terça-feira, 17 de junho de 2008

Viagem ao interior de um silêncio esquecido




É de pleno direito que escapemos, nós os urbanos, nem que seja por dias ou horas, às obrigações rotineiras, que é também uma forma de sairmos das marcações cadenciadas a que a vida, com ou sem consentimento, nos obriga.

E ali, na esquina fronteiriça da urbe Lisboa, pomos o dedo em frente aos lábios, e sacudimos a algazarra que já se nos colou aos tímpanos. Perante aquele silêncio tentamos varrer fantasmas e medos: Madrid, dizem-me, vive racionamentos e gritos e pancadas mais do que ao nosso conhecimento mediático chega e Lisboa, mais tímida na revolta, começa a secar a endógena placidez.

Via Azambuja, entra-se pelos mouchões do Tejo. Um labirinto de ilhas com aspecto de donzelas virgens, orgulhosas de uma majestade antiga,






onde, disse-nos um senhor abastado de carnes e barbas e destro no manejar do garfo, espécie de detestado aristocrata em cenário neo realista, Damião de Góis, passeava os olhos verdes e os clandestinos amores, no intervalo das diplomacias, artes e novas ideias europeias.

Era também por ali que se fazia transporte de Lisboa até Constância, terra do seu amigo Camões.

Mais tarde Dona Maria I mandou construir o Palácio das Obras Novas, ou Palácio da Rainha, junto a um porto fluvial, protegido por árvores vindas de várias e longínquas terras.






Se a vegetação é teimosa na vida, o palácio parece um cadáver envergonhado,





a esconder o corpo decrépito atrás da alameda de palmeiras plantadas a régua e esquadro. Já espanhóis e outros estrangeiros o quiseram ressuscitar para a cultura e logo os descendentes dos que odiavam o Erasmo do Damião mantêm a agonia conservada em papéis sem fim na demora dos gabinetes. Além de orgulhosamente sós, também orgulhosamente apodrecidos.

Não posso deixar de me lembrar das monumentais metáforas pictóricas de Kiefer.






A arte tem este dom de não ter geografia ou tempo que a fixe.

Também correm os rumores que em sítios onde agora são criados dignos cavalos lusitanos e árabes, livres na correria e atentos às objectivas, serão preparados campos de golfe.





Ao longo dos dias vamo-nos apercebendo dos dotes da luz: dama sedutora, volúvel, consoante a inclinação do sol. Pela tradução dela na pele, ora ficamos com a idade certa, ora camuflada: se os raios durante o pleno dia são crus, tornam-se paliativos, velados e doces quando abandonam ou recebem a noite.






O tempo da alma também vai flutuando.
Prazer simples de brincar com a memória que a vida nos acumulou.

De passagem, uma comediante espanhola recita com exuberância uma lenga-lenga rimada que conta a história satírica do langor de uma dama oitocentista, pecadora no seu recato, à espera de um marido velho e novo rico em haveres, chegado da pesquisa do ouro transatlântico.

Não podemos rir muito alto, que os peixes, furiosos, já pulam mais alto.

Nós, os outros, donos de pernas que com ou sem comédia escravizámos, aproveitamos a carícia fria anti inflamatória da correnteza feita massagem,




enquanto ouvimos aquele murmúrio da água no empecilho dos ramos e das pedras.

O mar, quando era criança, devia ter aquela voz.

Numa cabeça começa o esboço da escrita daquele som baixinho em movimento. É o vício de um corpo inquieto. Contagioso. A lembrar a outra cabeça uma peça de Bach, transcrita para piano por Busoni. Lenta. Dolente.
Uma amostra de paz.
Simples.

As grandes músicas têm o dom de se moldar, eternamente, ao que delas se espera.

E, como o tempo não pára, despedimo-nos da brancura ibérica das sestas





e damos mais um passeio, invertendo a marcha antes da curva, que depois dela, já se avista o prefácio de Lisboa.





É mais fácil, assim manter a ilusão da distãncia do amanhã já é sábado, e depois domingo, do tem que ser, que tudo o que é sempre também se torna demais.

No caminho para o aeroporto, já circulam muitos camiões. Da auto estrada e olhando para trás, vemos as manchas que sabemos serem filigranas quase secretas de paraíso.

Em Nova Iorque, um público de olhos curiosos e especializados que os espera, não suspeita que há um refúgio maior, mais livre, mais sereno e de cheiro mais limpo para o repouso dos dias sempre urgentes que Central Park, onde tanto se mendiga verde e sol.




Um mundo onde sem aviso, seres alados, sem obrigações programadas, fazem o favor de dar lições à liberdade.




