente (pais e mães) dada por muito acertadinha que bastos prejuízos se fez e a seus rebentos. - Essas heranças inóspitas não são marca apenas dos mais abertamente extravagantes.

Partindo do princípio que a vida é um curso sem fim de trocas e baldrocas de "interacções" e incompreensões, sem dívida, nem dúvida, que quem melhor a leva (a vida) são os espíritos livres.:)

Repenicados aos gatinhos cantores e
relatos e relatos ao meu Arcanjo.

Lizzie disse...

Pardal

tu não pies o nome do rapaz baterista muito alto. Sei lá se eles ouvem e, em espírito, ainda descem para o ouvir e o levam, cruzes canhoto, vade retrum, tuch wood, para o pé deles.

Para marcar o ritmo, que se fiquem pelo bater dos pés nas nuvens.

Toma lá um bocadinho de alpista pela visita.

Lizzie disse...

Emma,
bem que eu queria as tais cartas, mas a mim calharam-me instrumentos e pautas e, por circunstâncias várias, perdi contacto estreito com os netos. Aliás só um vive em Portugal.
Tanto quanto sei,neste momento há um baú cheínho delas em Palmela. Pelo menos espero que tenham bólinhas de naftalina.

E, já agora, vou contar a história da meia-irmâ que mais me impressionou. Outro romance.

Lizzie disse...

Alteza

cuidai que V. lágrimas não sejam, de facto, depressão que se avizinha. Prefiro pensar que são fonte de apurada sensibilidade.

E sabei que se o senhor meu pai não tivesse ido refilar junto de nossa solidária tia, e outros, acerca da minha falta de respeito, a alcunha teria ficado por ali.

Assim, espanhou-se extra muros.
Mas enfim, quando chegou aos ouvidos do visado, ele apelidou-me de imaginativa com gargalhada.
E vingou-se. Aludindo a eu ser (na altura) pernalta e esquelética, rotulou-me de tira-linhas e palheta de oboé. Assim passei a ser chamada por meu avô, que ainda hoje me faz lembrar, na memória, um trombone.

A vós agradecida também com beijo.

Lizzie disse...

Madame
perdoe-me que a saltei na ordem de resposta.
Resta-me agradecer-lhe as considerações, et, vous savez, o mérito cabe a quem existe ou existiu e que de uma forma ou outra tornou esta vida um bocadinho mais rica.
Limito-me a contá-las, ma chére c´est tout.

Já não sei qual foi o seu conterrãneo que disse que para que uma vida se transforme numa aventura basta que alguém a conte.

Beaucoup de bissous pour vous.

Lizzie disse...

Meu Anjo
tens toda a razão, que são tantas as vidas destruídas à partida, por pais considerados modelos de "normalidade" quanto mais não seja pela pressão de os filhos serem normais, de acordo com o traçado que os pais desenharam para eles. Nesses casos os pais vivem obcecados com a imagem que os filhos dão deles. Bastas vezes a felicidade das crias lhes é indiferente.

Os filhos destes (em crianças) talvez se sentissem pouco acompanhados e pouco protegidos. Dáva-lhes na cabeça ir a qualquer lado e iam, independentemente do amor que lhes tinham.

Não eram mães nem pais galinhas.

Afectos e afectos

Alien8 disse...

Lizzie,

Não se trata propriamente de responder à resposta, mas a verdade é que a sua resposta ao meu comentário ainda trouxe mais novidades, que me fazem crer que muito terá ficado para contar.
Ah, grande António!

Abraço para si também.

Marginal disse...

Arrepio.


-que me levou ao jazz naquele domingo?


-nao ligues, é por estas perguntas tolas que a minha mãe, não consegue ver-me de forma séria :)

E é por estas coincidências que eu me arrepio.


...fios invisiveis?


...e continuo...