Com licença, que estou mais uma vez atrasada...
já vou... já faço... já penso... já respiro...


boa tarde!

26 comentários:

Lizzie disse...

Como,ai de mim, não sei botar músicas nesta coisa, e para quem queira saber qual é a música a que me refiro aqui vai: é a cantata 140 de Bach pai de todos, chamada de (vou copiar)Wachet auf, ruft uns die stimme. Tal e qual. Versão lenta.

Lizzie disse...

...do que já ouvi, a minha interpretação favorita, mais parecida com aquelas águas do Tejo, é a de Pedro Burmester.

E, por agora, acho que não me lembro de mais nada.

Com licença.

nnannarella disse...

Já agora, e antes de mais, muito grato te está este anjo por lhe teres soprado esse Anselm Kiefer que desconhecia. É espantoso, como inaudita também é a semelhança entre o ventre acirrosado do Palácio e o artefacto.
Mouchões e mouchões!

Lizzie disse...

Meu Anjo:
Ainda bem que gostaste(s) do Kiefer. Para mim é uma paixão.

Está-me a passar pela cabeça misturar o “Pranto” da nossa Emma com o dito, mais uma valsa , em violoncelo, do Schostakovich mais outra do Juventino Rosas, mais um fado e um flamenco de que não me lembro o nome, mais os teus “jacarandás floridos” mais pedaços soltos da lenga-lenga pela voz castelhana inconfundível, mais uns sons que ouvi ontem mais outros que ouvi hoje (sabe-se lá os que ouvirei amanhã), pôr um pouco do humor sério do Bansky , que está lá no Capitão, e mais umas coisas com água e fogo, passando pela terra.

As alembraduras são como as cerejas.
Deixa-os vir de Nova Iorque.

Ideias e ideias

(ps. se eu desaparecer dentro de alguns dias, vai em meu socorro: internaram-me)

pentelho real disse...

iletrada princesa
me confesso

e andar por estas terras
não mereço

músicas e artes de que falais
eu desconheço

de desgosto e vergonha
já faleço.

(arrenego esta ideia
tão daninha

que só pode ser
estupidez minha).

novamente vou olhar as paisagens
que nos dá

cheia de pena por não poder
estar lá.

Haddock disse...

tejo...
está visto: resolvesteis *asteriscar* a montante, lizzie...
mas já devíeis saber do segredo nestas viagens: o de deixar a jusante o sentido crítico ou no regresso trazeis bagagem indesejada, cheia de campos de golf verdinhos polvilhados de turistada com vista para monumentos apodrecidos...
mais: no ipod, em vez de cantatas a celebrar a nostalgia talvez umas modinhas mais optimistas, tipo "we are the world" (credo..).
e agora vou comprar um lusitano antes que se extinga a espécie.


vénia...

Lizzie disse...

Alteza:
Que solta é Vossa arte de versejar a toda a sela!
Que bem me haveis alargado o sorriso que já o fim dos meus lábios toca os furos de minhas orelhas!

E haveríeis de bem vos sentir em tais terras e águas: “fonte dos suspiros”, “vala real” “poço das freiras”, “ carreiro da rainha”, e etc.
De vosso paço não sei, mas fica perto do meu, aqui de Lisboa. Não sei se já ouviste falar em tal burgo.
Basta-me pegar na carruagem e mesmo a trote, embora goste mais de galopar, que tenho vocação de vento, em pouco mais de metade de uma hora sou chegada.

E quanto a músicas, uma conheceis de certeza: a do Rosas. É clássica em cenas de circo sobretudo quando aparecem os bobos.

Tende um bom fim de semana sem atropelos na corte.

Lizzie disse...

Capitão:
Para lá ir não necessitamos de asteriscar, mas aos domingos só indo de barco para um dos mouchões porque se andarmos só pelas margens corremos o risco de cair naquilo a que os espanhóis chamam “dominguerismo”, ou seja, estendal de toalhas, frango assado, sardinhas, relatos de futebol, Toni Carreira, Quim Barreiros e “cachopos” aos berros mais as mães deles.

Mais a montante temos os festivais das motas de água. Desistiram de ir para jusante porque o rio vinga-se. Manda para o leito troncos de árvores que se só se vislumbram em barquinho modesto. Era vê-las em prática de salto mortal.
E tendes razão, o cavalo lusitano está, por incúria pátria, em vias de extinção. Por mor das dúvidas muitos já foram morar para a Andaluzia.

Ou é impressão nossa ou anda por aí a euforia dos campos de golfe?

Trazemos sempre na bagagem o medo de perder aquilo que é considerado por vária estranja o estuário maior, mais rico em fauna e flora e mais bonito da Europa.
A beleza, a calma e o silêncio não têm medida para entrar para o Guiness.

Continência

Alien8 disse...

Lizzie,

Acerca do ai de mim: Posso ajudar, se quiser. O blog tem o template novo, certo?

Não é difícil colocar música. Pergunte-me como :) (isto é só para não me pôr aqui a dar água sem caneco...)

Este texto proporcionou-me uma viagem bastante agradável, daquelas que quase só faço por via indirecta. Pelos mouchões do Tejo e pela História, sem falar nas imagens, de que retive sobretudo a primeira e aquela preciosidade da menina do regador.

Acordai, a voz chama-nos! Mais ou menos isso. Ainda a vou ouvir hoje.

Bom fim de semana!

Frioleiras disse...

a lizzie diz: ... Bach pai de todos..............que bem me soube alguém diszer semelhante carícia...

Frioleiras disse...

Ah e Kiefer............adoro-o na Páscoa... Acho que as palmas dele são-me sempre associadas a Páscoa , à Páscoa dos católicos.... dos neo catuménicos.........
adoro Kiefer, tb...

Frioleiras disse...

E... Rebecca Horn, a partir de hoje em Salzburg........

D. Maria e o Coelhinho disse...

EU CÁ PORIA O 'SOUND OF SILENCE' DOS SIMON & GARFUNKEL.
TEM MAIS A VER COMIGO.

Dª MARIA

Emma Larbos disse...

Ai a Lezíria!... Vivi muitos anos a espreitar ao longe os mouchões do Tejo. Dos ribatejanos - confesso - não guardo saudade mas do rio ao longe e das cegonhas e do sol a pôr-se sobre a planície... isso sim!
Mas diz-me, Lizzie, aquela aguinha em que banhavas os pezinhos não estava tão poluída como esta mais a jusante? Não te fez mal no dia seguinte?

Lizzie disse...

Alien8:
só para ter uma ideia da sua generosa e muito paciente tarefa: o que é o template aplicado aqui a esta coisa?

Tenho o palpite que a minha dislexia também se aplica à informática.

Quanto às imagens, prova que a fotografia de moda pode ser género luminoso, criativo e irónico.


Boa semana, mesmo que de vez em quando adormecido:)

Lizzie disse...

Frioleiras:

atão e não é verdade, que o Bach é o pai de todos?
Só o contraponto puxa logo o pézinho para a dança. Mesmo as obras sacras. É um desafio, uma gana de cair no abismo ou ter o voo mais alto. Indiferença do corpo face ao som é que não!

A Rebecca vi em Barcelona. Especial atenção ao Eintanzer. Claro.

E Kiefer, na Páscoa e em todo o ano. É mestre que serve para tudo. Como todos os grandes.

Lizzie disse...

D. Maria e simpático acompanhante:

Ora tape-lhe os olhos para ele não ver o que lhe vou contar:
estavam umas pessoas comigo, muito concentradas à procura de uma música para um determinado fim, quando ouvimos qualquer coisa de familiar.
Passámos à faixa seguinte. E outra coisa familiar.

Coelhinho, vai até ali, tá bem?

Pois, D Maria, um era o sound of silence e o outro a bridge of a trouble waters, em versão para cordas, genuinamente sec.XVI, autor anónimo, salvo erro inglês.
Não tem mal nenhum a inspiração, já que nada nasce do nada.

O meu género é tudo o que me tire os neurónios deste descanso que tanto gostam.

Coelhinho...já podes vir.

Lizzie disse...

Pois não Emma, aquela aguinha não me fez mal nenhum e por ali não está tão poluída. É até transparente. Em alguns sítios até se contam os peixes que vão fazendo cócegas nas pernas.
Já uma outra água que bebi não foi muito do agrado da minha vesícula. Ou do meu figado. Quando se lembram de entrar em manifestação não se sabe quem grita mais alto. Vá lá que se calaram depressa.

Daquelas gentes, bem, sabes, muita mitologia taurina, os homens não choram, se deus quisesse que chorassem não tinha feito as mulheres, que em casa é que elas estão bem...não são como as de Lisboa...sabe-se-lá o que andam a fazer que ninguém as conhece...na trapaje...


mas os "pores" do sol, mais os amanheceres, e andar de barquinho entre as oito e meia e as nove também meia, a ver acordar os fantasmas na agitação das sombras ao começar a noite. Lindo.

Alien8 disse...

Lizzie,

O template é aquilo a que também se chama layout :))) - bom, aquele modelo que escolheu quando criou o blog. No caso deste blog, parece-me novo. A forma de colocar música é diferente de como se fazia no modelo velho.

Para começar, é evidente que tem que ter a música no seu computador, de preferência em formato mp3.

Depois, é necessário transferi-la para um sítio de alojamento na net (os provedores de serviço, Telepac ou Netcabo, por exemplo, dão normalmente um certo espaço para alojamento online de ficheiros pessoais.)

A transferência é geralmente feita via FTP. Não é complicado, mas isso também depende do seu provedor de serviço. Se quiser fazer o favor de me dizer qual é, e se tem ou não direito a espaço de alojamento (também por vezes chamado "página pessoal"), poderei ajudar também nesse aspecto. É mais fácil do que parece quando se lê :)

Aguardo indicações, se quiser continuar.

Boa semana!

A. disse...

...e, já agora...
[Quem me dera ter gostado!]









...um grande abraço, minha
querida Eli.

*

Lizzie disse...

Alien8:

Muito obrigada pela sua disponibilidade.

Não sei se isto faz sentido ( o mais natural é eu ter percebido tudo ao contrário) mas o que me disseram é que não "convinha" ter páginas pessoais aqui: está tudo em rede, e são tantos.
Tudo o que de meu tenho está guardado em pen.
Quando preciso de algum favor, em termos de músicas, p.ex., vou aborrecer uma vitima aqui do lado. Não sei como faz, mas aparece-me com cd.
Esta coisa é nova e ainda não tem uma série de programas.
Ontem precisei de um vídeo, fui ter com a vitima para me ensinar a gravar (neste), veio cá ver, e disse-me que ainda não tinha o programa instalado.
Restou-me fazer treino de memória:)))

Com isto tudo, não imagina a empatia que eu tenho com as pessoas que não sabem ler nem escrever. Em papel.

Um abraço e mais uma vez obrigada.

Lizzie disse...

Passarinho:
Quem me dera que me tivesse acontecido a outra viagem.
Por razão nenhuma, ou por todas, não sei, mas apeteceu-me.

Melhor que a violência de todas as cores, os sorrisos que se sentem postiços, o calor gelado de Brasilia, o cansaço.

É mau ser-se obrigada a gostar.
Pensei que o céu era tão grande ali, tão grande como a minha amputação de asas para fugir.

Para um sítio mais recatado. mais sózinho. Como aquela renda de Tejo.


Abraço grande.

Lola disse...

lizzie,

Deliciada com este texto ao correr de imagens de um realismo fantástico.

Ouço a música e o som da brisa nas àrvores e do rio a passar nos mouchões de Alhambra ou da Póvoa...

Quase sinto a frescura da àgua nos pés...

As tolices da burocracia dos donos do paraíso, passa ao lado da beleza que nos cerca.

Beijos

Lizzie disse...

Lola:
É de facto repousante. Limpa a alma do pó que se vai acumulando. Aquele que não está agarrado, claro.
Lá irei, este fim de semana, outra vez. Aliviar com frescura o martírio dos tornozelos. Em fase de cigarra:)

E é tão simples e natural.

Beijinhos e bom fim de semana.

Alien8 disse...

Lizzie,

Neste caso, a "página pessoal" é apenas uma designação para um espaço de alojamento de dados, por exemplo música, que também podem (e devem) estar no computador, em pen, etc... Os blogs são exemplos de "páginas pessoais": o que lá se coloca fica alojado no servidor do blogger.

Se quiser mesmo pôr música no blog, proponho-lhe uma experiência simples, mas as minhas indicações terão de ser dadas por email, como depois compreenderá, se prosseguirmos.

Pode enviar um "olá" para alien8@netcabo.pt, e respondo logo que possa.

Tenho todo o gosto em ajudar no que puder. Faça de conta que sou "a próxima vítima" :)

Marginal disse...

Lizzie,

Ao longo da viagem que tem sido conhecer-te através dos teus posts, dou graças à beleza da tua escrita, à tua sensbilidade incrivel, à tua graça, na arquitectura da conversa...

Sobre o palácio, escondido entre o verde fluvial na sua paisagem, quando o conheci há 6 anos também lamentei sua desdita...guardo, ainda, à mistura com outros de igual espécie, mas de diferente origem, uma noz, que por lá encontrei caída...

Também ali ao lado, em troia, a minha praia privativa vai deixar de ser uma simples praia, de areia branca e macia, onde nas tardes longas de verão ouvia as cigarras...

Belo passeio o teu!

Beijinhos